Advogado, Mestre em Direito pela FADISP, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela UNIFMU/SP, em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), em Direito do Trabalho pelo Centro de Extensão Universitária (CEU/SP-IICS) e em Direito do Terceiro Setor pela FGV/SP. É vice-presidente do IBATS – Instituto Brasileiro de Advogados do Terceiro Setor. É fundador, editor e articulista da RDTS – Revista de Direito do Terceiro Setor. É membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP. Foi professor do curso de Direito do Terceiro Setor da Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/SP. Foi professor do curso de Pós- Graduação em Administração Hospitalar e Negócios da Saúde da UNISA/SP. Foi Conselheiro Fiscal do IATS – Instituto de Administração para o Terceiro Setor Luiz Carlos Merege. É autor dos livros Prontuário do Paciente: Aspectos Jurídicos e Assuntos Hospitalares na Visão Jurídica (www.abeditora.com.br), Opiniões, Opiniões 2 (edições próprias) e O Terceiro Setor em Perspectiva: da estrutura à função social (www.editoraforum.com.br). É articulista da Revista Brasileira de Direito da Saúde (www.rbds.com.br), editada pela CMB – Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas. É consultor jurídico da FBAH – Federação Brasileira de Administradores Hospitalares. OAB/SP 125.253
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. O conceito de intervenção 3. A atuação das entidades sem fins lucrativos na saúde 4. O cenário justificador da utilização da intervenção nos hospitais 5. A processualística da intervenção 6. Conclusão
RESUMO: As atividades de promoção da saúde são de cunho social, visam o bem comum da população e receberam tratamento especial da Constituição Federal. A obrigação de oferecer saúde ao cidadão é do Estado brasileiro. As entidades sem fins lucrativos, tais quais as Santas Casas e os hospitais filantrópicos, receberam tratamento diferenciado da Constituição, que deu a elas preferência na participação do sistema de saúde. A casuística mostra que entes políticos se valem da força, nem sempre justificada, para se apossarem de entidades privadas para, sob o falso argumento de manter o atendimento da população, colocar em prática planos políticos pessoais tacanhos que passam ao largo do interesse dos usuários. Pretendemos explorar aspectos que envolvem o instituto jurídico da intervenção, natural decorrência do conflito de interesses locais, de modo a justificar as conclusões propostas.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde. Entidades sem fins lucrativos. Terceiro Setor. Ente político. Intervenção. Interventor. Ocorrência. Possibilidade. Limites. Má-gestão. Ingerência.
1. Introdução
Qual seria a sua sensação, caro leitor, se alguém chegasse ao seu local de trabalho, o expulsasse da sua cadeira, assumisse suas funções, passasse a dirigir a atividade que até então era por você desenvolvida e o proibisse de voltar? A grossíssimo modo, é isso o que acontece na intervenção.
Sob o argumento de que você não está trabalhando corretamente da forma como deveria e que não há eficiência no que é feito, alguém se arvora na condição de detentor de tais condições técnico- profissionais e, mediante o uso legal da força, o substitui no exercício daquela atividade.
Em outras palavras, o ser superior que reúne as condições profissionais que você não tem (na visão dele, obviamente) passa a lhe mostrar como é que deveria ser feito, em tese, com mais eficiência, eficácia, profissionalismo e obtendo os resultados que até então não tinham sido atingidos. Tecnicamente é esta a proposta da intervenção.
Todavia, na prática não necessariamente teórica do dia a dia, verifica-se que o instrumento jurídico da intervenção é utilizado como artimanha para espezinhar adversários políticos e aniquilar obstáculos para concreção de planos pessoais egoístas. Há exceções quanto ao conteúdo desta afirmação, obviamente, e, como tais serão tratadas.
