Em outubro de 2011 escrevi o artigo “O ECAD cobra a música e o hospital dança”, que foi publicado (em versão reduzida) pela revista Consulex, v. 15, n. 356, p. 52-53, nov. 2011, e citado como doutrina (n. 190) pelo Supremo Tribunal Federal no caderno sobre Gestão Coletiva e Direitos Autorais, de 2014.
Passados 8 anos o assunto ainda é atual, como se vê da manchete da Folha de S.Paulo de 27.11.2019.
Eis o meu artigo, em versão ampliada, disponível em http://2021.jteixeira.com.br/o-ecad-cobra-a-musica-e-o-hosp…/
O ECAD cobra a música e o hospital dança
“Quem não gosta de samba / bom sujeito não é / é ruim da cabeça / ou doente do pé”, já cantou Dorival Caymmi, na música Samba da minha terra, de sua composição, escrita por volta de 1940.
Você, caro leitor, pode não gostar de samba, mas certamente gosta de música, especialmente daquela que lhe faz bem, seja ela qual for.
Não existe música boa ou ruim. Existe a música que você gosta. Incomodam aqueles chatos que tentam classificá-la como sendo de “boa ou má qualidade” meramente a partir de critérios subjetivos que, justamente por serem subjetivos, existem só na mente do indivíduo e pertencem a seu íntimo e lá deveriam ficar.
O fato é que a música distrai, emociona, agita, acalma e produz uma série de outras sensações, dependendo da sua predisposição.
A lei de direitos autorais
Existe lei no Brasil que cuida dos direitos autorais (n. 9.610/98) daqueles que produzem obras intelectuais, nelas inseridas, dentre várias, as composições musicais com ou sem letra, as obras literárias, audiovisuais, as dramáticas e os programas de computador. Músicas e programas de televisão se inserem nesta ampla categoria. O assunto vem positivado na Constituição Federal (art. 5º, XXVII e XXVIII).
É comum os hospitais, clínicas, laboratórios, consultórios e demais estabelecimentos de saúde disponibilizarem aparelhos de televisão nas suas salas de recepção ou música nos corredores e quartos, para desfrute dos pacientes e das pessoas que lá trabalham.
Acontece que, como toda e qualquer obra intelectual possui um dono, há que se pagar pela sua execução, disponibilização ou utilização. Para que seja possível ouvirmos músicas livremente, por meio de qualquer mídia, alguém tem que pagar ao artista ou ao seu autor pela sua execução.
Por curiosidade, o compositor Victor Chaves, da dupla sertaneja Victor e Leo, foi o campeão em recebimento de direitos autorais em 2009. O também sertanejo Sorocaba, da dupla com Fernando, também é um dos líderes de arrecadação. O cantor Durval Lelys, vocalista da banda Ásia de Águia, foi o vencedor em 2010. Na festa junina daquele ano, o artista mais tocado foi Luiz Gonzaga, o que rendeu pagamento de direitos autorais aos seus herdeiros.
Ainda figuram nesta lista, como compositores ou intérpretes: Djavan, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Rick (da antiga dupla com Renner), Paul McCartney, John Lennon e Elvis Presley.
A música Parabéns a você, de autoria de Gambier, Léa Magalhães, Mildred Junius, Welch Hill e Patty Smith – que ainda não é de domínio público – foi a que mais arrecadou dinheiro com direitos autorais em casas de festas de aniversário.
O ECAD
Há um órgão que tem por objetivo a arrecadação, fiscalização, controle e distribuição dos direitos autorais sobre as execuções musicais, ou litero-musicais e de fonogramas, nacionais e estrangeiros: o ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição.
Pasmem, caros leitores: a natureza jurídica do ECAD é de associação civil de direito privado, sem fins lucrativos, tal qual a das Santas Casas e a dos hospitais filantrópicos. Por isso, também, defendo a necessidade de subdivisão ou subclassificação do chamado Terceiro Setor, mas isso é outra história.
O quadro associativo do ECAD é formado por nove associações musicais, que compõem a sua assembleia geral. São elas as responsáveis pela fixação dos preços e regras de cobrança e distribuição dos valores arrecadados.
