Muita gente está indignada com a impossibilidade de o Congresso Nacional criar lei (ou emenda constitucional) para contornar a decisão do Supremo Tribunal Federal e permitir a prisão do condenado após o julgamento da segunda instância (pelos tribunais).
Como pode, vejam só, o país ficar travado por uma cláusula (ou artigo) da Constituição se todo mundo quer o contrário do que ela prevê? Todos ficaremos à mercê dessa situação inusitada?
Pois é. Isso se chama segurança jurídica. É a certeza que os cidadãos precisam ter de que os seus direitos individuais, previstos na Constituição, não serão alterados ao bel prazer de situação que se apresente de afogadilho ou de ocasião, fomentada por oportunistas ideológicos. Além disso, a sociedade também tem que ter segurança quanto à soberania da nação e à continuidade do regime democrático de direito.
Aí já complica, pois as pessoas líquidas de hoje querem que a democracia seja aquilo que elas pensam e desejam e quem discordar disso é golpista, fascista, comunista e mais uma série de coisas terminadas em “ista”.
Esquecem os desavisados imediatistas que democracia continua sendo democracia mesmo que a decisão da maioria vá de encontro à sua vontade.
Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável, perpétua. A chamada “cláusula pétrea” é um artigo da Constituição Federal que não pode ser alterado nem por emenda constitucional. Simples assim. Ou complicado assim.
Mas como não pode ser alterado se as pessoas desejam algo diferente daquilo previsto na tal cláusula (artigo)?
A Constituição de 1988 já tem 31 anos, está ultrapassada, o mundo é outro, a internet globalizou tudo e essa impossibilidade de mudança é um engessamento incompatível com o mundo moderno, é um retrocesso, é absurdo, e por aí vai. Estes são alguns dos argumentos que ouvimos e lemos e que têm a pretensão de justificar o injustificável, do ponto de vista técnico.
É compreensível o inconformismo das pessoas diante da situação criada pela mistura desses ingredientes, mas daí a falar que o artigo da Constituição precisa ser mudado à força porque um determinado grupo de pessoas assim deseja há enorme distância.
E a situação ganha mais surrealismo ainda porque o assunto é técnico, o que atrai a necessidade de as pessoas lerem alguma coisa para entender de onde vem isso para, depois, discutir e firmar opiniões definitivas como são as de hoje em dia, em que se alguém não concorda com o pensamento de outro alguém já se parte para a ignorância e rotulação disso ou daquilo, o debate empobrece e fica até impossível, com cada um defendendo sua convicção imutável.
Então, quais são as tais famigeradas cláusulas pétreas tão atacadas? Elas não são as que alguém acha que deve ser. Elas foram escritas no artigo 60 da Constituição Federal pelas pessoas que foram eleitas em 1987 por ocasião da criação da Assembleia Nacional Constituinte, instalada pelo Congresso Nacional em 01.02.1987, resultado que foi da Emenda Constitucional 26, de 1985.
A finalidade da eleição de pessoas para elaborar uma nova Constituição teve contexto, motivo: em 1985 o Brasil era governado por ditadura militar (apesar de alguns não concordarem com essa afirmação) e havia a necessidade de criação de constituição democrática após 21 anos de duração do regime militar.
A história todos conhecem e está nos livros: Tancredo Neves prometeu a instalação dessa Assembleia durante a sua campanha para a presidência da República. Ele foi eleito, mas morreu antes de tomar posse, tendo assumido o seu vice José Sarney, a quem coube o cumprimento daquela promessa.
As pessoas eleitas por nós em 1986 (eu votei) para comporem aquela Assembleia Nacional Constituinte trabalharam de 01.02.1987 a 22.09.1988, quando encerrou o trabalho e o texto final foi aprovado. Foi o chamado Congresso Constituinte, presidido por Ulisses Guimarães, composto por 559 pessoas.
Passados três décadas desde a edição do texto constitucional constatamos algumas distorções do nele previsto com o realizado pela sociedade, pois o contexto sugeria mudança muito grande na situação daquela época, o que fez com que os congressistas criassem Constituição cheia de direitos para os cidadãos sem necessariamente indicar de onde sairia o dinheiro para propiciar todas aquelas garantias aprovadas.
