Sumário. 1. Introdução. 2. O Brasil brasileiro. 3. A inevitável e desejável evolução do direito administrativo. 4. Quem é o dirigente? 4.1. Atividades do dirigente. 5. A equiparação do gestor privado ao agente público quando há verba pública envolvida. 6. A necessária limitação da ação do gestor diante do cenário jurídico-normativo. 7. Imprescritibilidade de ressarcimento ao erário. 8. Os princípios constitucionais. 9. O amplo alcance da legislação infraconstitucional de enquadramento das atividades do gestor. 10. A necessária prestação de contas completa e pormenorizada pelo gestor. 11. Conclusão. 12. Referências bibliográficas.
Resumo. O cipoal jurídico brasileiro é imenso e pródigo em prever as mais variadas, genéricas e amplas situações de enquadramento de atividades tidas como criminosas. As autoridades, de diversos níveis e esferas, vivem momento de excitação extrema e têm à sua disposição emaranhado de normas para classificar as mais diversas ações praticadas pelas pessoas. Os gestores de entidades sem fins lucrativos, especialmente os que atuam na área da saúde e mais precisamente em hospitais filantrópicos, nem sempre conhecem em detalhe as regras legais que incidem e norteiam a sua atuação profissional e nem os limites e cuidados que devem observar e adotar no seu dia a dia para evitar a sanha das autoridades ou mesmo a prática de crimes assim não compreendidos por eles justamente em razão de desinformação. Atuação praticada com boa intenção, mas sem observância dos incontáveis preceitos legais, pode ser (e tem sido) enquadrada e classificada como crime pelas autoridades, que sugerem a prisão (temporária ou preventiva) da pessoa, o que muitas vezes é acatado pelo judiciário e coloca os gestores na cadeia e em situação de extrema fragilidade moral e patrimonial, descrédito e humilhação, tudo de antemão, sem que necessariamente a presunção que gerou a investigação se concretize ou seja provada. Acontece que a desgraça pessoal aos gestores já foi causada e nem sempre eles conseguem se refazer do infortúnio. É sobre esse contexto que se discorrerá com a intenção de alertar os administradores de dinheiros públicos sobre a necessidade de serem cuidadosos, atenciosos, técnicos e restritivos no desenvolvimento de sua atividade profissional.
Palavras-chave. Pessoa. Dirigente. Administrador. Agente público. Equiparação. Responsabilidade. Crime. Improbidade administrativa. Prestação de contas. Entidade sem fins lucrativos. Hospital. Parceria. Prestação de serviços.
1. Introdução
Não, o título deste artigo não é exagerado e nem despropositado. Muito menos irresponsável. Ele resume o que vem acontecendo com dirigentes de entidades sem fins lucrativos que ousam dedicar seu tempo e conhecimento na tentativa de ajudar o próximo por meio da assunção de cargos nelas.
É óbvio que não iremos aqui defender bandidos que se aproveitam de cargos e do exercício de funções nas instituições filantrópicas para praticar crimes, desviando o dinheiro que deveria ser aplicado no atendimento das pessoas para os seus próprios bolsos.
Os casos comprovados de tal prática devem ser (e estão sendo) punidos criminalmente e tais pessoas são corretamente presas e afastadas do convívio dos seus pares em razão do egoísmo e ilegalidade de suas posturas que foram assim enquadradas pela legislação penal.
Este artigo pretende abordar a situação do dirigente honesto que nem sempre consegue cumprir o difícil e às vezes impraticável emaranhado de normas jurídicas que se aplicam quando a entidade na qual ele atua recebe repasse de verbas públicas para serem empregadas em determinada finalidade.
E ao assim agir, às vezes inadvertidamente, ele acaba por conhecer outro confuso e enigmático labirinto de normas penais aplicáveis justamente àquelas situações não necessariamente ocasionadas por má-fé nem por desvio de conduta, mas que podem lhe causar seriíssimas consequências não só em relação à sua liberdade de ir e vir mas também ao seu patrimônio que pode ser perdido em prol dos entes políticos.
2. O Brasil brasileiro
O Brasil não é um país para amadores, diz a máxima popular. E isso é de fácil constatação por meio de diversas formas e sob vários aspectos.
Somos a oitava potência financeira mundial, mas nossa população amarga doenças encontradas em países de terceiro mundo e assistimos o retorno de algumas que tinham sido controladas há tempos, em razão de vários motivos políticos, sociais, financeiros, geográficos e culturais, dentre outros.
Importamos leis que deram certo em países de primeiro mundo, que possuem população de primeiro mundo e com grau de cidadania mais elevado, desenvolvido e sensível que o nosso, e queremos que aquelas normas deem certo aqui, como se a solução para os problemas decorresse da simples edição e publicação de regras jurídicas no diário oficial.
Aliás, diretrizes normativas não faltam no Brasil. Existem aos milhões – e não é força de expressão – para regulamentar absolutamente tudo o que você consiga imaginar, desde a proibição de colocação de saleiro na mesa de restaurantes[1] (para evitar o consumo excessivo) e de fornecimento de canudos plásticos[2] em estabelecimentos comerciais, até o descarte de embriões não fecundados por empresas que se dedicam a este negócio.
Em países ricos, suburbanos e nos quais a cidadania ainda engatinha, como é o nosso, onde o Estado é forte e arrecada mais de R$ 3,3 trilhões por ano em impostos, sempre há a tendência de as pessoas se aproximarem dele procurando encontrar uma teta para se alimentar de leite público produzido num úbere quase inesgotável, que se renova mensalmente pela injeção do dinheiro dos impostos pagos pelos brasileiros.
A eterna discussão acerca da separação entre o que é público e privado vem de centenas de anos e passa por quase todos os autores clássicos que lemos, desde Aristóteles, Platão (que entendia não haver diferença), Rudolf von Jhering, Hans Kelsen, John Locke, John Stuart Mill, Jean Jacques Rousseau,
[1] A lei estadual n. 10.369/15, do Espírito Santo, foi considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça daquele estado, conforme consta do processo n. 0037560-21.2016.8.08.000. [2] Projeto de lei n. 99/2018, da Câmara Municipal de São Paulo.
Nicolau Maquiavel, até filósofos mais recentes como Jürgen Habermas, Norberto Bobbio, Hannah Arendt e diversos autores brasileiros, juristas e pensadores, como Miguel Reale, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, dentre diversos que poderiam ser aqui citados.
Há até matéria específica nas faculdades de Direito para estudar o assunto – a Teoria Geral do Direito – que faz a dicotomia e estuda os pormenores do direito público e do direito privado e suas dezenas de variações e subclassificações.
Se ainda há certa confusão doutrinária e técnica na classificação do que seja público e privado e várias situações podem ser inseridas e compreendidas como sendo mescla entre esses dois conceitos, mais rebuliço acontece no dia a dia prático das pessoas, que quase sempre desconhecem a sinuosidade e largueza da teoria jurídica que vige no Brasil, que se concretiza em leis, decretos, portarias, resoluções, instruções, pareceres, orientações ou qualquer outro nome que se dê às normas legais.