Do total arrecadado pelo ECAD, que foi mais de R$ 200 milhões em 2010, 75,5% destinam-se aos detentores dos direitos autorais, 7,5% às associações que compõem o seu quadro associativo e 17% referem-se à taxa administrativa que ele cobra para executar a sua finalidade.
Questionamentos sobre o ECAD
O ECAD está na berlinda, pois, como é praxe neste nosso querido Brasil, infelizmente, desconfia-se que há algo de podre na distribuição dos recursos financeiros por ele arrecadados.
O Ministério da Cultura capitaneia movimento para reforma da legislação e os artistas e ativistas em geral querem a adoção de mecanismos que aumentem a transparência da partilha dos direitos autorais, inclusive com a fiscalização estatal, pois a arrecadação é impositiva.
Por outro lado, há quem defende que a fiscalização deve ser feita pelos próprios artistas.
Há Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) apurando eventuais irregularidades na distribuição de recursos pelo ECAD no Congresso Nacional. Enfim, a discussão vai longe.
Porém, o que aqui nos interessa é a cobrança financeira que o ECAD faz dos hospitais que tocam músicas ou mantêm aparelhos de televisão ligados nas suas áreas comuns e quartos.
O enquadramento dos hospitais
A lei acima mencionada prevê (art. 68) que “sem prévia e expressa autorização do autor ou titular, não poderão ser utilizadas obras teatrais, composições musicais ou lítero-musicais e fonogramas, em representações e execuções públicas” em locais de frequência coletiva, considerados estes como sendo “os teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes ou associações de qualquer natureza, lojas, estabelecimentos comerciais e industriais, estádios, circos, feiras, restaurantes, hotéis, motéis, clínicas, hospitais, órgãos públicos da administração direta ou indireta, fundacionais e estatais, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, ou onde quer que se representem, executem ou transmitam obras literárias, artísticas ou científicas.” (§ 3º – gr)
A fiscalização é feita pelo ECAD (legitimado pelo STJ – Recurso Especial n. 157.845 e pelo STF – Recurso Extraordinário n. 103.058) por intermédio de pessoa por ele designada, que vai até o estabelecimento de saúde e constata (vê e ouve) a existência da sonorização pela música ou exibição de imagens pela televisão.
Ou menos que isso: há casos em que alguém liga e pergunta se na sala de recepção há música ou televisão. Diante da resposta afirmativa, o estabelecimento é autuado. Simples assim.
A partir disso, confirmado que o estabelecimento de saúde não faz o pagamento mensal dos valores constantes de uma tabela progressiva elaborada pelo próprio ECAD (STJ, Recurso Especial n. 163.543), que leva em consideração a metragem quadrada da área sonorizada, ele é autuado.
A cobrança pelo ECAD
Se o hospital não pagar a autuação, o ECAD ajuíza a ação de cobrança e, invariavelmente, ele obtém êxito, pois o Judiciário entende que, além de ele ser legitimado para tal, a cobrança é legal, mesmo que não haja finalidade lucrativa na execução da música ou na facilitação do acesso à televisão pelos pacientes, exatamente como acontece nas Santas Casas e nos hospitais filantrópicos.
Nestes estabelecimentos, a música não é utilizada como atrativo e nem captação de clientela, mas estes argumentos não têm sido suficientes para livrá-los da cobrança.
A multa pela exibição irregular de obras intelectuais pelo hospital é equivalente a 20 (vinte) vezes o valor a ser pago originalmente.
Um hospital localizado em São Paulo, capital, por exemplo, que possui área sonorizada de 100m2 (cem metros quadrados) deve pagar mensalmente ao ECAD o valor de R$226,67 o que equivale a R$2.720,04 por ano.
A luta das Santas Casas contra o ECAD
As Santas Casas e os hospitais filantrópicos estão perdendo a briga com o ECAD nos tribunais superiores. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que “o consultório, clínica, hospital, com música ambiente (rádio), ou mesmo uma TV ligada, configura-se ‘execução pública’, ficando sujeito à arrecadação dos direitos autorais referentes às músicas executadas”.