A Constituição de 1988 possui 250 artigos. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias possui 114 artigos. Nos últimos 31 anos foram aprovadas 109 Emendas à Constituição. Isso totaliza 473 dispositivos que servem para (tentar) dirigir e orientar o posicionamento e condutas da sociedade brasileira.
Toda comparação é idiota, pois questões específicas turvam o real entendimento das situações e muitas vezes de nada adiantam para se compreender algo. Porém, as comparações são irresistíveis. E faço uma, mesmo correndo todos os riscos calculáveis.
Tomo por comparação a Constituição brasileira com a Constituição dos Estados Unidos da América única e exclusivamente no que diz respeito ao número de artigos e ao tempo de vigência.
Enquanto a sétima (e atual) Constituição brasileira possui 31 anos de idade, 250 artigos e 109 Emendas, a única Constituição americana existente entrou em vigor há 243 anos (foi editada em 1789), possui 7 artigos e foi emendada 27 vezes. Essa diferença de postura em relação à Carta Maior da organização da sociedade mostra o quão o assunto é tratado com olhares díspares e conveniências diferentes pela coletividade de ambos os lugares.
As tão faladas e discutias cláusulas pétreas estão assim escritas no artigo 60 da Constituição Federal brasileira:
Art. 60. …
…
- 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
O artigo 5º da nossa Constituição possui o título “Dos direitos e garantias fundamentais” e o capítulo I dele é nominado como “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”.
O inciso LVII do artigo 5º da Constituição prevê: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Pronto. Esse é o caminho intelectual e jurídico desenvolvido para se afirmar que a prisão após o julgamento pela segunda instância é inconstitucional, pois havendo recurso contra a decisão do tribunal que condenar alguém ainda em tramitação ela não estará transitada em julgado.
O trânsito em julgado é ocorrência processual e consiste na aposição de um carimbo (ou certidão digital) apontando a data a partir da qual não pode mais haver a possibilidade de interposição de qualquer outro recurso contra uma decisão.
A espera pelo trânsito em julgado da decisão judicial não implica em impunidade. Uma coisa não tem nada a ver a outra. A punição havida na condenação, caso esta não seja alterada pelo recurso a ser julgado, deverá ser aplicada depois de determinada data, que se constituirá no trânsito em julgado.
E isso acontece porque o inciso acima transcrito, noutras palavras, toma por norte a aplicação e o respeito ao princípio da presunção da inocência (ou princípio da não-culpabilidade), ou seja, as pessoas são inocentes até que decisão judicial definitiva, transitava em julgado, diga o contrário.
O fato de o sistema jurídico brasileiro possuir muitos recursos que podem ser usados pelas pessoas não tem nada a ver com a essência do assunto até agora aqui brevemente discorrido.
Se existem muitos recursos processuais previstos na legislação o Congresso Nacional que cuide de reduzi-los por meio da edição de leis ordinárias, se assim for a decisão da maioria, postura que apoia, privilegia e respeita justamente … a democracia.
Parlamentares falam endoidecidamente na mídia e prometem à população sedenta de vingança que irão aprovar emenda à constituição para prever a possibilidade de prisão do condenado após a decisão dos tribunais (que compõem a segunda instância). Eles mentem para as pessoas. Eles não podem fazer isso. Não em relação às cláusulas pétreas previstas no artigo 60 da Constituição Federal, acima transcritas. Qualquer operador do Direito sensato e técnico, não influenciável pelo discurso fácil e hipócrita do clamor das ruas, concluirá a mesma coisa.
Todo o esforço que está sendo feito em cima da mentira da possibilidade de aprovação de emenda constitucional para alterar o que o Supremo Tribunal Federal decidiu será em vão e não produzirá efeito jurídico nem prático nenhum, pois, provocado sobre o assunto, o STF novamente dirá que lei ordinária, complementar ou emenda constitucional seriam inconstitucionais se tratarem da pretensa alteração do artigo 5º da Constituição Federal, e impedirá novamente a possibilidade de prisão da pessoa após a decisão condenatória em segunda instância. E retomaremos toda a discussão social experimentada em 2018 e em 2019.
E como faz, então? Nunca alteraremos esse dispositivo? Poderemos alterar, desde que seja instala nova Assembleia Nacional Constituinte que tenha por finalidade rever ou reescrever a Constituição Federal, com possibilidade de repactuação do Estado brasileiro e de seus elementos.