3. A inevitável e desejável evolução do direito administrativo
Com o passar do tempo o direito público avançou no seu aprofundamento técnico e abrangência cotidiana e hoje o direito administrativo é um dos protagonistas dos caminhos da sociedade brasileira – na qual ainda prevalece um Estado gordo -, o que aconteceu em razão da vanguarda e qualidade técnica dos autores que escreveram e escrevem sobre ele, da democratização promovida pela internet, da globalização das coisas e da evolução da discussão sobre política, inclusive as públicas, além de outros fatores que poderiam ser mencionados para contextualizar o que se pretende.
O cenário normativo brasileiro de hoje acerca do direito administrativo é assustador, dado ao esmiuçamento das previsões a serem cumpridas por quem se meter a besta em gerir algum equipamento público, movido por interesses filantrópicos e imbuídos de dever cívico e cidadania.
É claro que há que haver rigidez legal em relação a quem tiver objetivos menos republicanos e nobres e que visem a sua própria algibeira em detrimento do bem-estar comum e geral da população. E há.
Para ambos existe um arsenal jurídico engatilhado para fiscalizar as suas ações e enquadrar o mínimo desvirtuamento, mesmo que seja aquele provocado pela inacreditável burocracia atrapalhadora e impedidora da concretização de ações benéficas à população.
Afirme-se desde já para evitar qualquer mal-entendido ou conjecturas incorretas que isso não é ruim. Não necessariamente é ruim. Não se pode ser contrário, em sã consciência, à prevenção e previsão expressa da prática de ilícitos, e é obrigação de todos agir conforme as normas legais construídas pela sociedade.
Não se pode ignorar a discussão doutrinária acerca da imbricação entre o direito penal (econômico) e o direito administrativo, adjetivado como sancionador (punitivo). Não vamos nos ater à aplicação de sanções na via administrativa ou judicial, ou em ambas, concomitantemente, o que é defendido por alguns doutrinadores e refutado por outros.
Para não deixar de comentar este particular, mesmo que superficialmente, cite-se que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “Esta Corte Superior possui entendimento de que é possível a aplicação cumulativa das sanções previstas no art. 12 da Lei n. 8.429/92, observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, o que ocorreu no caso.”[3]
O relatório deste julgado transcreveu trecho do acórdão impugnado – e mantido – assim redigido:
A antiga redação do artigo 12, caput, da Lei 8.429/92 assim dispunha: “Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações: (...)” A Lei 12.120 de 2009 alterou a redação do caput do mencionado artigo, autorizando a aplicação de mais de uma pena, de acordo com a gravidade do fato, senão vejamos: “Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (...) (grifo meu)”. Fato é que a alteração trazida na lei buscou sanar uma omissão que deixava margem a largas discussões na doutrina e jurisprudência sobre possibilidade ou não de aplicação cumulativa das penas nos casos de improbidade a administrativa. A jurisprudência majoritária, antes mesmo da alteração, afirmava ser possível a aplicação cumulativa das penalidades. Ora, diante da existência inequívoca de improbidade administrativa, parece-me que houve razoabilidade e proporcionalidade na aplicação do disposto no artigo 12 da Lei 8.429/92, diante do inequívoco enriquecimento ilícito e da lesão ao erário. (grifos no original)
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.386.409
4. Quem é o dirigente?
Quem dirige uma entidade do Terceiro Setor (o dirigente) é responsável por dar o caminho a ser seguido por ela; é quem a governa, comanda, administra, decide, define pagamentos e posições estratégicas, enfim, é o guia no cumprimento das finalidades previstas no estatuto. É quem assume os riscos inerentes ao desenvolvimento de qualquer atividade.[4]
O dirigente pode ser identificado como qualquer pessoa que efetivamente pratica as ações inerentes aos atos acima mencionados, independentemente da sua denominação, podendo ser o presidente (normalmente) ou quaisquer diretores estatutários, o superintendente, o gerente, o procurador (Código Civil, art. 653), o preposto etc.
A diretoria estatutária da instituição é órgão colegiado composto por todos os cargos mencionados no seu estatuto. O presidente é o porta-voz das decisões daquelas pessoas, quando decidem os assuntos em reunião, e também atua isoladamente no exercício das suas funções – previstas no estatuto – o que atrai para ele as consequências jurídicas dos (e pelos) seus atos.
Eis decisão judicial que mostra o alargamento da abrangência do conceito de dirigente: “O CTN, no inciso III do Art. 135, impõe responsabilidade, não ao sócio, mas ao gerente, diretor ou equivalente. Assim, sócio-gerente é responsável não por ser sócio, mas por haver exercido a gerência.”[5]
Todas as pessoas que possuam poder de decidir alguma coisa e assumir riscos podem ser classificados como dirigente, o que irá depender do caso concreto a ser analisado e enfrentado e das circunstâncias fáticas que contextualizaram aquela postura, logicamente.
4.1 Atividades do dirigente
[4] TEIXEIRA, Josenir. A responsabilidade jurídica dos dirigentes de entidade do Terceiro Setor. Revista de Direito do Terceiro Setor – RDTS, Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 9-32, jan./jun. 2008. [5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 86.439/ES.
Deve o dirigente exercer seus atos de gestão com competência, eficiência, honestidade, diligência[6] (cuidado, zelo, interesse – art. 1.011[7] do Código Civil, por analogia), lealdade[8] (fidelidade, sigilo, manter reserva sobre os negócios da entidade), reportando as informações[9] necessárias (relatório, comunicação, números etc.) a quem de direito e cumprir fielmente a lei, o estatuto e as demais normas internas inerentes à sua atividade, sem preterir qualquer grupo ou categoria de associados, evitando conflito de interesse[10] (o pessoal versus o da entidade – art. 117[11] do Código Civil – devendo o dirigente declarar à entidade a extensão de interesse seu que seja conflitante com o da instituição) no exercício de suas funções.
[6] BRASIL. Lei n. 6.404/76, Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios. Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.
1º O administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres.
2° É vedado ao administrador: a) praticar ato de liberalidade à custa da companhia; b) sem prévia autorização da assembleia-geral ou do conselho de administração, tomar por empréstimo recursos ou bens da companhia, ou usar, em proveito próprio, de sociedade em que tenha interesse, ou de terceiros, os seus bens, serviços ou crédito; c) receber de terceiros, sem autorização estatutária ou da assembleia-geral, qualquer modalidade de vantagem pessoal, direta ou indireta, em razão do exercício de seu cargo.
3º As importâncias recebidas com infração ao disposto na alínea c do § 2º pertencerão à companhia.
4º O conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.
[7] BRASIL. Código Civil (Lei n. 10.406/02), Art. 1.011. O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.