Para se ter a abrangência do assunto, informou-se que “cerca de 30 Santas Casas no Brasil estão hoje sob intervenções federal, estadual ou municipal. Em São Paulo, esta é a situação das Santas Casas de Franca, Araraquara, Itu, Praia Grande, Jacareí e Guarulhos. […] Nos últimos cinco anos, várias filantrópicas fecharam suas portas em São Paulo ou estão em processo de desativação, a exemplo das Santas Casas de Buri, Sumaré, Itapetininga e Porangaba, além da Fundação Tita Resende, de Ribeirão Preto.”1
É sobre o contexto do exercício da intervenção que tratará este artigo.
2. O conceito de intervenção
O substantivo intervenção encerra a ideia da “ingerência de um indivíduo ou instituição em negócios de outrem” e, mais precisamente para o nosso interesse, a “interferência do Estado em domínio que não seja de sua competência, embora constitucionalmente legítima” ou a “intromissão de outro Estado em seus assuntos internos ou negócios externos.”2
Intervenção quer dizer a retirada temporária da autonomia do titular da atividade, visando a própria manutenção desta, com a consequente ocupação transitória (não perpétua) de sua propriedade, bens e serviços.
Diógenes Gasparini leciona o instituto como
a utilização, quase sempre transitória e auto-executória, pela Administração Pública, de bens particulares, mediante determinação da autoridade competente, com ou sem indenização posterior em razão ou não de perigo público.3
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, requisição administrativa
é o ato pelo qual o Estado, em proveito de um interesse público, constitui alguém, de modo unilateral e auto- executório, na obrigação de prestar-lhe um serviço ou ceder-lhe transitoriamente o uso de uma coisa in natura obrigando-se a indenizar os prejuízos que tal medida efetivamente acarretar ao obrigado.4
O verbo intervir, ligado umbilicalmente àquele substantivo, significa “ingerir-se (em matéria, questão etc.), com a intenção de influir sobre o seu desenvolvimento; interpor sua autoridade; suceder incidentemente”5, e, ainda, ingressar numa relação da qual não era parte, inicialmente.
Por importante e intrinsecamente ligado à intervenção devemos definir requisição6, também substantivo que significa o “ato através do qual se pede determinada providência, realizado por quem possui autoridade para tal”.7 Nessa toada, convém classificar o verbo requisitar, que é conceituado como o ato de “solicitar, com autorização legal, para uso no serviço público” e “exigir certa providência em razão da autoridade que alguém se encontra investido”.8
Para fins deste artigo, intervenção será considerada como um direito e a requisição uma das suas formas de materialização.
Não vamos tratar da intervenção direta que o governo (independentemente do regime adotado) realiza diuturnamente na economia e no mercado, visando a regulação do setor privado (fixando tributos, tarifas e subsídios) o que, por vezes, interfere nas finanças das empresas, dirigindo ou redirecionando para rumos não necessariamente desejados pelos empresários. E nem discutiremos se isso possui intenções boas ou não ou se visa alcançar a adequação das normas aos anseios sociais, encurtando o tamanho do abismo social e diminuindo as desigualdades.
Não trataremos das formas de intervenção do Estado nos direitos do cidadão, assegurando-os, quando ameaçados, ou restringindo alguns deles, individualmente, em prol da coletividade, quando assim se fizer necessário, posturas nas quais também está presente a democracia.
Não abordaremos a possibilidade constitucional de intervenção do governo nacional em entes políticos para preservação da intangibilidade do vínculo federativo, da unidade do Estado Federal e da integridade territorial das unidades federadas e também diante dos acontecimentos previstos na Constituição Federal9 10. Esta possibilidade é também suscitada, por exemplo, quando entes políticos descumprem regras de pagamento de suas dívidas, o que se dá por meio dos precatórios.11
Há a possibilidade legal de o Advogado-Geral da União12, diretamente ou mediante delegação, intervir nas causas em que figurarem, como autores ou réus, entes da administração indireta e autorizar a realização de acordos ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até quinhentos mil reais. É a intervenção anômala. Mas não é esta a vertente que nos interessa neste trabalho.
