As associações são entidades privadas que não estão obrigadas a cumprir as normas de direito público, que têm por destinatários os entes políticos, as autarquias e os órgãos públicos em geral. E é assim justamente por causa da sua natureza jurídica privada, regulamentada pelo Código Civil.
Quando as associações são qualificadas como Organizações Sociais por entes políticos elas continuam a manter a sua natureza jurídica privada, pois fosse para incorporarem as regras de direito público elas simplesmente não seriam necessárias e todo o trabalho de aproximação e parceria com poder público não teria sentido de existir.
Ora, qual é a lógica de associações privadas serem obrigadas a cumprir todas as regras de direito público? Os governos já são obrigados a assim proceder e não haveria sentido em estender essa obrigação a parceiros privados.
Foi exatamente nesse sentido a decisão ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, no voto que proferiu na ADIN 1.923, que julgou constitucional a lei que rege as Organizações Sociais (9.637/98).
Afirmou ele: “As organizações sociais, por integraram o Terceiro Setor, não fazem parte do conceito constitucional de Administração Pública, razão pela qual não se submetem, em suas contratações com terceiros, ao dever de licitar, o que consistiria em quebra da lógica de flexibilidade do setor privado, finalidade por detrás de todo o marco regulatório instituído pela lei. […]”
Quando os governos realizam parceria com as associações privadas para que elas façam a gestão de unidades de saúde eles estão atrás de versatilidade, competência e rapidez, pois o engessamento legal já é inerente a eles.
O ministro Luiz Fux abordou isso no seu voto quando afirmou que “Na essência, preside a execução deste programa de ação institucional a lógica, que prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada pode ser mais eficiente do que a pública em determinados domínios, dada a agilidade e a flexibilidade que marcam o regime de direito privado.”
Apesar de as associações sem fins lucrativos, privadas, não se submeterem a todas as regras de direito público, quando elas recebem a qualificação de Organização Social e assinam o Contrato de Gestão com entes políticos elas passam a ter a obrigação de, ao menos, cumprir certas normas, conforme ponderou o ministro Luiz Fux.
Afirmou ele: “Por receberem recursos públicos, bens públicos e servidores públicos, porém, seu regime jurídico tem de ser minimamente informado pela incidência do núcleo essencial dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput), dentre os quais se destaca o princípio da impessoalidade, de modo que suas contratações devem observar o disposto em regulamento próprio (Lei n. 9.637/98, art. 4º, VIII), fixando regras objetivas e impessoais para o dispêndio de recursos públicos.”
Na prática, as associações qualificadas como Organizações Sociais redigem o seu regulamento próprio contendo as regras que irá praticar para contratar pessoal e dá publicidade a ele no âmbito de abrangência do ente político, publicando-o no diário oficial e/ou em jornal de circulação local, além do seu próprio site, no mínimo.
Normalmente, a redação do regulamento próprio cria regra menos rígida de cotação de preços e escolha dos fornecedores, até porque não se trata de licitação, mas de coleta e pesquisa de preços mínima para bem empregar o dinheiro público.
Não é raro que em tais regulamentos constem regras menos engessadas para contratar alguns profissionais em razão da dificuldade em se fazer isso, principalmente em regiões geográficas mais afastadas dos grandes centros. Tais regras permitem, inclusive, a contratação sem a necessidade de cotação do serviço, pois às vezes há uma única empresa na região apta a prestar aqueles pretendidos.
Alguns regulamentos dispensam a realização de processo de cotação de preços para a contratação de determinados serviços técnicos profissionais especializados, como exceção à regra geral, como permite a própria lei 8.666/93 no seu artigo 13 e nos exemplos constantes dos seus sete incisos, até porque o parágrafo primeiro de tal artigo prevê que a realização de concurso é preferencial e não obrigatória. Tal lei é aqui mencionada por mera analogia, pois ela não se aplica a situações em que há lei específica tratando da qualificação de Organização Social no âmbito dos entes políticos.
Um belo dia, uma associação qualificada como Organização Social resolveu contratar um advogado especialista no Terceiro Setor para auxiliá-la com alguns discussões e processos internos. A associação, privada, firmou contrato de prestação de serviços com o escritório de advocacia, tendo o profissional iniciado o trabalho da forma combinada.
Passado mais de um ano de prestação de serviços o Ministério Público analisou a situação e entendeu que teria havido a prática do crime previsto no artigo 89 da lei 8.666/93, capitulado como “dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, punido com pena de detenção de três a cinco anos e multa.
