Em maio de 2019 escrevi o artigo “Atue como gestor, perca seu patrimônio e seja preso”, que foi publicado pela Revista Brasileira de Direito da Saúde, editada pela FEMIPA (Federação das Santas Casas de Misericórdia e Hospitais Beneficentes do Estado do Paraná), no número 8, Ano VIII, julho a dezembro de 2018, páginas 9 a 45.
Naquela oportunidade desenvolvi os seguintes tópicos, que constaram do Sumário: 1. Introdução. 2. O Brasil brasileiro. 3. A inevitável e desejável evolução do direito administrativo. 4. Quem é o dirigente? 4.1. Atividades do dirigente. 5. A equiparação do gestor privado ao agente público quando há verba pública envolvida. 6. A necessária limitação da ação do gestor diante do cenário jurídico-normativo. 7. Imprescritibilidade de ressarcimento ao erário. 8. Os princípios constitucionais. 9. O amplo alcance da legislação infraconstitucional de enquadramento das atividades do gestor. 10. A necessária prestação de contas completa e pormenorizada pelo gestor. 11. Conclusão. 12. Referências bibliográficas.
O resumo daquele artigo foi o seguinte: “O cipoal jurídico brasileiro é imenso e pródigo em prever as mais variadas, genéricas e amplas situações de enquadramento de atividades tidas como criminosas. As autoridades, de diversos níveis e esferas, vivem momento de excitação extrema e têm à sua disposição emaranhado de normas para classificar as mais diversas ações praticadas pelas pessoas. Os gestores de entidades sem fins lucrativos, especialmente os que atuam na área da saúde e mais precisamente em hospitais filantrópicos, nem sempre conhecem em detalhe as regras legais que incidem e norteiam a sua atuação profissional e nem os limites e cuidados que devem observar e adotar no seu dia a dia para evitar a sanha das autoridades ou mesmo a prática de crimes assim não compreendidos por eles justamente em razão de desinformação. Atuação praticada com boa intenção, mas sem observância dos incontáveis preceitos legais, pode ser (e tem sido) enquadrada e classificada como crime pelas autoridades, que sugerem a prisão (temporária ou preventiva) da pessoa, o que muitas vezes é acatado pelo judiciário e coloca os gestores na cadeia e em situação de extrema fragilidade moral e patrimonial, descrédito e humilhação, tudo de antemão, sem que necessariamente a presunção que gerou a investigação se concretize ou seja provada. Acontece que a desgraça pessoal aos gestores já foi causada e nem sempre eles conseguem se refazer do infortúnio. É sobre esse contexto que se discorrerá com a intenção de alertar os administradores de dinheiros públicos sobre a necessidade de serem cuidadosos, atenciosos, técnicos e restritivos no desenvolvimento de sua atividade profissional.”
Afirmei que aquele breve artigo pretendia abordar a situação do dirigente honesto que nem sempre consegue cumprir o difícil e às vezes impraticável emaranhado de normas jurídicas que se aplicam quando a entidade na qual ele atua recebe repasse de verbas públicas para serem empregadas em determinada finalidade.
E ao assim agir, às vezes inadvertidamente, ele acaba por conhecer outro confuso e enigmático labirinto de normas penais aplicáveis justamente àquelas situações não necessariamente ocasionadas por má-fé nem por desvio de conduta, mas que podem lhe causar seriíssimas consequências não só em relação à sua liberdade de ir e vir mas também ao seu patrimônio, que pode ser perdido em prol dos entes políticos.
Mencionei lá a enorme burocracia legal existente que constrói caminho nem sempre conhecido em suas minúcias e cria arapucas nas quais os dirigentes caem, manchando seus currículos de imediato, mesmo que de forma açodada, superficial e inconclusiva.
Comentei sobre as atividades que devem ser realizadas pelos dirigentes com competência, eficiência, honestidade, diligência, lealdade, reportando as informações necessárias a quem de direito e cumprimento fiel da lei, do estatuto e das demais normas internas inerentes à sua atividade, evitando conflito de interesse, e as obrigações legais que devem cumprir, sob pena de serem processados em razão da inobservância de determinadas circunstâncias.
Consignei que a situação passará a interessar ao Direito quando o dirigente descumprir obrigações legais, normas internas e/ou funcionais, agir com excesso de poder e causar dano ou prejuízo a terceiros, inclusive e principalmente, nos dias de hoje, ao governo, em todas as suas esferas, e à sociedade, no sentido lato.