A intervenção aqui tratada pressupõe a existência de um serviço que não está sendo realizado a contento por alguém que o criou, o mantém e/ou o administra e de alguém superior, em razão de qualquer circunstância, inclusive jurídica, que tem poder para tomar o lugar daquele prestador para fazer melhor.
A intervenção é ato administrativo (ato de império) considerado de direito pessoal da Administração, discricionário quanto ao objeto e oportunidade da medida, excepcional, unilateral, transitório, auto-executório, pressupõe o cumprimento de requisitos e não pode ser regra, sob pena de desvirtuamento da sua previsão e finalidade.
3. A atuação das entidades sem fins lucrativos na saúde
A obrigação de oferecer saúde13 à população é do Estado14, como mandam os artigos 2315 e 19616 da Constituição Federal, diploma que incumbiu ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle.17
É público e notório que o Estado não consegue cumprir este mandamento constitucional sozinho, o que o obriga a se valer de alternativas para atingir tal fim, faculdade concedida pela própria Carta Magna ao prever que a execução das atividades da saúde pode ser feita “através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”18
Dentre as alternativas viáveis para o cumprimento do mandamento constitucional, a parceria entre os entes políticos e as entidades sem fins lucrativos19 nos parece ser a mais coerente e eficaz, haja vista os fracassos que a administração direta de serviços pelo Estado experimentou em diversas áreas, inclusive na saúde, e os êxitos que a aplicação desta estratégia tem apresentado nos últimos quinze anos em diversos Estados e municípios.
Os formatos, os modelos e os instrumentos jurídicos utilizados para o estabelecimento de parceria entre o Estado (Primeiro Setor) e a iniciativa privada sem finalidade de lucro (Terceiro Setor) são vários, como os contratos administrativos, os convênios, os Contratos de Gestão, decorrentes da qualificação de entidades como Organizações Sociais20 (OS) e os Termos de Parceria, oriundos da qualificação de instituições como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP).
Há ainda a possibilidade de o Poder Público contar com a atuação e os serviços desenvolvidos por fundações públicas (públicas de direito público e públicas de direito privado) e também as essencialmente privadas, estas constituídas à luz do artigo 6221 do Código Civil.
A parceria dos entes políticos não se dá somente com entidades sem fins lucrativos, entendidas estas (livremente) como integrantes e componentes do Terceiro Setor, mas também com empresas que têm finalidade de lucro, como é o caso das concessões de gerenciamento (e construção) de estradas, com posterior exploração da cobrança de pedágios, aeroportos, presídios e hospitais, como acontece no caso da opção pelas Parcerias Público-Privadas (PPP). 22 23
É a Constituição Federal de 1988 que permite que a iniciativa privada atue na assistência à saúde, “tendo preferências as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”24
E são essas entidades25, algumas seculares, que se dispõem a criar e gerir um estabelecimento de saúde para disponibilizar atendimento à população26. Elas são compostas por pessoas abnegadas, movidas pelo desejo de atender ao próximo e suprir a lacuna deixada pelo Estado brasileiro, nos seus 5.564 municípios, alguns sem nenhuma condição de ostentar tal condição, diga-se.
A missão é difícil. E é por isso que a parceria entre elas e o Estado se mostra oportuna e eficiente, pois se aliam a expertise profissional das instituições com a possibilidade/obrigação de custeio das atividades por parte da Administração Pública, fruto, aliás, da arrecadação dos impostos pagos por todos nós.
Apesar da enorme dificuldade factual, parte das entidades sem fins lucrativos mantenedoras de estabelecimentos de saúde consegue disponibilizar serviços com bastante qualidade aos cidadãos, o que se dá em razão de diversas circunstâncias e detalhes específicos, que levam em conta: a) a sua capacidade instalada (atendimento básico, secundário ou terciário), b) o nível de complexidade (baixa, média ou alta) da atividade, que indica a tabela de remuneração dos procedimentos a ser praticada pelo governo, c) a diversidade de especialidades médicas oferecidas ou o foco numa delas, como os serviços oncológicos, por exemplo, d) a possibilidade de atendimento de convênios e pacientes particulares e mais uma saraivada de motivos técnicos e administrativos que não vêm ao caso neste momento.