O Ministério Público entendeu – e defende – que mesmo a situação envolvendo pessoa jurídica de direito privado e possuindo o ente político lei específica e especial de qualificação de entidades sem fins lucrativos, ainda assim haveria incidência da lei genérica (norma geral) que regula as licitações, o que definitivamente não é verdadeiro nem sustentável, conforme ensinam unanimemente juristas e decisões judiciais que tratam do tema.
A postura do órgão acusador chega a resvalar de forma indevida na Constituição Federal que prevê (art. 5º, XVIII) a vedação de interferência estatal no funcionamento das associações civis privadas, ao pretender que elas façam algo não previsto na legislação como sendo obrigatório a elas.
O princípio da especialidade (norma especial prevalece sobre norma geral) foi solenemente ignorado pelo órgão acusador, que ofereceu denúncia criminal contra o presidente da associação privada que contratou o escritório de advocacia para a prestação de serviços e contra o advogado, pois o parquet entendeu que este teria incorrido no crime previsto no parágrafo único do artigo 89 da lei 8.666/93, assim redigido: “ Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.”
O juiz, ao invés de rejeitar a denúncia em razão do entendimento jurídico pacífico sobre o assunto, no sentido de impossibilidade e ilegalidade de aplicação da norma geral prevista na lei 8.666/93 a situações específicas regidas por lei especial que tratam da qualificação de entidades como Organizações Sociais, a aceitou e tornou réu o presidente da ONG e o advogado, que terão gastos financeiros para se defenderem e amargarão por anos a expectativa de encerramento do processo, que passará por todas as suas fases de instrução e por duas instâncias judiciárias, podendo, conforme for o caso, chegar até o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), que certamente julgarão de acordo com as centenas de precedentes hoje já existentes sobre o assunto.
A situação de réus de processo criminal do advogado e do presidente da ONG se torna ainda mais surreal quando se entende que, mesmo que houvesse subordinação da Organização Social à lei 8.666/93 – que não há e aqui é mencionado por mera especulação – ainda assim não haveria a prática do crime a eles imputado em razão da contratação dos serviços jurídicos profissionais estar amparada pela hipótese de inexigibilidade de licitação prevista no inciso II do artigo 25 da referida lei, que remete ao artigo 13 dela que enumera e conceitua o que são serviços técnicos profissionais especializados e, dentre eles, prevê (III) assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias e (V) patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas.
Há súmulas do Supremo Tribunal Federal (252) e do Tribunal de Contas da União (264) que informam as circunstâncias que devem estar presentes para cabimento da inexigibilidade de licitação, que foram observadas pelo presidente e pelo advogado.
Seja por um motivo (inaplicabilidade da lei de licitação ao caso), por outro motivo (possibilidade de contratação de escritório por inexigibilidade de licitação), ou ainda por outro motivo (ausência de dolo) e finalmente por outro motivo ainda (falta de tipicidade) a ação criminal não se sustenta e a sua denúncia teria condições de ser rejeitada de pronto.
Ao se permitir o processamento da denúncia, com a consequente abertura do processo criminal, abriu-se o tempo de pelo menos cinco anos de angústia, expectativa e gastos financeiros pelos quais o presidente e o advogado da ONG irão passar até que sua inocência seja reconhecida por decisão judicial transitada em julgado.
Se terminasse aqui o relato do calvário do advogado da ONG ele já teria sido suficientemente desgastante e cruel. Mas há mais. E muito pior.
Firme nas suas convicções, mesmo que distantes de sustentação sólida na legislação, o Ministério Público requereu – e a justiça autorizou – a prisão do advogado e do presidente da ONG, em operação policial desencadeada para tal fim.
E ambos ficaram presos pelos cinco dias da prisão temporária, tendo sido libertados após transcurso desse tempo. Após a saída deles, o Ministério Público requereu – e a justiça autorizou – a aplicação das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, quais sejam, comparecimento mensal em juízo, proibição de se ausentar da cidade por período superior a sete dias, retenção do passaporte etc.
O advogado da ONG conseguiu revogar as restrições impostas apenas por meio de recurso ao Tribunal, que considerou inexistirem condutas no sentido de frustrar a lei, restabelecendo a situação ao patamar anterior.
O advogado e o presidente da ONG estão com seus bens imóveis e veículos bloqueados, seus saldos bancários e aplicações financeiras foram sequestrados e tudo assim ficará até a decisão final do processo, que certamente não virá em menos de cinco anos.
E assim todos vão tocando suas vidas da forma que é possível, pois o atual sistema jurídico assim prevê, mesmo que seja cruel.
Josenir Teixeira
Escrito em 28.09.2019