Pode ser entendido como excesso de poder a prática de ato a) para o qual não foi autorizado, b) que extrapola os poderes que lhe foram outorgados, c) que foge ao padrão da normalidade e à praxe dos negócios, d) que infrinja a lei, o contrato ou o estatuto.
Há certa carga de subjetivismo nas situações acima exemplificadas, o que permite e pode justificar a abertura de procedimentos investigativos que são muito invasivos contra as pessoas, no que diz respeito à aplicação de restrições imediatas de toda ordem, antes mesmo da conclusão acerca da prática ou não de ilegalidades, o que certamente exporá os dirigentes de forma desproporcional e vexatória, principalmente quando se comprovar a sua inocência, dali a alguns anos.
Após transcrever textos legais, doutrinários e jurisprudenciais, alertei o leitor “que a redação do texto das normas legais evoluiu muito nos últimos anos para prever de forma absolutamente detalhada e dilatada as várias situações entendidas como indevidas de serem praticadas pelas pessoas, tornando crime diversas posturas e ações dos gestores que, se não forem conhecidas nas suas minudências, poderão levá-lo para a cadeia, não só a longo prazo mas também de imediato, em razão da larga utilização do expediente das prisões temporária e preventiva, antes da condenação criminal, conforme autoriza a legislação penal.”
Os alertas constantes daquele artigo continuam atuais.
A mídia informa a conclusão de relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Vereadores de São Paulo que solicitou o indiciamento de 97 (noventa e sete) diretores do banco Itaú pela prática dos crimes de organização criminosa, contra a ordem tributária (sonegação de ISS) e falsidade ideológica, com sugestão de bloqueio dos bens dos indiciados. (Folha de S.Paulo, 06.12.2019, A 26, repórteres Guilherme Seto e Rogério Gentile)
Apuraram os vereadores que o banco Itaú teria simulado seu endereço em outro município (Poá, que dista 65 Km de São Paulo/SP) “com o objetivo de deixar de pagar imposto na capital paulista, desembolsando valor menor”.
O município de São Paulo multou o banco Itaú em R$ 3,8 bilhões “por suposta fraude fiscal com base nas descobertas feitas pela CPI”.
Informa a matéria que “relatório da prefeitura afirma que o banco ´adotou, durante o período fiscalizado, intencionalmente a prática de simulação de seu estabelecimento no município de Poá, atribuindo a uma modesta estrutura criada simplesmente para parecer operacional, o local de prestação de serviços´.”
O banco Itaú nega os crimes pelos quais é acusado e afirmou, segundo a matéria: “Assim, falar em fraude, simulação e organização criminosa fere a boa-fé, razoabilidade e segurança jurídica, deixando patente os verdadeiros objetivos eleitorais e midiáticos da comissão.”
O Itaú publicou comunicado na mídia no qual afirma que “as conclusões sobre a atuação do banco em Poá, contidas no documento, são falsas e incoerentes.”
A CPI “encaminhará seu relatório e todo o material levantado para o Ministério Público do Estado de São Paulo com pedido de que os representantes do banco responsam criminalmente pelas ilegalidades nas quais teriam incorrido de acordo com o grupo de vereadores”, informa a matéria da Folha de S.Paulo.
Não se sabe se o banco e seus dirigentes praticaram ou não os crimes dos quais são acusados. Somente ao fim dos processos e depois que as decisões transitarem em julgado é que alguém poderá afirmar se são ou não culpados.
Fato é que a prática de atos gerenciais que num primeiro momento parecem ser normais e inerentes às funções de quem os realiza são vistos e tidos por descumpridores das leis e que eles teriam causado dano a alguém (o município de São Paulo), aos olhos de quem os analisa.
Isso reforça ainda mais a necessidade de cuidado extremo e embasamento multiprofissional prévio e sólido para minimizar os riscos assumidos pelos gestores, que poderão, mesmo assim, eventualmente, experimentar o gosto amargo da aplicação do ordenamento jurídico sobre suas cabeças, que os relega à condição de lixo humano, mesmo antes de qualquer conclusão definitiva sobre o assunto.
Que Deus nos proteja a todos!
Amém!
Escrito em 08.12.2019