Justamente por causa de alguns dos breves componentes operacionais acima elencados é que, em contraponto e em paralelo às exitosas, encontramos entidades que não conseguem deslanchar suas atividades e algumas sequer se manterem abertas, quando coincidem situações negativas e difíceis (às vezes impossíveis) de serem contornadas. É claro que as que (sobre)vivem nestas condições terão mais dificuldades de oferecer serviços à comunidade, muito menos com a qualidade que seria desejada. E elas serão cobradas por isso pela coletividade e pelas autoridades.
As situações, as especificidades e o contexto geral nas quais os serviços de saúde desenvolvem as suas atividades são as mais diversas. E elas impactam de forma importante e definitiva no sucesso da manutenção das atividades às quais as entidades se dedicam.
Dentre as situações que podem impactar de forma negativa nos serviços citamos as seguintes: a) a baixa disponibilidade de mão de obra especializada, como a de médicos27, b) a (in)capacidade de geração de receita para i) remunerar a contento os profissionais, facilitando a sua fixação, ii) investir, iii) expandir, iv) cumprir as obrigações financeiras e legais tempestivamente, inclusive com fornecedores, prestadores de serviços, honorários médicos etc., c) a dificuldade de realizar os procedimentos mais bem remunerados pelos convênios, inclusive o SUS, d) a (im)possibilidade de profissionalizar e/ou capacitar a administração, e) a falta de comprometimento, contribuição e prestígio da população local e do entorno, f) a dificuldade de se obter parceria e ajuda institucional sequencial do Poder Público, g) a localização geográfica e diversos outras circunstâncias aqui omitidas por falta de espaço.28
Quando as instituições privadas não conseguem oferecer serviços de saúde à população ou quando estes não apresentam um mínimo de qualidade, surge o palco propício para a utilização do instrumento jurídico da intervenção do Poder Público, por meio da requisição de seus serviços, pessoal29, equipamentos, prédios, infraestrutura, móveis, bens de consumo, estoques, instalações etc.30
4. O cenário justificador da utilização da intervenção nos hospitais
O embasamento constitucional para o exercício do direito da intervenção estatal31 pelas autoridades constituídas na questão específica relativa à propriedade32 se encontra no artigo 5o, em inciso assim redigido:
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
A Constituição prevê que cabe à União legislar sobre requisições civis 33. Não há lei federal que regulamente o assunto aqui tratado, de forma direcionada.34
Ainda especificamente para a questão relativa à propriedade35 privada, o Código Civil previu a possibilidade de requisição da coisa de terceiro, o que fez da seguinte forma:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
[…]
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. (gr)
São os dispositivos acima transcritos que, por analogia, servem para sustentar a intervenção em hospitais, juntamente com o abaixo indicado, que é mais específico para a área da saúde.
A Lei n. 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, regulamentada vinte e um anos depois de sua edição pelo Decreto n. 7.508/11, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde-SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, prevê:
Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:
[…]
XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização; (gr)
A análise dos diplomas legais acima transcritos indica que o assunto foi tratado de forma específica para a questão relativa à propriedade privada e direta para a área da saúde, sem qualquer peculiaridade a respeito de eventual descompasso administrativo praticado por titulares de serviços da área da saúde.
Diante da imprecisão legislativa, resta-nos o uso da hermenêutica para interpretar as normas, o que pode sofrer distorções em razão do subjetivismo empregado neste exercício e dos interesses espúrios que habitam no consciente e no inconsciente da maioria dos políticos brasileiros.
A pesquisa e a experiência acumulada no trato de casos concretos relativos ao assunto revelam que o mote preferido dos entes políticos ou mesmo ministeriais para a utilização da intervenção é a presunção da ocorrência de má gestão36 nos serviços de saúde, o que colocaria em risco o atendimento de necessidades coletivas e, consequentemente, caracterizaria o constitucional iminente perigo público.
