Resumo: A irresponsabilidade e incompetência de entes políticos estão levando à bancarrota as entidades privadas sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais que até então eram suas parceiras na gestão de unidades públicas de saúde. Ou essa situação muda ou as entidades não sobreviverão à realidade que lhes estão sendo impostas, com gravíssima consequência para o agravamento do atendimento eficiente da população.
Dois componentes são imprescindíveis na área da saúde para que o atendimento das necessidades das pessoas seja possível: gestão e dinheiro.
E isso independe do responsável pelo gerenciamento da unidade de saúde, que tanto pode ser a administração pública direta e indireta, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, quanto a privada (via entidades sem fins lucrativos ou empresas com finalidade lucrativa) ou por quem quer que seja.
Sem o dinheiro suficiente, necessário e adequado não se pagam os fornecedores de materiais e medicamentos e insumos, honorários médicos, folha de pagamento e seus encargos, água, luz, internet, ambulância, alimentação dos pacientes e empregados e tudo o mais que compõe o vasto campo das despesas hospitalares que integram o chamado custeio mensal.
O relacionamento dos entes políticos com as entidades privadas sem fins lucrativos que são qualificadas por eles mesmos com o título de organização social se constitui numa ótima opção de modelo de gestão, dentre algumas existentes.
As entidades sem fins lucrativos que forem qualificadas como organização social não são meras prestadoras de serviços aos entes políticos. Quando estes e aquelas firmam o instrumento jurídico denominado contrato de gestão se estabelece entre eles parceria para que o atendimento da população seja viável e eficiente a partir da soma da expertise técnico-profissional delas com o dinheiro para pagamento do custeio feito pelo poder público, a partir da arrecadação dos impostos de todos nós.
O valor constante de respectiva cláusula (preço) a ser inserida no contrato de gestão é equivalente à quantia mensal das várias despesas que compõem o custeio da unidade de saúde (UPA, hospital, SAMU, AME, UBS etc.) a ser gerida pela entidade sem fins lucrativos, que foi previamente apresentado por ela na proposta técnico-financeira incluída no procedimento de chamamento público deflagrado pelo ente político interessado na formação da parceria e homologado por ele como apto e suficiente para realizar a administração pretendida.
Compõe o contrato de gestão, além das cláusulas normais neste tipo de relacionamento, aquela que determina que o repasse mensal da verba seja feita pelo ente político no tempo e modo combinados, visando o pagamento das despesas cujos valores, somados, constam da cláusula de preço de referido instrumento jurídico.
É por isso que o repasse pelo poder público não pode ser feito a menor, parcial e nem com atraso, pois as várias despesas que integram a rubrica custeio das unidades de saúde possuem datas para ser quitadas, como a folha de pagamento, por exemplo, que deve ser paga no 5º (quinto) dia útil do mês por determinação legal sob pena de incidência de multa legal, administrativa e convencional que, ressalte-se, não pode ser liquidada com o valor do custeio, mas com recursos próprios da entidade, como se isso fosse possível, na prática.
O cumprimento bilateral das obrigações constantes dos contratos de gestão firmados entre os entes políticos e as entidades sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais é obrigatório, necessário, imprescindível e determinante para que a parceria funcione a contento e produza os resultados inseridos nas metas com a qualidade esperada, que também estão descritas formalmente naquele instrumento jurídico.
É impossível às entidades parceiras cumprir as metas estabelecidas nos contratos de gestão sem que o repasse dos recursos financeiros seja feito no tempo e modo previstos em tais instrumentos jurídicos.
A assunção da responsabilidade pela realização dos repasses financeiros às entidades pelos entes políticos, nos contratos de gestão, constitui-se a principal obrigação do poder público, pois será unicamente com a verba repassada por ele que a organização social parceira pagará as despesas mensais geradas pelas unidades de saúde.
As despesas de custeio existem por causa da característica do serviço prestado pela unidade de saúde, a partir da observância obrigatória das várias normas legais que regulamentam tal nicho de mercado, constantes na Constituição, na legislação infraconstitucional, nas resoluções normativas, portarias e demais orientações expedidas pelo Ministério da Saúde e também pelas autarquias que possuem legitimidade para legislar sobre a atuação dos profissionais que exercem a sua profissão na área da saúde.
As despesas de custeio de uma unidade de saúde existem e continuarão a existir independentemente que quem a administrar, seja público ou privado, pois elas não estão vinculadas ao seu gestor, mas à atividade econômica em si ali desenvolvida.
O valor constante na cláusula do preço dos contratos de gestão se refere única e exclusivamente à quantidade de dinheiro necessária que deve ser repassada pelo ente político à organização social parceira para pagar as despesas (que formam o custeio) da unidade de saúde.
Por questão burocrática, legal e de logística inerente ao modelo de gestão – via organizações sociais – de unidades públicas de saúde por entidades privadas, o repasse é feito pelo poder público àquelas por meio da transferência dos valores para a conta corrente bancária aberta por elas especificamente para esse fim.
A rigor, não se trata de pagamento de valores para as entidades parceiras gerenciadoras das unidades de saúde, mas de repasse da quantia necessária para quitar as despesas mensais geradas em razão do desenvolvimento das atividades e da infraestrutura disponibilizada para o atendimento da população de determinada região.
Na prática, as entidades são as intermediárias responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados pelas pessoas que atuam num estabelecimento de saúde, a partir dos repasses feitos a elas pelos entes políticos.
Quando as mídias noticiam que determinado ente político possui dívida com uma organização social elas ignoram detalhes importantes da parceria estabelecida entre as entidades e o poder público, pois a rigor não existe dívida do poder público diretamente com elas, mas sim com os prestadores de serviços que atuaram (e atuam) na unidade de saúde.
Se o poder público descumpriu o contrato de gestão e não repassou a integralidade do valor combinado na data em que deveria fazê-lo, certa e consequentemente a entidade parceira deixou de pagar fornecedores e/ou prestadores de serviços, pois essa é justamente a lógica do relacionamento jurídico firmado entre as partes.
E é assim porque a unidade de saúde é pública, os pacientes são cidadãos detentores do direito fundamental à saúde (CF, art. 6º), a obrigação de entregar serviços preventivos e curativos de saúde para eles é do ente político (CF, art. 196), a verba destinada ao pagamento das despesas é pública, enfim, tudo é público, sendo que a entidade sem fins lucrativos é a parceira privada qualificada como organização social e selecionada para fazer com que a gestão e a logística de todo esse aparato se dê da melhor forma possível, a partir da sua expertise profissional e diante da utilização do previsto no art. 10, § 7º, do Decreto-Lei n. 200/67, pelo parceiro público, assim redigido:
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução. (sic)
É em razão disso que chocam as informações rotineiramente publicadas a respeito deste relacionamento nem sempre compreendido nas suas minúcias entre as organizações sociais e o poder público.
O jornal “O Popular”, de Goiânia/GO, na sua edição de 17.10.2018, publicou a seguinte manchete: “Dívidas com OSs da saúde somam 283 milhões – Valor se refere ao que o governo estadual deve para 18 unidades terceirizadas até o mês de setembro. No começo desta semana, montante estava em R$ 294 milhões.” (https://www.opopular.com.br/editorias/cidades – acesso em 23 out 2018, 12h05)
Constata-se, de pronto, o descumprimento das cláusulas do contrato de gestão por parte do ente político, sacrificando, dificultando e até impedindo a atuação eficiente da organização social parceira na gestão da unidade pública de saúde.
E também se constata que a dívida noticiada, a rigor, não é com a entidade, mas com os prestadores de serviços – que são os verdadeiros credores – que realizaram as despesas que compõem o custeio dos estabelecimentos, mas que, em razão da característica dos contratos de gestão e da casuística operacional e burocrática adotadas por ela, as obrigações financeiras foram firmadas juridicamente pela parceira privada por meio de seu presidente ou prepostos designados para tal finalidade.
Informa a reportagem, de autoria de Márcio Leijoto, postura gerencial para tentar contornar e minimizar as consequências do inadimplemento do poder público, mas que não é a melhor alternativa a ser adotada pelo gestor privado. Na verdade, ela é altamente desaconselhada, pois os órgãos de controle não entenderão a boa vontade dos administradores em agir dessa forma. Diz o texto da matéria:
Uma prática comum dentro das unidades de saúde para driblar a crise, conforme O POPULAR apurou, é mudar de fornecedores conforme a dívida com o anterior torne inviável a manutenção do serviço ou repasse de insumos e medicamentos. A consequência, entretanto, é o aumento das despesas das OSs, com multas, juros e preços mais caros no mercado, já que fornecedores estariam colocando valores mais altos para compensar o atraso do pagamento.
A reportagem informa o atraso do estado de Goiás em fazer os repasses financeiros mensais a dezessete organizações sociais parceiras e apresenta planilha mostrando que tal ente ainda não tinha repassado às entidades o total de R$283.282.320,79 até setembro de 2018, o que equivale a 34,6% do que elas deveriam ter recebido para pagar as despesas geradas pelas unidades de saúde gerenciadas. Eis parte da planilha:
Organização social dívida até setembro (R$) quanto falta ser repassado (em %)
Agir 11.348.804,86 92,6
Fidi 18.209.748,25 77,2
Agir 56.542.048,31 63,8
SG 6.798.385,05 50,6
IBGH 8.703.471,15 45,6
Agir 47.660.041,21 40,3
IBGH 4.734.845,01 38,6
IGH 24.954.758,77 34,6
Luz da Vida 6.066.324,63 32,1
IGH 3.774.830,22 29,4
Fasa 14.612.065,14 24,0
Gerir 35.567.464,77 24,0
ISG 15.239.295,93 23,9
Idtech 17.542.192,26 23,7
IGH 5.126.548,07 16,2
IBGH 4.038.269,44 13,9
Gerir 2.363.227,72 12,0
Noticia a reportagem que o estado de Goiás reconheceu que ainda não tinha repassado a integralidade dos repasses às entidades em razão da “grave recessão econômica por qual ainda atravessa o País”, piorada pela paralisação dos caminhoneiros, que teria causado “significativo impacto” no fluxo de caixa do Tesouro estadual. “Outro problema, que afetou especialmente a saúde de todos os Estados e municípios brasileiros, foi o contingenciamento de recursos federais pela União, desde 2015, para financiar o custeio da saúde pública no País”, informou o governo, conforme anotou a matéria.
Ora, se o ente político não consegue mais cumprir as suas obrigações financeiras assumidas no contrato de gestão firmado a sua primeira providência deveria ser rescindir tal instrumento jurídico, atraindo para si a responsabilidade – que é constitucional e exclusivamente sua – de atender a população e não prejudicar as entidades privadas parceiras, fazendo com que elas não honrem os compromissos assumidos unicamente por conta e ordem do relacionamento jurídico firmado com o poder público, o que certamente acarretará sérias restrições comerciais a elas.
O inadimplemento do contrato de gestão pelo ente político acarreta necessária e obrigatoriamente a rescisão imediata da relação jurídica em razão do irremediável desequilíbrio econômico-financeiro e o inevitável fim da parceria, que não consegue se sustentar com as pernas de apenas uma das partes.
E assim as entidades devem agir, inclusive com a provocação imediata do Poder Judiciário para rescindir o contrato de gestão e minimizar as consequências do inadimplemento para si, dirigindo a responsabilidade pela manutenção da unidade de saúde para quem originária e constitucionalmente a possui – o ente político -, sob pena de a organização social sucumbir e vir à insolvência civil, com sérias e graves consequências patrimoniais para si e seus dirigentes estatuários.
Já passou da hora de as entidades qualificadas como organizações sociais reagirem fortemente ao descumprimento e inadimplemento das cláusulas dos contratos de gestão por partes dos entes políticos, que sempre se abrigarão na legislação que os protege – e no fato do príncipe – para, além de não rescindir tais instrumentos jurídicos e não retomarem para si de forma imediata a obrigação de gerenciamento direto da unidade de saúde, exigirá o impossível delas, valendo-se ainda do odioso instituto jurídico da intervenção para criar cortina de fumaça na sua própria deficiência e semear na opinião pública notícia falsa para tentar disfarçar e imputar à parceria a consequência da sua inabilidade e incompetência financeiras e gerenciais.
Ou as entidades provocam o Judiciário nesse sentido e se revoltam contra os entes políticos que não agem como verdadeiros parceiros ou elas – e seus dirigentes – estarão fadadas a amargar prejuízos financeiros, morais e de reputação, e quase sempre se dá por culpa única e exclusiva do inadimplemento do poder público.
São Paulo, 23.10.2018
Josenir Teixeira, advogado.