1oNão podem ser administradores, além das pessoas impedidas por lei especial, os condenados a pena que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos; ou por crime falimentar, de prevaricação, peita ou suborno, concussão, peculato; ou contra a economia popular, contra o sistema financeiro nacional, contra as normas de defesa da concorrência, contra as relações de consumo, a fé pública ou a propriedade, enquanto perdurarem os efeitos da condenação.
2º. Aplicam-se à atividade dos administradores, no que couber, as disposições concernentes ao mandato.
[8] BRASIL, Lei n. 6.404/74, Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: I - usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo; II - omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia; III - adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir.
1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários.
2º O administrador deve zelar para que a violação do disposto no § 1º não possa ocorrer através de subordinados ou terceiros de sua confiança.
3º A pessoa prejudicada em compra e venda de valores mobiliários, contratada com infração do disposto nos §§ 1° e 2°, tem direito de haver do infrator indenização por perdas e danos, a menos que ao contratar já conhecesse a informação.
Independentemente de quem for identificado como dirigente, a pessoa que se propuser a assim atuar e desenvolver tais atividades deve ter por norte e postura o respeito às leis (compliance = programa de integridade), ao estatuto e a todas as demais normas que lhe forem aplicáveis, o exercício regular do poder e dos atos de gestão[12], o respeito aos limites de atuação que lhe forem impostos e evitar conflitos entre os seus interesses pessoais e os da entidade (vejam as acusações nesse sentido que estão sendo imputadas a Carlos Ghosn – ex-presidente da aliança Nissan-Renault-Mitsubishi – pelas autoridades japonesas), sem tirar nenhum tipo de vantagem pessoal e não causando dano ou prejuízo a terceiros, em princípio ele não será responsável perante a entidade ou terceiros[13] e a situação não interessará ao mundo jurídico, eis que os comandos legais cogentes estão sendo observados. E tais atos, assim exercidos, obrigam a pessoa jurídica, conforme prevê o art. 47[14] [15] do Código Civil.
4o. (incluído pela Lei n. 10.303/01) – É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. [9] BRASIL, Lei n. 6.404,76, Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular. (...) 2º Os esclarecimentos prestados pelo administrador poderão, a pedido de qualquer acionista, ser reduzidos a escrito, autenticados pela mesa da assembleia, e fornecidos por cópia aos solicitantes. 3º A revelação dos atos ou fatos de que trata este artigo só poderá ser utilizada no legítimo interesse da companhia ou do acionista, respondendo os solicitantes pelos abusos que praticarem. (...) [10] BRASIL, Lei n. 6.404/74, Art. 156. É vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse. 1º Ainda que observado o disposto neste artigo, o administrador somente pode contratar com a companhia em condições razoáveis ou equitativas, idênticas às que prevalecem no mercado ou em que a companhia contrataria com terceiros. 2º O negócio contratado com infração do disposto no § 1º é anulável, e o administrador interessado será obrigado a transferir para a companhia as vantagens que dele tiver auferido. [11] BRASIL, Código Civil (Lei n. 10.406/02), Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo. Parágrafo único. Para esse efeito, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido subestabelecidos. [12] BRASIL, Lei n. 6.404/76, Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto.
A situação passará a interessar ao Direito quando o dirigente descumprir obrigações legais, normas internas (decisões das assembleias gerais e da diretoria, por exemplo, além do estatuto) e/ou funcionais, agir com excesso de poder e causar dano ou prejuízo a terceiros, inclusive e principalmente, nos dias de hoje, ao governo, em todas as suas esferas, e à sociedade, no sentido lato.
José Eduardo Sabo Paes[16] anota que “consagrou-se nas pessoas jurídicas em geral o regime de responsabilidade dos administradores pelos excessos, abusos ou violação da lei, do contrato ou do estatuto.”
Pode ser entendido como excesso de poder a prática de ato a) para o qual não foi autorizado, b) que extrapola os poderes que lhe foram outorgados, c) que foge ao padrão da normalidade e à praxe dos negócios, d) que infrinja a lei, o contrato ou o estatuto.
Há certa carga de subjetivismo nas situações acima exemplificadas, o que permite e pode justificar a abertura de procedimentos investigativos que são muito invasivos contra as pessoas, no que diz respeito à aplicação de restrições imediatas de toda ordem, antes mesmo da conclusão acerca da prática ou não de ilegalidades, o que certamente exporá os dirigentes de forma desproporcional e vexatória, principalmente quando se comprovar a sua inocência, dali a alguns anos.
[13] “A regra no Egrégio STJ, em tema de responsabilidade patrimonial secundária é a de que o redirecionamento da execução fiscal, e seus consectários legais, para o sócio-gerente da empresa, somente é cabível quando reste demonstrado que este agiu com excesso de poderes, infração à lei ou contra o estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa.” BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 610.216/PR. [14] BRASIL, Código Civil (Lei n. 10.406/02), Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo. [15] DINIZ, Maria Helena. Novo Código Civil Comentado – Coordenador: Ricardo Fiúza. São Paulo: Saraiva, 2002. [16] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações e Entidades de Interesse Social, Aspectos jurídicos, administrativos, contábeis e tributários. 5. ed. rev. atual. e ampl. de acordo com a Lei 10.406/02. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.
5. A equiparação do gestor privado ao agente público quando há verba pública envolvida
A Lei 8.429, de 1992, é conhecida como LIA – Lei de Improbidade Administrativa – e dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional.
Ela define “agente público”, no seu artigo 2º, como “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”, que são “a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual” (artigo 1º).
O artigo 1º da lei ressalva, logo no início da sua redação, que “Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, (…)”, o que dá sustentação legal para punir a pessoa que exerce suas funções de forma privada, no setor privado, contratado por qualquer forma diferente do concurso público, seja como empregado (art. 3º do Decreto-Lei 5.452/43), trabalhador autônomo (art. 4º da Lei 3.807/60 e, por analogia, art. 11, V, g e h, da Lei 8.213/91), prestador de serviços (art. 593 e seguintes da Lei 10.406/02), inclusive por meio de pessoas jurídicas (art. 44 da Lei 10.406/02) ou cooperativa (art. 1.093 e seguintes da Lei 10.406/02), e que atua com o gerenciamento de dinheiro proveniente dos cofres públicos.
Os artigos 3º e 4º da LIA são redigidos exatamente neste sentido e não deixam dúvidas acerca do alcance das suas previsões à pessoa que pratica crimes, mesmo não sendo agente público por enquadramento direto:
Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta. Art. 4° Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
O Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) foi alterado pela Lei 9.983/00, que incluiu o parágrafo primeiro ao artigo 327, assim redigido:
Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.
1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (...)