A má-gestão, que seria perpetratada pelas entidades mantenedoras e gestoras de atividades de saúde, se configuraria com a dificuldade de manutenção do serviço (assistência médico-hospitalar) em funcionamento, na sua redução, interrupção ou mesmo cessação, o que levaria a situação ao caos, com possibilidade de iminente colapso e perigo público concreto de deficiência ou paralisação parcial ou completa do atendimento hospitalar da população, o que invariavelmente ocorre em razão de desequilíbrio econômico-financeiro da instituição.
Assim, então, estaria configurado o cenário para a utilização da intervenção, cuja finalidade deve ser a preservação da sociedade justamente contra as situações de perigo público iminente que, desaparecidas, implicaria necessariamente na revogação da interferência.
A intervenção pelo Poder Executivo (nas suas três esferas), Ministério Público (Estadual e/ou Federal) ou Poder Judiciário, na modalidade de requisição de bens e serviços das entidades, teria a finalidade de a) reordenar, reorganizar e restabelecer adequadamente os serviços de saúde pública,
b) resolver a crise administrativa (que reduz as atividades assistenciais) e sanar os problemas internos da instituição, c) cumprir as obrigações legais, d) cumprir as obrigações contratuais, e) estabelecer o equilíbrio econômico-financeiro das contas, impedindo o risco da desestruturação da entidade e f) estabelecer uma nova estrutura funcional para a pessoa jurídica, tudo isso com a pretensão de garantir a continuidade e a qualidade dos serviços, com a sua manutenção.37
Os pressupostos para o exercício do direito de requisição são, basicamente, a) a existência, configuração, justificação e motivação38 do perigo público iminente, b) a decretação pela autoridade competente e c) a finalidade do uso determinada pela necessidade coletiva.39
A decretação da intervenção deve ser precedida da constatação de estado de calamidade pública40, que é definido como sendo a “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”41, conceito que precisa ser lapidado e adequado a cada situação concreta, por óbvio.
A declaração da calamidade pública é tratada no âmbito federal pela Lei n. 12.340/1042 e pelo Decreto n. 7.257/1043, sendo que este disciplinamento tem como objetivo resguardar uniformidade no tratamento da matéria e limitar o uso abusivo desse instrumento, haja vista que tais normas regulamentam o repasse de verbas públicas federais para entes políticos.
A Lei de Licitações também cuida da hipótese de acontecimento de situações que acarretam a decretação de calamidade pública, prevê a dispensa de licitação para a contratação de bens e serviços necessários para o atendimento da situação emergencial instalada44 e indica a forma processual a ser adotada para a sua caracterização.45
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União é no sentido de que as situações adversas dadas como calamidade pública ou emergência aptas a fundamentarem uma possível dispensa de licitação com base no art. 24, IV, da Lei n. 8.666/93, requer como premissa que tal fato não tenha se originado de falta de planejamento, desídia e má administração dos recursos disponíveis. Este tem sido o entendimento na Corte de Contas desde a Decisão n. 347/1994, Plenário, segundo a qual:
[…] quanto à caracterização dos casos de emergência ou de calamidade pública, em tese:
a) que, além da adoção das formalidades previstas no art. 26 e seu parágrafo único da Lei n. 8.666/1993, são pressupostos da aplicação do caso de dispensa preconizado no art. 24, inciso IV, da mesma Lei:
a.1) que a situação adversa, dada como de emergência ou de calamidade pública, não se tenha originado, total ou parcialmente, da falta de planejamento, da desídia administrativa ou da má gestão dos recursos disponíveis, ou seja, que ela não possa, em alguma medida, ser atribuída à culpa ou dolo do agente público que tinha o dever de agir para prevenir a ocorrência de tal situação;
a.2) que exista urgência concreta e efetiva do atendimento a situação decorrente do estado emergencial ou calamitoso, visando afastar risco de danos a bens ou à saúde ou à vida de pessoas;
a.3) que o risco, além de concreto e efetivamente provável, se mostre iminente e especialmente gravoso;
a.4) que a imediata efetivação, por meio de contratação com terceiro, de determinadas obras, serviços ou compras, segundo as especificações e quantitativos tecnicamente apurados, seja o meio adequado, efetivo e eficiente de afastar o risco iminente detectado;
Numa linha de pensamento mais abrangente e aglutinativa citamos decisão do Tribunal de Contas da União assim ementada:
A situação prevista no art. 24, IV, da Lei n° 8.666/93 não distingue a emergência real, resultante do imprevisível, daquela resultante da incúria ou inércia administrativa, sendo cabível, em ambas as hipóteses, a contratação direta, desde que devidamente caracterizada a urgência de atendimento a situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares.46
Fato é que, quando se tratar de intervenção, a situação vivenciada, que deve ser capaz de colocar a população em iminente perigo público, deverá ser justificada, contextualizada e motivada de forma inequívoca, específica e inquestionável, sob pena de utilização indevida e viciada de tal medida extrema, o que comportará seu enfrentamento no âmbito do Poder Judiciário e a eventual indenização da entidade que teve sua situação, bens e serviços turbados e invadidos indevidamente por terceiros.