Mas isso não pode ser feito por revanche de grupelho perdedor de determinada discussão e não teve suas vontades atendidas.
A Constituição de um povo é documento cujo conteúdo é muito mais sério e não pode ser elaborada a partir da sugestão de momentos episódicos provocados por parcela que não se constitui em maioria representativa do desejo das pessoas.
A nossa atual Constituição não prevê a possibilidade de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Normalmente, uma Constituição é elaborada a partir da constatação de ruptura no ordenamento jurídico/político de uma nação, ou de um golpe, guerra civil ou insuperável instabilidade no funcionamento dos poderes ou instituições internas.
Não é o que estamos vivendo nem experimentando. O Brasil vive momento de divisão de pessoas em razão de posturas políticas ou divergência em relação à forma de governar dos que exerceram tal função no passado e a atual. Há cizânia entre quem defenda governos de direita e de esquerda e os atos praticados por quem os representa. As instituições estão hígidas e praticando os atos que lhes são inerentes. Se você gosta ou não, concorda ou não com tais atos é outra história, que resvala no conceito do que seja democracia.
Há enorme descontentamento entre as pessoas, que se digladiam no campo das opiniões e sentimentos, mas isso (ainda) não descambou para uma guerra civil nem ruptura do ordenamento jurídico e nem político, não se constituindo em instabilidade capaz de sugerir a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte como irresponsavelmente assistimos ao presidente do Senado fazer no dia 12 de novembro de 2019, movido por revanchismo inexplicável em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal acerca do tema aqui tratado, num exemplo inacreditável e temeroso de desconhecimento da lei e de hipocrisia.
E nem se alegue que tal proposta foi feita por ironia, pois, se assim foi, a irresponsabilidade cometida se agrava mais ainda, pois não é isso o que se espera de alguém que ocupa o seu posto e tem também a função de pacificar a população.
Assistimos há quase um mês a instabilidade – que contabiliza mortos e feridos – vivida (ou causada) pela população do Chile, descontente com o rumo trilhado pelo país nos últimos tempos, o que fez com que o Congresso aprovasse a convocação de plebiscito para abril de 2020 para que a sociedade opine se quer ou não a elaboração de nova Constituição para substituir a atual (de 1980), que é da época da ditadura de Augusto Pinochet. (Folha de S.Paulo, 16.11.2019, A 16)
O contexto vivenciado pelo Chile, ao que tudo indica, justifica a convocação de Assembleia Nacional Constituinte para elaboração de nova Constituição, o que foi analisado e aprovado pelo Congresso daquele país.
Mas isso não está acontecendo no Brasil, que apenas registra descontentamento de (algumas) pessoas em relação às posturas adotadas pelo atual governante e polarização de ideias entre quem defende a esquerda e a direita, com radicalismos verbais aqui e ali que provocam desagregação que não avança pelas ruas de modo violento.
Ao contrário, todas as manifestações acontecidas até agora foram pacíficas, com cada grupo defendendo tranquilamente seus pontos de vista.
E mais: a cada dois anos há eleições no Brasil, o que faz com que os governantes possam ser mudados radicalmente pela população a partir da exteriorização dos seus desejos, como foi feito na eleição presidencial ocorrida em 2018, em que também foram eleitos deputados federais, estaduais, senadores e governadores.
Definitivamente, a situação da nossa sociedade não justifica a convocação de Assembleia Nacional Constituinte, muito menos com o objetivo único de tratar de assunto que foi decidido democraticamente por 6 votos a 5 dos componentes do Supremo Tribunal Federal, o que seria puro vingança de losers.
Temos que nos acostumar a decisões majoritárias contrárias ao que pensamos ou desejamos, pois essa é a essência da democracia. Ficamos chateados quando uma vaga ruim e apertada é sorteada para nós na reunião, ao se fazer o rodízio do uso da garagem. Mas não é por isso que o condômino está legitimado a pedir o impedimento do síndico.
Democracia continua sendo democracia mesmo que a decisão da maioria seja diferente da sua e mesmo que a pior vaga de garagem do condomínio seja direcionada a você.
Somos uma sociedade jovem e deseducada e teremos que aprender aos trancos e barrancos, o que se estenderá por gerações, infelizmente.
Josenir Teixeira
Escrito em 17.11.2019