O judiciário sacramentou essa possibilidade em diversos julgados, como por exemplo o que decidiu, em 2004, que
O conceito de agente público se estende aos médicos e administradores de entidade hospitalar privada que administram recursos públicos provindos do Sistema Único de Saúde”, cuja ementa foi “Recurso Especial. Direito Penal. Médicos e administradores de entidade hospitalar privada. Agentes públicos por equiparação. Artigo 327, parágrafo 1º, do Código Penal.[17]
Esta decisão judicial traz no seu bojo a indicação de outros precedentes para sustentar que “esta Corte Federal Superior firmou já entendimento no sentido de que o conceito de agente público se estende aos médicos e administradores de entidade hospitalar privada que administram recursos públicos do Sistema Único de Saúde” e citou:
Na trilha do pensamento desta Casa, o profissional médico que participa do Sistema Único de Saúde, por meio de convênio ou contrato, se enquadra na previsão do art. 327 do Código Penal, ou seja, considera-se funcionário público por equiparação.[18] Os médicos e administradores de hospitais particulares participantes do sistema único de saúde exercem atividades típicas da Administração Pública, mediante contrato de direito público ou convênio, nos termos do § 1º do art. 199 da Constituição da República, equiparando-se, pois, a funcionário público para fins penais, nos termos do § 1º do art. 327 do Código Penal.[19] Enquadra-se no conceito de funcionário público, para fins penais, todo aquele que exercer função pública, temporária ou permanente, a título oneroso ou gratuito, ainda que a mesma seja delegada. Inteligência do art. 327 do Código Penal, preconizada mesmo antes do advento da Lei N.º 9.983/2000. Administradores de hospital conveniado ao SUS e médicos que atendem pacientes segurados por esta Autarquia estão inseridos nesta concepção, por exercerem função pública delegada.[20] 3. Hospitais e médicos conveniados ao SUS que além de exercerem função pública delegada, administram verbas públicas, são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa.[21]
[17] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 412.845/RS. [18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 12.405/SC. [19] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 331.055/RS. [20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 15.081/RS. [21] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 495.933/RS.
Para ilustrar ainda mais o que se está a dizer, cita-se uma decisão, de várias, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que menciona na sua ementa a situação específica aqui tratada:
2. Não fora isso, os precedentes afirmam que hospitais e seus dirigentes, e médicos conveniados do SUS, que exerçam funções delegadas, administrando verbas públicas, podem responder por improbidade administrativa, como servidores públicos por extensão legal (Lei 8.429/92, art. 2º).
3. Comprovadas, documentalmente, no âmbito do hospital apelante, irregularidades nas AIHs auditadas e na aplicação das verbas repassadas pelo SUS, causando prejuízo ao erário federal, é de confirmar-se a sentença que o condenou ao ressarcimento. (...)[22]
Dúvida nenhuma há, portanto, acerca da aplicação das normas jurídicas inerentes especificamente aos agentes e servidores públicos aos gestores privados, por extensão, quando estes administrarem dinheiros públicos.
Por curiosidade, convém mencionar que o gestor privado, na condição de gerenciador de verba pública e que eventualmente for acusado de malversação dela, não poderá figurar sozinho como réu do processo sem a companhia de pelo menos um agente público responsável pelo ato reputado como ilícito.
É o que afirma Fernão Justen de Oliveira, que defende que “o particular não pode ser processado sozinho por improbidade administrativa, embora sujeite-se a sanções previstas em outras disposições legais.” Comenta ele:
O sujeito ativo por excelência da improbidade administrativa é o agente público que a comete em perspectiva primária. É ele quem pratica o ato, sozinho ou com a participação de terceiro. 10 Sob tal aspecto, é intuitivo que, para praticar o ato ímprobo, o terceiro deverá necessariamente estar em companhia da pessoa física ou jurídica que integra a estrutura formal da Administração – o que determina a legitimidade passiva sempre acessória do terceiro, em relação à do agente público.[23]
O posicionamento doutrinário acima imediatamente indicado foi firmado em razão do caso concreto envolvendo Guilherme Fontes Filmes Ltda. e outros, “pela malversação de recursos públicos (R$ 51.034.617,02) oriundos da renúncia fiscal concedida pela Administração Federal, previstos na Lei Federal de Incentivo à Cultura, Lei nº 8.213/93, e na Lei do Audiovisual, Lei nº 8.685/93, em razão da não apresentação no formato pactuado da obra, para a realização da qual captaram os recursos, bem como pela irregular prestação de contas.” (fl. 03)
[22] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação n. 1106166.2009.401330. [23] OLIVEIRA, Fernão Justen de. “Chatô, o rei do Brasil” e improbidade administrativa em agente público. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo – ReDAC vol. 19 (julho-agosto 2015)
Eis a ementa do julgamento do caso, definida pelo Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PROPOSTA APENAS CONTRA PARTICULAR. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. AUSÊNCIA DE AGENTE PÚBLICO NO POLO PASSIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO. PRECEDENTES. I – A abrangência do conceito de agente público estabelecido pela Lei de Improbidade Administrativa encontra-se em perfeita sintonia com o construído pela doutrina e jurisprudência, estando em conformidade com o art. 37 da Constituição da República. II - Nos termos da Lei n. 8.429/92, podem responder pela prática de ato de improbidade administrativa o agente público (arts. 1º e 2º), ou terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta (art. 3º). III - A responsabilização pela prática de ato de improbidade pode alcançar terceiro ou particular, que não seja agente público, apenas em três hipóteses: a) quando tenha induzido o agente público a praticar o ato ímprobo; b) quando haja concorrido com o agente público para a prática do ato ímprobo; ou c) tenha se beneficiado com o ato ímprobo praticado pelo agente público. IV – Inviável a propositura de ação de improbidade administrativa contra o particular, sem a presença de um agente público no polo passivo, o que não impede eventual responsabilização penal ou ressarcimento ao Erário, pelas vias adequadas. Precedentes. V – Recurso especial improvido.[24]
Do voto vencedor construído pela ministra Regina Helena Costa extraímos as seguintes passagens, que poderão ser invocadas pelos gestores de entidades filantrópicas a seu favor, por analogia e dependendo do caso concreto no qual eventualmente estejam envolvidos:
(...) A questão federal sob exame diz com a amplitude do conceito de agente público, para fins de responsabilização de particular por ato de improbidade administrativa, bem como a possibilidade de o particular ser responsabilizado pela prática de ato de improbidade sozinho, isoladamente, ou seja, sem ter atuado em conjunto com algum agente público. (...) Nesse contexto, consoante inteligência do art. 37 da Constituição da República, após a Emenda Constitucional n. 18/98, agentes públicos constitui gênero, que compreende os agentes políticos, os servidores públicos, os militares e os particulares em colaboração com o Poder Público, como os delegatários, concessionários e permissionários do serviço público, ou seja, aqueles que agem em nome do Estado e desempenham funções estatais. (...) O dispositivo transcrito [art. 3º Lei 8.429/92] deixa claro que a responsabilização pela prática de ato de improbidade pode alcançar terceiro ou particular, que não seja agente [24] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.405.748/RJ. público, em apenas em três hipóteses: a) quando tenha induzido o agente público a praticar o ato ímprobo; b) quando haja concorrido com o agente público para a prática do ato ímprobo; ou c) tenha se beneficiado com o ato ímprobo praticado pelo agente público. Impende anotar que as condutas consistentes em induzir e concorrer, não podem ser praticadas sem outra pessoa; quem induz, induz alguém; e quem concorre, só pode concorrer com a conduta de outrem, que no caso, tem que ser agente público. Por seu turno, a expressão aquele que tenha se beneficiado, direta ou indiretamente, também diz com benefício advindo da conduta de outrem, que, como repisado, só pode ser um agente público. Em resumo, nos expressos termos da Lei n. 8.429/92, podem responder pela prática de ato de improbidade administrativa o agente público (arts. 1º e 2º), ou terceiro que induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta (art. 3º). Da interpretação sistemática e teleológica da Lei n. 8.429/92, verifica-se que os conceitos de agente público e ato de improbidade administrativa estão necessariamente atrelados, de sorte que não existe a possibilidade de imputação exclusiva, a quem não seja agente público, da prática de ato de improbidade administrativa. Outrossim, tratando-se de matéria sancionatória, não é possível aplicar-se interpretação extensiva ao conceito de agente público, para alcançar particulares que não se encontra no exercício de função estatal, desprezando-se conceito forjado ao longo tempo pela doutrina e jurisprudência e incorporado no direito positivo. (...) No presente caso, em que pesem a gravidade dos fatos descritos pelo Ministério Público, a Ação de Improbidade Administrativa foi proposta exclusivamente contra particulares, que não se enquadram no conceito, já amplo, de agente público. Daí que, não havendo imputação de ato ímprobo a nenhum agente público, o juízo de primeiro grau extinguiu o feito sem resolução de mérito, sentença mantida, pelos mesmos fundamentos, pelo Tribunal de origem. Diante dos fundamentos apresentados, inviável a propositura de Ação de Improbidade Administrativa contra o particular, sem a presença de um agente público responsável pelo ato questionado no polo passivo da demanda, o que não impede a atuação do Parquet no tocante à eventual responsabilização penal e ressarcimento ao Erário, pelas vias adequadas.
6. A necessária limitação da ação do gestor diante do cenário jurídico-normativo
Já ouvi de um político que “a burocracia protege”. Estranhei a fala naquela época, mas as casuísticas vivenciadas e o amadurecimento profissional mostram que ele estava certo.
Outro aprendizado: mesmo que a burocracia impeça a boa aplicação dos recursos públicos, limite a quantidade de destinatários deles e desautorize a prática de ação que seja boa para a população, o gestor não deverá executar a atividade, pois ele irá pagar caro pela inobservância dela (da burocracia) e das regras de cabresto que as normas contêm. Paciência. É assim que o sistema funciona e a culpa disso não é do gestor, público ou privado.
De boas intenções o inferno está cheio e não serão elas (as boas ações) os álibis suficientes para contornar ou justificar o descumprimento de uma burocracia e impedir que um gestor bem-intencionado tenha o seu patrimônio bloqueado ou que seja preso em razão disso.
Em abril de 2019, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP) divulgou o resumo das suas atividades do primeiro trimestre de 2019 e informou que os 2.663 processos julgados na primeira instância culminaram com a condenação dos gestores em devolver R$ 20.668.329,21 aos cofres públicos, em razão da sua má utilização por eles, segundo sustenta aquela Corte.[25]
É bem provável que nesse enorme universo de processos e de valores estejam inseridos gestores que agiram bom boa-fé, voluntariedade e boa vontade de ajudar o próximo mas que tenham descumprido regras burocráticas ou se descuidado de formalizar e comprovar a destinação e os gastos que fez utilizando verbas públicas. E eles pagarão muito caro pelos deslizes operacionais, inclusive com a devolução do dinheiro público gasto – em qualquer tempo, pois é imprescritível -, além da aplicação de sanções administrativas, penais e civis.
É óbvio que os desvios realizados por má-fé e produtos de interesse e atitude criminosos, eventualmente existentes dentro do universo de processos julgados pelo TCE/SP, terão que ser rigorosa e exemplarmente punidos.
As Cortes de Contas têm à sua disposição um processo administrativo formalizado, com rito próprio, para apurar responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública a fim de obter o respectivo ressarcimento, chamado Tomada de Contas Especial[26] [27] [28], que é bastante utilizado. Cada vez mais, na verdade.
7. Imprescritibilidade de ressarcimento ao erário
[25] Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Comunicado SDG nº 12/2019, de 08.04.2019. [26] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Instrução Normativa n. 71/2012, que prevê: Art. 2º Tomada de contas especial é um processo administrativo devidamente formalizado, com rito próprio, para apurar responsabilidade por ocorrência de dano à administração pública federal, com apuração de fatos, quantificação do dano, identificação dos responsáveis e obter o respectivo ressarcimento. Parágrafo único. Consideram-se responsáveis pessoas físicas ou jurídicas às quais possa ser imputada a obrigação de ressarcir o Erário. [27] BRASIL. Lei Complementar n. 709/93, do Estado de São Paulo, que dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado. [28] BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Resolução n. 03/02.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa”[29], em decorrência da ressalva estabelecida no parágrafo 5º do artigo 37 da Constituição Federal, e da necessidade de proteção do patrimônio público.
Para tal configuração, a improbidade deverá ser necessariamente dolosa, ou seja, quando o ato de improbidade decorrer em enriquecimento ilícito, favorecimento ilícito de terceiros ou causar dano intencional à administração pública.
Esta decisão é polêmica e a votação por seis a cinco, no Supremo Tribunal Federal, retrata bem isso. A Corte Suprema andou mal ao assim decidir e trouxe enorme insegurança jurídica às pessoas que desenvolvem atividades no setor público e no privado – que recebem repasse de verba pública – pois tornou eterna a possibilidade de serem cobrados por atos praticados durante a sua gestão, ao bel prazer e interesse da autoridade da vez.
8. Os princípios constitucionais
Todo gestor deve desenvolver sua atividade com seriedade, competência e rigor e respeitar integralmente as imensuráveis normas jurídicas existentes, dentre elas, e principalmente, os princípios gerais jurídicos constitucionais.
A Constituição Federal (CF) brasileira de 1988 positivou no seu texto princípios que devem ser obrigatoriamente seguidos por qualquer pessoa que pretenda exercer alguma função ou se relacionar com a administração pública ou mesmo desenvolver atividade privada mas que tenha correlação ou financiamento de dinheiro público.
E todos os princípios, juntos ou separados, serão invocados e estarão presentes quando houver qualquer tipo de denúncia das autoridades contra alguém em razão de pretenso ou efetivo desvio ou malversação (má administração) de dinheiro público.
Eis os tais princípios jurídicos constitucionais, para que o leitor compreenda a abrangência dos seus conteúdos:
[29] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 852.475/SP.
ECONOMICIDADE – é a possibilidade de promover resultados com o menor custo possível. (CF, art. 70)
EFICIÊNCIA – é a consequência esperada da realização correta e adequada das funções, atribuições e/ou atividades pelas pessoas a partir da utilização dos recursos disponíveis da melhor forma possível visando a obtenção de resultados positivos e qualidade satisfatória dos serviços. (CF, art. 37)
IMPESSOALIDADE – é a obrigação de tratar todos igualmente e agir de forma a não identificar, discriminar, direcionar ou privilegiar alguém no exercício da atividade, devendo ser mantida a necessária imparcialidade, exigindo-se tratamento equânime e neutralidade, abominando-se favoritismos e restrições indevidas. (CF, art. 37)
IMPROBIDADE – é a prática de atos ou realização de ações com desonestidade, mau caráter, má índole, falta de honradez e de lisura. (CF, art. 37, § 4º)
LEGALIDADE – é aquilo que provém da lei e que está dentro dela. (CF, arts. 5º, II, e 37)
MORALIDADE – é o comportamento do ser humano dentro da sociedade a partir de um conjunto de valores, normas e noções indicativas sobre o que é certo ou errado, proibido ou permitido, que constitui o conceito de moral. (CF, art. 37)
PUBLICIDADE – é a divulgação pública (sem qualquer sigilo ou restrição) de informações em geral que permita às pessoas o acesso completo a qualquer dado que tenha interesse para possibilitar o acompanhamento do desenvolvimento da atividade, da conduta dos agentes públicos, e o exercício da fiscalização sobre todos os aspectos dos negócios realizados que envolvam verbas públicas. (CF, art. 37)
A TRANSPARÊNCIA é a qualidade do que é transparente, ou seja, que se pode ver através de alguma coisa de forma translúcida. Ela não foi tratada de forma específica nem expressa na Constituição Federal, mas claramente decorre do entendimento e da aplicação do princípio da PUBLICIDADE, previsto no artigo 37 dela. Além deste artigo, a TRANSPARÊNCIA também pode ser enquadrada no art. 5º, XXXIII, XXXIV, LX e LXXII, da CF.
Cite-se também a Lei de Acesso à Informação (LAI), n. 12.527/11, que dispõe sobre os procedimentos a serem observados pelas entidades públicas e também privadas nela mencionadas “com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.” (art. 1º)
Prevê o artigo 3º da LAI:
Art. 3o Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; V - desenvolvimento do controle social da administração pública.
9. O amplo alcance da legislação infraconstitucional de enquadramento das atividades do gestor
Além da Constituição, várias normas jurídicas infraconstitucionais preveem a obrigatoriedade de observância irrestrita aos princípios acima mencionados, inclusive e especialmente a Lei n. 8.666/93 (lei de licitações), que regulamenta o art. 37, XXI, da Constituição Federal, e prevê:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Apesar de muito criticada desde a sua edição, em 1993, há vinte e seis anos, portanto, ainda é esta lei o norte a ser seguido pelas pessoas que exercem atividades ou cargos no âmbito da administração pública ou em entidades privadas que realizam funções públicas.
Diz o texto desta lei, a respeito da sua aplicação:
Art. 1o. Esta Lei estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. [...] Art. 2o. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
E esta lei n. 8.666/93 também prevê uma série de circunstâncias e atos que devem ser evitados pela pessoa que atua no gerenciamento da coisa pública, inclusive verba.
É prudente transcrever o texto para que o leitor não afeito às normas legais leia e conheça diretamente na fonte todas as situações criadas pela norma e constatar a amplitude com a qual ela é redigida.
Prevê referida lei:
Art. 83. Os crimes definidos nesta Lei, ainda que simplesmente tentados, sujeitam os seus autores, quando servidores públicos, além das sanções penais, à perda do cargo, emprego, função ou mandato eletivo. Art. 84. Considera-se servidor público, para os fins desta Lei, aquele que exerce, mesmo que transitoriamente ou sem remuneração, cargo, função ou emprego público. Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade: Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público. Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Art. 92. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121 desta Lei: Pena - detenção, de dois a quatro anos, e multa. Parágrafo único. Incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais. Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Art. 94. Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo: Pena - detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa. Art. 95. Afastar ou procurar afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar, em razão da vantagem oferecida. Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente: I - elevando arbitrariamente os preços; II - vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; III - entregando uma mercadoria por outra; IV - alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida; V - tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato: Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Art. 97. Admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração. Art. 98. Obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Veja-se que a quantidade de ações estampadas nos vários verbos usados pela lei não deixa dúvidas que é bastante complexa, restrita e burocrática a atuação no trato com a coisa pública, ainda mais quando envolve a administração direta ou transferência de dinheiro público para terceiros gerenciarem.
Somam-se a tais previsões legais algumas situações que o legislador definiu que se caracterizam como crime e que são bastante comuns nas acusações feitas a agentes públicos ou privados que exercem função pública. Prevê o Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848/40):
Peculato Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa. 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário. Peculato culposo 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta. Peculato mediante erro de outrem Art. 313 - Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. Corrupção passiva Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional. 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. Tráfico de Influência Art. 332 - Solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada da metade, se o agente alega ou insinua que a vantagem é também destinada ao funcionário. Corrupção ativa Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.
A transcrição do texto legal é importante para que o leitor conheça as minúcias e variedades linguísticas com as quais as redações são feitas, de forma a abranger todas as posturas que podem constituir na prática de crime.
Nessa linha de pensamento, cite-se o texto da Lei 9.613/98, alterada pela Lei 12.683/12, que dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, dentre outros, que inclusive traz regras de medidas assecuratórias:
Lavagem de dinheiro Art. 1o. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. 1o. Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: I - os converte em ativos lícitos; II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. 2o. Incorre, ainda, na mesma pena quem: I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal; II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei. 3º. A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal. 4o. A pena será aumentada de um a dois terços, se os crimes definidos nesta Lei forem cometidos de forma reiterada ou por intermédio de organização criminosa. 5o. A pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Art. 4o O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação do delegado de polícia, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, havendo indícios suficientes de infração penal, poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes. 1o Proceder-se-á à alienação antecipada para preservação do valor dos bens sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para sua manutenção. (...) 4o Poderão ser decretadas medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente ou da prevista nesta Lei ou para pagamento de prestação pecuniária, multa e custas. Art. 7º São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal: I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; II - a interdição do exercício de cargo ou função pública de qualquer natureza e de diretor, de membro de conselho de administração ou de gerência das pessoas jurídicas referidas no art. 9º, pelo dobro do tempo da pena privativa de liberdade aplicada.
Não poderia ficar de fora desta breve relação a transcrição de alguns artigos da LIA – Lei de Improbidade Administrativa – (n. 8.429/92), que traz enorme e detalhado rol de ações e atividades que são consideradas crime, conforme constam dos artigos abaixo transcritos, vários deles incluídos pelas leis 12.120/09, 13.019/14, 13.204/15 e 13.650/18:
Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público; II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado; III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado; IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades; V - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem; VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; VII - adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade; IX - perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza; X - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado; XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei; XII - usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei. Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: I - facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei; II - permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; III - doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistências, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie; IV - permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades referidas no art. 1º desta lei, ou ainda a prestação de serviço por parte delas, por preço inferior ao de mercado; V - permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado; VI - realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea; VII - conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente; IX - ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento; X - agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público; XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular; XII - permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente; XIII - permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem como o trabalho de servidor público, empregados ou terceiros contratados por essas entidades. XIV – celebrar contrato ou outro instrumento que tenha por objeto a prestação de serviços públicos por meio da gestão associada sem observar as formalidades previstas na lei; XV – celebrar contrato de rateio de consórcio público sem suficiente e prévia dotação orçamentária, ou sem observar as formalidades previstas na lei. XVI - facilitar ou concorrer, por qualquer forma, para a incorporação, ao patrimônio particular de pessoa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidades privadas mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; XVII - permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou valores públicos transferidos pela administração pública a entidade privada mediante celebração de parcerias, sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; XVIII - celebrar parcerias da administração pública com entidades privadas sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie; XIX - agir negligentemente na celebração, fiscalização e análise das prestações de contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas; XX - liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular. XXI - liberar recursos de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer forma para a sua aplicação irregular.
Além das amplíssimas situações acima descritas, veja-se a vastidão das previsões constantes na Lei Anticorrupção (n. 12.846/13) a respeito dos atos praticados pela pessoa jurídica:
Art. 5o Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos: I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei; III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados; IV - no tocante a licitações e contratos: a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo; d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo; f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública; V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.
É no decreto 8.420/15, que regulamenta a Lei 12.846/13, que está a definição do que seja programa de integridade, ou compliance, como também é conhecido, em dispositivo assim redigido:
Art. 41. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Parágrafo Único. O programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual por sua vez deve garantir o constante aprimoramento e adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.
Observe atentamente o leitor que a redação do texto das normas legais evoluiu muito nos últimos anos para prever de forma absolutamente detalhada e dilatada as várias situações entendidas como indevidas de serem praticadas pelas pessoas, tornando crime diversas posturas e ações dos gestores que, se não forem conhecidas nas suas minudências, poderão levá-lo para a cadeia, não só a longo prazo mas também de imediato, em razão da larga utilização do expediente das prisões temporária e preventiva, antes da condenação criminal, conforme autoriza a legislação penal.
10. A necessária prestação de contas completa e pormenorizada pelo gestor
O relacionamento entre o gestor de entidade privada que recebe repasse de verbas públicas deve ser pautado pela transparência e estrito cumprimento do que está escrito no instrumento jurídico que o norteia.
Não há qualquer espaço de manobra ou discricionariedade para que o gestor altere o plano de trabalho que irá obrigatoriamente conduzir a parceria ou mesmo a prestação de serviços entabulada.
O gestor deve literal obediência aos termos do que foi pactuado, mesmo que exista alguma besteira neles. Identificada esta, cabe às partes elaborar e assinar aditamento para alterar ou adequar a situação ou a meta à realidade e somente a partir daí mudar o que até então estava sendo (obrigatoriamente) praticado.
Nunca o gestor deve realizar qualquer atividade que não esteja expressamente prevista no instrumento jurídico e seus anexos que orienta o relacionamento entre as partes, pois a consequência dessa inobservância pode ser catastrófica.
A lei é rigorosa, fria e inflexível e não há oportunidade nela para criatividade ou desvio acerca do que está textualmente combinado entre os signatários do instrumento jurídico que rege o relacionamento entre eles.
As parcerias entre as entidades privadas e o poder público devem obrigatoriamente passar e vencer quatro fases clássicas e claras: a) planejamento (plano de trabalho detalhado); b) execução (demonstrativo de receitas e despesas); c) controle (prestação de contas) e d) avaliação (fiscalização).
A prestação de contas é o ato administrativo praticado pelo dirigente da entidade recebedora de verbas públicas que visa mostrar a quem quer que seja que as atividades constantes do instrumento jurídico de parceria ou de prestação de serviços foram desempenhadas a contento, que as metas foram atingidas ou apresentar as justificativas para não terem sido, se for o caso, e que o relacionamento se mostrou exitoso para ambas as partes e também para os destinatários delas, ou seja, o público-alvo.
Não se deve economizar nas explicações, planilhas, tabelas e relatórios no momento da prestação de contas. A entidade deve produzir e reunir toda e qualquer informação e documento que justifique cada centavo do dinheiro público gasto, pois, se assim não fizer, os seus dirigentes serão denunciados por desvio de dinheiro público, independentemente da quantidade dos centavos em relação aos quais não houve a correlação válida da sua utilização.
A Constituição Federal de 1988 prevê a obrigatoriedade de prestação de contas, em dispositivo assim redigido:
Art. 70. (...) Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.
Vinte e um anos antes da Constituição de 1988 já previa o Decreto-Lei 200, de 1967, em vigor:
Art. 84. Quando se verificar que determinada conta não foi prestada, ou que ocorreu desfalque, desvio de bens ou outra irregularidade de que resulte prejuízo para a Fazenda Pública, as autoridades administrativas, sob pena de corresponsabilidade e sem embargo dos procedimentos disciplinares, deverão tomar imediatas providência para assegurar o respectivo ressarcimento e instaurar a tomada de contas, fazendo-se as comunicações a respeito ao Tribunal de Contas.
O Tribunal de Contas da União decidiu sobre o assunto, conforme ementa abaixo transcrita:
TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. OMISSÃO NO DEVER DE PRESTAR CONTAS. CONTAS IRREGULARES. A omissão no dever de prestar contas impõe o julgamento pela irregularidade das contas e a condenação em débito do responsável, com aplicação de multa, não sendo acolhida alegações de defesa sem elementos que comprovem a correta aplicação dos recursos. [30]
Prevê a Lei 8.443/92, que dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de contas da União:
Art. 8° Diante da omissão no dever de prestar contas, da não comprovação da aplicação dos recursos repassados pela União, na forma prevista no inciso VII do art. 5° desta Lei, da ocorrência de desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos, ou, ainda, da prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao Erário, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá imediatamente adotar providências com vistas à instauração da tomada de contas especial para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano. 1° Não atendido o disposto no caput deste artigo, o Tribunal determinará a instauração da tomada de contas especial, fixando prazo para cumprimento dessa decisão. [30] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n. 1928/2005, 2ª Câmara. 2° A tomada de contas especial prevista no caput deste artigo e em seu § 1° será, desde logo, encaminhada ao Tribunal de Contas da União para julgamento, se o dano causado ao Erário for de valor igual ou superior à quantia para esse efeito fixada pelo Tribunal em cada ano civil, na forma estabelecida no seu Regimento Interno.
Prestação de contas “é o conjunto de documentos e informações disponibilizados pelos dirigentes das entidades aos órgãos interessados e autoridades, de forma a possibilitar a apreciação, conhecimento e julgamento das contas e da gestão dos administradores das entidades, segundo as competências de cada órgão e autoridade, na periodicidade estabelecida no estatuto social ou na lei.”[31]
Vê-se pela definição que prestar contas não significa juntar um punhado de documentos numa pasta e entregar a alguém. Não é isso.
Prestar contas é elaborar relatório detalhado, pormenorizado e categorizado de todas as atividades que foram desenvolvidas pela entidade com o emprego de verba pública; é confrontar as metas quanti e qualitativas estipuladas com as alcançadas e justificar o seu atingimento ou não; é elaborar tabelas e planilhas para facilitar o entendimento das informações pelo interlocutor e comprovar todas elas com os documentos reunidos de forma ordenada, cronológica e referenciada, de modo a permitir que o destinatário entenda e tenha poder de análise para concluir pela regularidade (ou não) da atuação da instituição.
A entidade deve prestar contas primeiro para si mesma, para os seus órgãos identificados no estatuto ou no regulamento e que compõem o sistema de governança corporativa interno. A diretoria executiva, normalmente a executora da atividade, deve prestar contas do projeto para a) a diretoria estatutária, b) o Conselho Fiscal, c) o Conselho de Administração, d) a auditoria interna, e) a auditoria independente externa e, se aprovada por todos essas autoridades internas, finalmente para f) a assembleia geral, para a aprovação final.
Essa ordem ou quantidade de etapas sugeridas poderá variar dependendo da organização interna da entidade. É absolutamente importante e primordial que as pessoas que forem avaliar e aprovar a prestação de contas da entidade
[31] BRASIL. Manual de Procedimentos para o Terceiro Setor – Aspectos de Gestão e de Contabilidade para Entidades de Interesse Social. José Antônio de França (coordenador); Álvaro Pereira de Andrade ... [et al.]. Brasília: CFC: FBC: Profis, 2015. p. 81 Disponível em http://portalcfc.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2013/01/Miolo_MTS_web.pdf Acesso 01 mai 2019 12h15.
internamente sejam diferentes daquelas que executaram o projeto, sob pena de incontornável mácula e visão míope e direcionada do fiscalizador.
É claro que a execução das atividades deve ser acompanhada diária, semanal e mensalmente pelos supervisores internos da entidade para assegurar que não haverá desvio de foco nem das metas e, se houver, que ele seja observado de imediato e aprumado.
É a correta execução diuturna das atividades combinadas com o ente político ou órgão público que será retratada e constituirá a matéria-prima da prestação de contas.
De nada vai adiantar se se perceber, ao final do prazo de vigência dos instrumentos jurídicos, que algo foi feito errado ou deixado de ser executado, pois a cronologia do tempo não retorna e impossibilita a correta prestação de contas, caso existissem metas periódicas a serem cumpridas. E se isso acontecer a entidade e os seus dirigentes poderão ter que enfrentar investigação das autoridades, que sempre vem acompanhada de acusações de prática de crimes, como consequência natural, diante do rigorismo das leis e da impetuosidade daquelas.
Somente após a superação da importante etapa interna acima retratada é que a prestação de contas deverá ser levada ao conhecimento das autoridades, tais como a Comissão de Avaliação e Fiscalização criada pelo ente político ou órgão público que firmou a parceria, a Câmara Municipal ou Assembleia Legislativa, se for o caso, ao Tribunal de Contas (municipal, estadual ou da União), ao Ministério Público, se de direito, aos órgãos de classe e a qualquer Conselho político que eventualmente tenha relação direta com o assunto, e também ao público em geral por meio do site da instituição, conforme determina a Lei de Acesso à Informação, n. 12.527/11.
A não comprovação do uso do dinheiro público na finalidade pretendida por meio da não apresentação da prestação de contas ou a sua elaboração de forma indevida ou insuficiente para se chegar a tal conclusão é o passo inicial para o início de investigação pelas autoridades, conforme possibilitam as várias normas jurídicas aqui transcritas, que podem produzir os resultados aqui também referidos, com a eventual prisão dos dirigentes e a perda do seu patrimônio em favor do ente político ou órgão público, diante da acusação de peculato, corrupção (ativa ou passiva), improbidade administrativa e lavagem de dinheiro da qual poderão ser alvo.
11. Conclusão
Pretendeu-se alertar o dirigente de entidade sem fins lucrativos sobre o enorme arsenal legal existente que o obriga a ser cada vez mais diligente e detalhista na sua forma de atuação e na comprovação da correta utilização de dinheiro público que receber, sob pena de punição administrativa, civil e penal, diante das várias alterações sofridas nas redações das leis e criação de novas para contemplar uma série de verbos como núcleos dos seus artigos e da crescente fiscalização promovida pelas autoridades, o que é salutar e bom para a sociedade como um todo.
A sanção é a essência do Direito, pois se não houver punição para o descumpridor da lei a sociedade na qual ele está inserido não se sustentará e os seus pilares desmoronarão.
Desde a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005, que teve o seu julgamento pelo Supremo Tribunal Federal em 2012, e depois a deflagração da Operação Lava Jato pela polícia federal em março de 2014, o Brasil tem vivenciado clima de apuração de ilícitos praticados, tendo por fio condutor o desvio de dinheiro público, em qualquer quantidade. E isso é bom.
As conclusões iniciais e precárias de algumas investigações têm sustentado o desencadeamento de operações policiais acompanhadas on line e ao vivo pela mídia adredemente avisada, que invariavelmente têm se valido da prisão temporária[32] ou preventiva para enquadrar os gestores de verbas públicas, ao invés de optarem pelos procedimentos específicos previstos pela legislação, que sugerem o seguimento da instrução dos processos por meio de depoimentos, colheita de provas, relatório da autoridade policial e envio dele ao Ministério Público, distribuição de processo-crime, se for o caso, cumprimento dos ritos a ele inerentes, sentença, recursos e a liturgia prevista na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional.
É óbvio, claro e evidente que não estamos nos referindo aos casos em que as investigações avançaram e concluíram que as pessoas realmente praticaram crimes. Este artigo não pretende subverter a ordem jurídica das coisas e apoia a punição de quem se desviar da ética e descambar para a realização de atos que infrinjam a lei.
[1] A condução coercitiva de investigados para depor perante autoridades está proibida pelo Supremo Tribunal Federal desde dezembro de 2017, por meio da decisão proferida na Medida Cautelar na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 444 (e também na de n. 395) proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Para evitar situações constrangedoras e a prática de crime, em última análise, é imprescindível que o gestor privado de verbas públicas se oriente e se informe a respeito dos limites da sua atuação, enquadre as suas ações dentro do rigorismo da lei e que preste contas de forma detalhada das suas atividades.
Agindo assim e tendo por norte pelo menos as normas legais aqui trazidas, além de várias outras a serem observadas, o gestor privado de verbas públicas poderá atuar com tranquilidade e em prol da melhoria de vida do seu semelhante.
Agradeço a grande valia deste artigo. Muito completo, rico, bem escrito. Só elogios..