5. Processualística da intervenção
O Poder Executivo pode se valer da requisição administrativa, ou seja, a utilização coativa de bens ou serviços particulares por ato de execução imediata e direta para atendimento de necessidades coletivas urgentes e transitórias, por meio da edição de um decreto, no qual obrigatoriamente deverá haver a descrição da situação de calamidade pública existente ou instalada, que possui contornos e reflexos sociais que justifiquem a necessidade de interferência no desenvolvimento da atividade privada, bem como a sua amplitude, o prazo de duração47, as condições de execução e a nomeação do interventor48.
A rigor, a decretação da intervenção no domínio econômico da atividade das entidades não depende de prévia autorização judicial49 para ser exercida pelo Poder Executivo, cabendo exclusivamente a este valorar a situação peculiar de perigo público iminente capaz de justificá-la e agir, interferindo naquela circunstância entendida como ameaçadora da paz pública.
Ao Judiciário caberia analisar a legalidade do ato e a observância dos requisitos legais exigidos e hipóteses justificantes para a sua utilização, se provocado pelo legítimo interessado, naturalmente.
Tem-se que a requisição, que é um dos modos da realização prática da intervenção, deve ser ampla 50 e abrangente 51 , de forma a abarcar todos os bens 52 móveis, imóveis, serviços e infraestrutura que compõem o plexo empresarial da instituição, pois é a pretendida administração correta, regular e profissional dele que justificaria o ato de interferência praticado pela autoridade legitimada a fazê-lo.
A entidade privada que sofreu a intervenção não passa a ser pública53, como vimos algumas sustentarem. Isso não acontece. As pessoas jurídicas, pública e privada, continuam distintas, até porque a intervenção é sempre temporária e não se perpetua no tempo, pelo menos em tese.
Já se discutiu no âmbito do Judiciário se o ente político que realiza a intervenção sucede a entidade, do ponto de vista do Direito do Trabalho, e se isso o tornaria responsável por dívidas trabalhistas do estabelecimento. O Judiciário Trabalhista tem entendido que não há esta ocorrência e que o município não teria responsabilidade quanto a estes débitos54 55 56, haja vista que a intervenção não guarda relação com a figura do sucessor trabalhista57, vez que os artigos 10 58 e 448 59 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pressupõem a existência de uma atividade empresarial, o que não se revela na figura da intervenção.
Também já se discutiu a respeito da ocorrência ou não responsabilidade tributária60 por sucessão comercial 61 , prevista no artigo 133 62 Código Tributário Nacional (CTN). Há jurisprudência no sentido de que não há falar-se em responsabilidade tributária do interventor pelos débitos do hospital63.