O STJ sumulou o assunto (Súmula n. 63) e formou entendimento que, em princípio, deve nortear os julgamentos de todas as ações que tratem deste assunto: “São devidos direitos autorais pela retransmissão radiofônica de músicas em estabelecimentos comerciais”.
O STJ vem confirmando tal postura.
No Recurso Especial n. 740.358, afirmou-se que “os apartamentos do motel dispõem de aparelhos independentes de rádio-receptor e televisão, manuseados diretamente pelos ocupantes” e que, neste caso, “o direito à cobrança pelo ECAD subsiste” pois o motel foi elencado como “local de frequência coletiva”, conforme precedente constante noutro Recurso Especial, o de n. 556.340, cuja decisão afirmou que “a caracterização dos hospitais e clínicas como locais de execução pública decorre exatamente da mesma norma que qualifica como tais os hotéis e motéis.”
Esta decisão afirmou que “o pagamento deverá ser promovido tendo por base a média de utilização dos aparelhos televisores no interior da clínica.”
Decisões favoráveis aos hospitais, mas de tribunais inferiores
É verdade que existem decisões que sustentam a ilegalidade e impertinência da cobrança, mas elas são de Tribunais inferiores ao STJ.
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro assim reconheceu a abusividade na estipulação dos critérios de cobrança pelo Ecad:
“não há como deixar de reconhecer que o referido critério de fixação do preço, em percentual sobre a receita bruta da contratante, extrapolou o direito do Ecad, conferido no parágrafo único do art. 98 da Lei 9.610/98, estando em total infringência aos princípios da isonomia, da boa-fé e do equilíbrio econômico do contrato, a ensejar a interferência do Estado, de modo que, no exercício da jurisdição, o Judiciário declara abusiva tal previsão constante do Estatuto do Ecad.”
Numa decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, o desembargador entendeu que os hospitais não deveriam pagar direitos autorais porque “o quarto de hospital não é um local público. O paciente só entra ali em virtude de razões médicas, até ver-se curado de alguma enfermidade.
Nesse contexto, o quarto do hospital é uma extensão do lar do paciente, motivo pelo qual configura execução particular e não pública”. (AC nº 52.979)
A decisão afirma que inexiste base para a cobrança porque um artigo da lei determina que o pagamento ao Ecad deveria se dar antes mesmo da realização da execução pública, antecipadamente, o que se mostraria impossível a um hospital, pois sequer sabe o órgão arrecadador (o ECAD) se os aparelhos serão utilizados durante o mês.
Precedente a ser explorado
Em março de 2011, o STJ isentou a Mitra Arquidiocesana de Vitória de pagar valores a título de direitos autorais porque houve execução de música numa escola, quando da abertura do Ano Vocacional (de 2002), evento religioso sem fins lucrativos, de pequenas proporções e com entrada gratuita (Recurso Especial n. 964.404).
Importantíssima foi a afirmação do ministro Massami Uyeda quando disse que o voto do ministro relator deste caso dá “(…) uma nova visão, permite um estudo, um aperfeiçoamento das posições. Tínhamos, até agora, uma posição muito rígida, que vinha da decisão da Corte Especial, e aquilo resistiu por algum tempo. Com essa renovação que se faz, dos quadros dos Ministros, é natural essa mudança de observação.”
Necessidade de discussão judicial sobre o assunto
É importante que os hospitais se insurjam juridicamente contra a autuação do ECAD e tentem convencer os julgadores acerca da inaplicabilidade da lei à sua realidade.
A exceção feita pelo STJ, acima mencionada, é importante e a partir dela os advogados dos hospitais devem desenvolver suas teses, abrangendo outras vertentes, obviamente.
Somente assim será possível inverter o entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito da cobrança hoje praticada contra os estabelecimentos de saúde.
Enquanto isso não acontecer o ECAD cobra a música e o hospital dança.
Enquanto isso não acontecer o ECAD cobra a música e o hospital dança.
Escrito em outubro de 2011
Publicado na revista
Notícias Hospitalares nº 68, ano 7, set/out/nov de 2011