No âmbito do Direito Civil já se afirmou que o município promotor da intervenção também deve responder por eventuais danos causados decorrentes de má execução do serviço prestado pelo hospital, interventor ou instituição nomeada para fazer as vezes daquele, haja vista que o controle do atendimento nos serviços conveniados ao Sistema Único de Saúde, na esfera municipal, é encargo exclusivo dos municípios, conforme previsto no artigo 1864, inciso X, da Lei n. 8.080/90.65
Outra característica intrínseca a intervenção é a temporalidade da utilização do bem ou serviço requisitado. Isso quer dizer que, quando não mais se verificar a necessidade que motivou a requisição ou quando atingido o tempo estabelecido para a prestação de determinado serviço, não mais se justifica a sua continuidade e ela se extinguirá, devendo haver a restituição dos bens e serviços ao legítimo titular de outrora. Não é bem o que se constata na prática, pois há situações em que a intervenção dura anos a fio66 67 68, fruto da constante prorrogação do seu prazo inicial.
É evidente que se o Poder Público gerir mal os bens e serviços e causar dano69 ao patrimônio do particular ele deverá indenizar70 a entidade que sofreu a intervenção, na exata medida do prejuízo causado.71
O não êxito da intervenção deveria implicar, necessariamente, na extinção da entidade que a sofreu, pois estaria configurada a inviabilidade de manutenção da continuidade da realização dos serviços.
6. Conclusão72
O expediente da intervenção, na modalidade de requisição administrativa ou mesmo judicial, é legal e se constitui em instrumento jurídico eficaz para o fim a que se propõe, que é permitir a manutenção do atendimento de serviços de saúde à população, desde que utilizada de forma imparcial e voltada para o bem maior da coletividade.
É imprescindível a edição de norma jurídica pelo Poder Executivo para a realização da intervenção, devendo dela constar a descrição da situação de calamidade pública enfrentada e a motivação inquestionável do seu agir, visando evitar a utilização do direito de forma pessoal para fins espúrios.
Da mesma forma, eventual ação judicial promovida pelo Ministério Público deverá externar as hipóteses fáticas e jurídicas justificadoras da medida extrema da intervenção, devendo a decisão judicial assim também ser firmada, em obediência ao artigo 9373, IX, da Constituição Federal.
As entidades que sofrerem a intervenção podem buscar no Poder Judiciário a limitação do alcance ou mesmo a revogação da intervenção que for decretada em desarmonia com os requisitos legais exigidos se se constatar que a situação real não é a descrita nos atos administrativos editados.
Ninguém em são consciência é contra o oferecimento de ajuda na área da saúde para atender a população. A união de esforços do Poder Público e das entidades privadas em prol da coletividade é salutar e necessária.
Infelizmente, alguns governantes se utilizam da intervenção de forma distorcida, distanciada dos fatos verdadeiros, obscurecidos por desculpas e artimanhas sórdidas inventadas por administradores inescrupulosos que falseiam a verdade para obter dividendos políticos e serem tidos e reconhecidos como salvadores da pátria, o que não são. É puro e simples jogo de poder travestido de vontade repentina de proteger aqueles que nunca foram prioridade nas suas atuações políticas.
Não são raras as vezes em que governantes deixam hospitais filantrópicos e Santas Casas morrerem à mingua para que possam criar o cenário propício e se valerem do instituto da intervenção. Ao invés de eles agirem de forma proativa, firmando parcerias e ajudando as entidades a atenderem a população dignamente, preferem o estabelecimento do caos para facilitar o caminho da busca de interesses menos nobres. Agem de forma truculenta, às vezes embasados em argumentos jurídicos pífios que não se sustentam.
O exercício e a utilização da intervenção é a exteriorização do insucesso da negociação e do diálogo que deveria haver entre as pessoas. É o conflito de interesses e o antagonismo de posturas que a gera, sendo que, como sempre, quem menos ganha com ela é o usuário que precisa se utilizar dos serviços de saúde.
Publicado pela Revista Brasileira de Direito da Saúde – RBDS -, Ano III, n. 5, julho a dezembro de 2013, p. 9 a 32, Brasília, Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas