Josenir Teixeira
Advogado, Mestre em Direito Privado pela FADISP, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela UNIFMU/SP, em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), em Direito do Trabalho pelo Centro de Extensão Universitária (CEU/SP) e em Direito do Terceiro Setor pela FGV/SP. É vice-presidente do IBATS – Instituto Brasileiro de Advogados do Terceiro Setor. É fundador e editor da RDTS – Revista de Direito do Terceiro Setor. É membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP. É professor do curso de Direito do Terceiro Setor da Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/SP. Foi professor do curso de Pós-Graduação em Administração Hospitalar e Negócios da Saúde da UNISA/SP. É Conselheiro Fiscal do IATS – Instituto de Administração para o Terceiro Setor Luiz Carlos Merege. É autor dos livros Prontuário do Paciente: Aspectos Jurídicos e Assuntos Hospitalares na Visão Jurídica (www.abeditora.com.br); Opiniões (edição própria) e O Terceiro Setor em Perspectiva: da estrutura à função social (www.editoraforum.com.br). É articulista da revista www.noticiashospitalares.com.br. É articulista da Revista Brasileira de Direito da Saúde (www.rbds.com.br), editada pela CMB – Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas – CMB. É Diretor Jurídico da Pró-Saúde Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar. É assessor jurídico do IBCC – Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, da Cruzada Bandeirante São Camilo Assistência Médico-Social, da Sociedade Beneficente São Camilo – Sede e Caxambu/MG e da FBAH – Federação Brasileira de Administradores Hospitalares. OAB/SP 125.253
SUMÁRIO: 1. Introdução e contextualização do assunto. 2. Não obrigatoriedade legal de criação de Conselhos pelas entidades sem fins lucrativos. 3. Criação dos Conselhos a partir da analogia com a Lei das Sociedades Anônimas 4. Contexto de criação das Organizações Sociais federais. 5. Objetivo da criação dos Conselhos de Administração das Organizações Sociais federais e suas consequências administrativas e jurídicas. 6. Contexto da criação das Organizações Sociais estaduais e municipais. 7. Diferença entre as premissas das leis federais, estaduais e municipais para a criação dos Conselhos de Administração. 8. Impertinência da transposição da composição do Conselho de Administração das Organizações Sociais federais para as estaduais e municipais. 9. Parcerias entre os poderes públicos estaduais e municipais com entidades sem fins lucrativos já constituídas. 10. Confronto jurídico entre as leis estaduais e municipais com o Código Civil. Prevalência deste como norma a ser cumprida pelas associações civis. 11. Conclusão. 12. Bibliografia
RESUMO: A exigência da criação de Conselho de Administração pelas entidades sem fins lucrativos de direito privado, no seu estatuto, é inconstitucional e ilegal. O previsto nas leis estaduais e municipais, que copiaram os mesmos ditames constantes na lei federal n. 9.637/98, é impertinente, pois a premissa da qual esta partiu é diferente daquelas em que os entes políticos se basearam. Este artigo procura fundamentar juridicamente essa afirmação.
PALAVRAS-CHAVE: Conselho de Administração. Criação e implantação. Inconstitucionalidade. Leis federais, estaduais e municipais. Entidades sem fins lucrativos. Terceiro Setor.
- Introdução e contextualização do assunto
A premissa que norteia a criação de leis estaduais e municipais que qualificam entidades sem fins lucrativos com o título de Organizações Sociais é diferente da qual partiu o legislador que criou a lei federal n. 9.637/98.
Por conta dessa diferença e da sua não percepção pelos legisladores municipais e estaduais, que importam dispositivos da lei federal sem a preocupação de adequá-los à sua realidade, aberrações e anomalias jurídicas são cometidas, o que acaba por trazer insegurança jurídica às entidades que têm interesse em firmar parcerias com o Poder Público.
A lei federal n. 9.637/98 transformou órgãos públicos em entidades privadas e previu que, com estas, a União firmaria instrumentos jurídicos de parceria. Ao realizar tal transformação, os órgãos públicos federais foram extintos e deram origem a entidades privadas por meio do registro de seus atos constitutivos nos cartórios de registro de pessoa jurídica competentes. Referida lei traz com ela o Anexo 1, que nomina os órgãos públicos que foram extintos e que dariam lugar a entidades de direito privado, também nele mencionadas. A partir da criação de tais entidades privadas, com a extinção dos órgãos públicos, a União Federal firmou parcerias com a nova pessoa jurídica privada surgida, por meio do instrumento jurídico denominado Contrato de Gestão, visando o desenvolvimento de atividades[1] com menos engessamento burocrático, com direcionamento de foco no resultado e menos ênfase na burocracia.
As leis estaduais e municipais, todavia, e em regra generalíssima, não tratam da extinção de nenhum órgão público que os integrasse anteriormente. Estados e municípios buscam firmar parcerias com entidades sem fins lucrativos já existentes para que, juntos, consigam atingir determinados objetivos com mais precisão, rapidez e eficiência. Aliás, a maioria da legislação municipal e estadual exige que a entidade sem fins lucrativos que manifeste interesse na parceria demonstre possuir experiência de anos na execução das atividades que pretende ver desenvolvidas. E isso somente é possível a partir da preexistência formal e jurídica da entidade, naturalmente.
Ao extinguir órgãos públicos e transformá-los em pessoas jurídicas de direito privado, o legislador federal pretendeu continuar a participar e, de certa maneira, manter o controle da nova entidade privada surgida, o que é compreensível, já que ela nasceu justamente de dentro da Administração Pública federal para fora. Para que fosse possível exercer este comando ou essa participação, a lei federal n. 9.637/98 previu a criação de um Conselho de Administração, pela nova pessoa jurídica[2], cuja composição exige a presença de determinado percentual (20 a 40%) de membros natos do Poder Público[3] que deu origem à nova pessoa jurídica.
A importação (ou mera cópia) dos dispositivos textuais da lei federal pelos Estados e municípios sem o necessário joeiramento do que é factível para a sua realidade acaba por criar legislação que se constitui em monstrengo jurídico e que inviabiliza o seu cumprimento pelas entidades sem fins lucrativos, pois a premissa da qual partiram os entes políticos estaduais e municiais é diferente da qual partiu a União Federal.
É este o tema sobre o qual brevemente discorreremos.
- Não obrigatoriedade legal de criação de Conselhos pelas entidades sem fins lucrativos
A lei que rege a criação e funcionamento das associações (também chamadas de instituições, entidades, organizações etc.) sem fins lucrativos é o Código Civil (Lei n. 10.406/02), especificamente nos seus artigos 53 a 61.
Determina referido Código quais são os itens que devem obrigatoriamente conter no estatuto das associações:
Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:
I – a denominação, os fins e a sede da associação;
II – os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados;
III – os direitos e deveres dos associados;
IV – as fontes de recursos para sua manutenção;
V – o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos;
VI – as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução.
VII – a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
A Lei dos Registros Públicos (n. 6.015/73) traz previsões parecidas e que também são de cumprimento obrigatório.
Art. 120. O registro das sociedades, fundações e partidos políticos consistirá na declaração, feita em livro, pelo oficial, do número de ordem, da data da apresentação e da espécie do ato constitutivo, com as seguintes indicações:
I – a denominação, o fundo social, quando houver, os fins e a sede da associação ou fundação, bem como o tempo de sua duração;
II – o modo por que se administra e representa a sociedade, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente;
III – se o estatuto, o contrato ou o compromisso é reformável, no tocante à administração, e de que modo;
IV – se os membros respondem ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais;
V – as condições de extinção da pessoa jurídica e nesse caso o destino do seu patrimônio;
VI – os nomes dos fundadores ou instituidores e dos membros da diretoria, provisória ou definitiva, com indicação da nacionalidade, estado civil e profissão de cada um, bem como o nome e residência do apresentante dos exemplares.
Não se verifica em nenhuma dessas normas jurídicas a obrigatoriedade de criação de qualquer tipo de Conselho (Deliberativo, Consultivo, Administrativo, Fiscal, de Administração etc.). Já era assim no revogado Código Civil editado em 1916, que cuidava das associações sem fins lucrativos nos artigos 16 a 23. Para existirem e funcionarem, referidas entidades prescindem da existência de quaisquer Conselhos, simplesmente porque a lei de regência não impõe que, no estatuto, haja especificação acerca da sua criação, composição e funcionamento. A criação de Conselhos, sejam eles quais forem, é faculdade concedida pelo legislador às pessoas que tencionam criar entidades sem fins lucrativos. Associações podem existir sem a necessidade de se criar nenhum Conselho, nem o Fiscal, que é o mais comum.
E tal postura é sustentada pela própria Constituição Federal (CF), que prevê que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II).
Esta é a premissa que se deve partir, até porque a Constituição Federal assegura a criação de associações e veda a interferência estatal no seu funcionamento (art. 5º, XVII, XVIII, XIX e XX). Isso nada mais é do que a liberdade que a associação tem de existência e governança autônoma, sem ingerência estatal. Uadi Lammêgo Bulos comenta referido comando constitucional e afirma que “o direito de auto-organização significa que as associações e cooperativas possuem autonomia, permitindo-lhes elaborar os seus próprios atos constitutivos, escolhendo livremente as pessoas sem qualquer interferência do Poder Público”.[4]
Isso é diferente do acontece com as sociedades por ações, por exemplo, que são obrigadas a observar os ditames da Lei n. 6.404/76, que exige a criação do Conselho de Administração (art. 138, § 2º[5]) e, para qualquer tipo de sociedade anônima, o Conselho Fiscal (art. 161[6]).
Muito se discute sobre a reforma do Estado e as várias leis daí decorrentes que surgiram no cenário jurídico, mas não se olvide o ponto de partida sobre a constituição e funcionamento das entidades sem fins lucrativos de direito privado.
Isso porque há leis que obrigam as entidades a apresentarem no seu estatuto certas modalidades de Conselhos para que obtenham esta ou aquela certificação ou qualificação, como, por exemplo, a lei n. 9.637/98[7], que dispõe sobre a qualificação das entidades como organizações sociais. Nela há a Seção II – Do Conselho de Administração (arts. 3º e 4º), que exige a criação de tal órgão para que a entidade receba tal qualificação pelo Poder Público.
A lei n. 9.790/99, que trata da qualificação de OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), exige a criação do Conselho Fiscal pela entidade que tenha interesse em obter tal título do Poder Público. Eis o texto legal:
Art. 4o Atendido o disposto no art. 3o, exige-se ainda, para qualificarem-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, que as pessoas jurídicas interessadas sejam regidas por estatutos cujas normas expressamente disponham sobre:
[…]
III – a constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente, dotado de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade;
Ainda que tenha contexto e “justificativa” para a existência do Conselho de Administração, no caso das organizações sociais, esta imposição despreza a legislação codificada e, por tal motivo, não passa imune a severa crítica, inclusive diante da inconstitucionalidade que a macula.
Na mesma esteira existem leis municipais e estaduais que sequer apresentam motivação para tal inserção, além do desprezo das normas constitucionais e infraconstitucionais.
- Criação dos Conselhos a partir da analogia com a Lei das Sociedades Anônimas
Os Conselhos constituem-se em eficazes instrumentos de gestão. Alguns são instituídos por imposição legal. Outros, a partir da vontade dos idealizadores e constituidores das pessoas jurídicas, que inserem dispositivos nos atos constitutivos das pessoas jurídicas.
Nas sociedades anônimas, a figura dos Conselhos tem feito parte da estratégia de governança corporativa e, por força das alterações advindas da lei n. 12.431/11, que alterou o artigo n. 146 da lei n. 6.404/76, levou à busca da profissionalização, vez que não há mais a necessidade de os membros do Conselho de Administração serem acionistas.
Compete ao Conselho de Administração das sociedades anônimas (art. 142, lei n. 6.404/76), por exemplo: fixar a orientação geral dos negócios da companhia, eleger e destituir os diretores da companhia e fixar-lhe as atribuições, observado o que a respeito dispuser o estatuto, fiscalizar a gestão dos diretores, manifestar-se previamente sobre o relatório da administração e as contas da diretoria.
Já se verificava antes da promulgação da lei o crescimento de empresas que decidiram abrir o seu capital, o que fez surgir cursos para quem faz ou quer fazer parte de Conselhos, pois “se antes, os cargos de conselheiros eram ocupados na base do “quem indica”, e as cadeiras completamente reservadas para pessoas acima de 50 anos, hoje pelo menos é possível que o profissional mais jovem comece a se preparar para participar de um Conselho de Administração à medida que avança na carreira”.[8]
No panorama mundial, o Conselho de Administração ganhou destaque com a crise financeira global que se propagou em 2008, onde muitos apontaram a sua inoperância e até mesmo conivência com as práticas adotadas pelas empresas em geral.
Não se pode afirmar que a ideia do Conselho de Administração imposto pela lei n. 9.637/98[9] às entidades sem fins lucrativos de direito privado seja subsidiária da lei n. 6.404/76. O cerne da primeira quanto à existência do Conselho de Administração é a escancarada intromissão na existência e no desenvolvimento de atividades pela entidade privada, vez que impõe na sua composição a presença de 20 a 40% de membros representantes do Poder Público (alínea “a”, inciso I, art. 3º). O Conselho de Administração imposto pela lei n. 9.637/98 possui como atribuições privativas (art. 4º):
I – fixar o âmbito de atuação da entidade, para consecução do seu objeto;
II – aprovar a proposta de contrato de gestão da entidade;
III – aprovar a proposta de orçamento da entidade e o programa de investimentos;
IV – designar e dispensar os membros da diretoria;
V – fixar a remuneração dos membros da diretoria;
VI – aprovar e dispor sobre a alteração dos estatutos e a extinção da entidade por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros;
VII – aprovar o regimento interno da entidade, que deve dispor, no mínimo, sobre a estrutura, forma de gerenciamento, os cargos e respectivas competências;
VIII – aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que deve adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade;
IX – aprovar e encaminhar, ao órgão supervisor da execução do contrato de gestão, os relatórios gerenciais e de atividades da entidade, elaborados pela diretoria;
X – fiscalizar o cumprimento das diretrizes e metas definidas e aprovar os demonstrativos financeiros e contábeis e as contas anuais da entidade, com o auxílio de auditoria externa.
A leitura da lei n. 9.637/98 nos permite concluir que o Poder Público, representado por seus membros, imiscuirá na administração da entidade de direito privado surgida da extinção de órgãos públicos, em afronta à proibição constitucional de interferência estatal no funcionamento da associação, o que também colide com ditames previstos no Código Civil.
- Contexto de criação das Organizações Sociais federais
A lei n. 9.637/98 surgiu da necessidade de reforma do Estado. Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, discorreu sobre o assunto:
Vivemos hoje num cenário global que traz novos desafios às sociedades e aos Estados nacionais. Não é nenhuma novidade dizer que estamos numa fase de reorganização tanto do sistema econômico, como também do próprio sistema político mundial. Como conseqüência desse fenômeno, impõe-se a reorganização dos Estados nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que estão presentes na conjuntura atual.
[…]
Reformar o Estado não significa desmantelá-lo. Pelo contrário, a reforma jamais poderias significar uma desorganização do sistema administrativo e do sistema político de decisões e, muito menos, é claro, levar à diminuição da capacidade regulatória do Estado, ou ainda, à diminuição do seu poder de liderar o processo de mudanças, definindo o seu rumo.
[…]
Às vésperas da minha posse, realizamos um grande seminário internacional, aqui mesmo no Itamarati. Recordo-me de uma discussão a respeito do papel das organizações não-governamentais e do Estado. No início, essa relação ONG-Estado era marcada por uma espécie de distanciamento, até mesmo pelo antagonismo.
[…]
Isso significa que nós temos que preparar a nossa administração para a superação dos modelos burocráticos do passado, de forma a incorporar técnicas gerenciais que introduzam na cultura do trabalho público as noções indispensáveis de qualidade, produtividade, resultados, responsabilidade dos funcionários, entre outras. antagonismo.[10]
O Senado Federal, por intermédio da sua Advocacia, apresentou informações nos autos da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN n. 1.923-5[11] (STF), defendendo a lei em comento como um dos resultados da reforma do Estado:
Dentre as ações mais inovadoras e da maior relevância, encontra-se a regulamentação, por intermédio das normas aqui impugnadas, das Organizações Sociais.
Tais organizações não governamentais, cuja criação passa a ser incentivada pelo Estado, têm por finalidade incentivar a colaboração da sociedade civil organizada nas atividades públicas bem como dinamizar a atuação dos entes prestadores de serviços públicos, iniciativa que se insere na implementação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, o qual prevê a publicização dos serviços não-exclusivos do Estado, que consiste na absorção de atividades e serviços, ora geridos pelo Estado, por tais entidades privadas e sem fins lucrativos, que tenham sido qualificadas como Organizações Sociais, o chamado “terceiro setor”. Este projeto pretende estabelecer parcerias do Estado com a sociedade para a gestão de serviços de natureza social, contemplando o foco no cidadão-cliente, a ênfase no desempenho, na autonomia administrativa e no controle social. (negrito no original)
Luiz Carlos Bresser Pereira[12], um dos protagonistas da reforma do Estado, explica:
Na década de 80, logo após a eclosão da crise de endividamento internacional, o tema que prendeu a atenção de políticos e formuladores de políticas públicas em todo o mundo foi o ajuste estrutural ou, em termos mais analíticos, o ajuste fiscal e as reformas orientadas para o mercado. Nos anos 90, embora o ajuste estrutural continue figurando entre os principais objetivos, a ênfase deslocou-se para a reforma do Estado, particularmente para a reforma administrativa. A questão central hoje é como reconstruir o Estado – como redefinir um novo Estado em um mundo globalizado.
Também no Brasil ocorreu essa mudança de perspectiva. Uma das principais reformas a que se dedica o governo Fernando Henrique Cardoso é a reforma da administração pública, (…).
Escolhido para o cargo de ministro, propus que a reforma administrativa fosse incluída entre as reformas constitucionais já definidas como prioritárias pelo novo governo – reforma fiscal, reforma da previdência social e eliminação dos monopólios estatais.
O contexto da criação das Organizações Sociais tem origem na reforma do Estado (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado do Brasil – 1995), por meio do qual o ente político busca a ajuda das entidades privadas sem fins lucrativos, mediante parceria, para a realização da gestão eficiente, no sentido lato do termo, quanto à prestação de serviços não exclusivos do Estado, nestes incluídos o ensino, a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico, a proteção e preservação do meio ambiente, a cultura e a saúde.
O modelo gerencial das Organizações Sociais não é novo. No Brasil, desde 1991 há forma similar de prestação de serviços realizado pelo Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais (Brasília/DF), pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos criada por intermédio da lei n. 8.246/91[13] e que definiu o estabelecimento de Contrato de Gestão entre o Ministério da Saúde e a recém-criada associação, que é gestora da Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor. Esta lei autorizou o Poder Executivo a extinguir a Fundação das Pioneiras Sociais, no seu artigo 2º. Hoje, esta rede conta com hospitais em Brasília/DF, Salvador/BA, Belo Horizonte/MG e São Luís/MS, sendo que a prestação de serviços é de notória excelência, reconhecida nacional e internacionalmente.
O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, por intermédio do seu voto-vista na Medida Cautelar em ADIN n. 1.923, que indeferiu a liminar, destinou tópico específico (V) para expor a experiência da Associação das Pioneiras Sociais, nos seguintes termos:
Além da vasta legislação estadual atualmente existente sobre o tema das Organizações Sociais, o que comprova a larga aceitação e o sucesso desse novo modelo de gestão de serviços públicos, talvez um dos argumentos mais contundentes para afastar a alegada necessidade de concessão de medida cautelar nesta ação esteja na exemplar experiência da Associação das Pioneiras Sociais (APS), instituição gestora da Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor.
[…]
O modelo de contrato de gestão estabelecido pela lei impugnada – Lei nº 9.637/98 – baseou-se amplamente nesse sistema de gestão instituído pela Lei nº 8.246/91.
Imbuído do espírito de renovação e melhoria na prestação de serviços, e tendo como referência a lei n. 8.246/91, a debatida lei n. 9.637/98 (no seu Anexo I) extinguiu dois órgãos públicos: o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e a Fundação Roquette Pinto e autorizou a qualificação de ambas como Organizações Sociais, agora na qualidade de pessoas jurídicas de direito privado criadas com as seguintes denominações sociais: Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron – ABTLus e Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP.
A partir da criação de tais entidades sem fins lucrativos de direito privado, a União Federal com elas firmou parcerias por meio de Contrato de Gestão, visando o desenvolvimento de atividades com menos imobilização burocrática e orientação de foco no resultado.
- Objetivo da criação dos Conselhos de Administração das Organizações Sociais federais e suas consequências administrativas e jurídicas
A reforma do Estado foi o ponto de partida para a criação da lei da Organização Social, sendo que a lei n. 9.637/98, além do novo modelo gerencial apresentado, extinguiu dois órgãos públicos e autorizou o Poder Executivo a qualificar como Organizações Sociais as pessoas jurídicas de direito privado que foram criadas a partir daquela extinção.
Para que não perdesse o controle das pessoas jurídicas de direito privado criadas, inseriram-se na lei artigos relativos à criação do Conselho de Administração, obrigando a pessoa jurídica privada a compô-lo da forma ali prevista, inclusive com membros natos do Poder Público, pelo menos na proporção de 20 (vinte) a 40% (quarenta por cento). Dessa forma, o Primeiro Setor manteria certo controle quanto aos destinos dos extintos órgãos públicos.
A participação de membros natos do Poder Público no Conselho de Administração das pessoas jurídicas de direito privado tem razão de ser: estas foram criadas a partir da extinção de órgãos públicos. Este foi o objetivo da criação dos Conselhos de Administração das Organizações Sociais federais.
Ocorre que o legislador não se deu conta da gravidade desta imposição e suas consequências, pois outras entidades já existentes ou, ainda, novas que seriam criadas (não pelo Poder Executivo, mas por particulares) poderiam desejar obter a qualificação de Organizações Sociais, e elas teriam que permitir que representantes do Poder Público tivessem assento no Conselho de Administração que por elas deveria ser criado.
A intenção de haver controle social via Poder Público e membros representantes da sociedade civil (alíneas “a” e “b”, inciso I, do art. 3º, da lei n. 9.637/98), faz com que a entidade de direito privado que pretenda se qualificar como Organização Social perca a sua identidade, pois pessoas estranhas à sua realidade, ao seu cotidiano e à sua missão, passarão a opinar, tomar decisões e traçar diretrizes em seu nome, inclusive no que diz respeito à reforma de seu estatuto e à sua própria extinção. Isso é absolutamente temerário e não garantirá o aumento da eficiência e qualidade na prestação de serviços, além de ser fruto de inacreditável irreflexão do legislador que assim agiu.
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado menciona que “as organizações sociais terão autonomia financeira e administrativa” e, num paradoxo, cita, imediatamente após tal afirmação, a composição do Conselho de Administração. Reforçando a ideia de autonomia, o Plano defende que, em decorrência dela, seus dirigentes terão maior responsabilidade pelo seu destino.
É óbvio que o Conselho de Administração, com a composição prevista pela lei n. 9.637/98 e cujas atribuições gerenciais que lhe são impostas, retira ilegalmente a autonomia administrativa da entidade de direito privado já existente e que pretenda obter a qualificação de organização social outorgada por estados e municípios. E isso ocorre porque os textos da esmagadora maioria das leis estaduais e municipais são plagiados da lei federal sem nenhum pudor e sem a necessária adequação à realidade de tais entes políticos e à diferença de suas necessidades.
Afirmou Luiz Carlos Bresser Pereira que “no estatuto legal das organizações sociais, há toda uma série de exigências para garantir seu caráter público e para evitar que a mesma seja feudalizada. O requisito principal é o de que, no estatuto da entidade, o poder não esteja concentrado nos sócios (se se tratar de associação), mas no Conselho de Administração.”[14]
Vê-se, também por isso, que a transposição impensada do modelo federal para os estados e municípios, sem as necessárias adequações, se mostra inadequado, diante da discrepância das entidades sem fins lucrativos de direito privado buscadas pelos últimos entes políticos, que não extinguem órgãos públicos de suas estruturas, diferentemente do que foi feito pelo primeiro.
A prestação de serviços de interesse público por outrem que não o Estado[15] não é novidade. Antes do advento legal das Organizações Sociais, as atividades da área da saúde, por exemplo, há muito não são exercidas somente pelo Estado. As pessoas jurídicas de direito público firmam parcerias (convênios, principalmente) com associações sem fins lucrativos para o gerenciamento das suas unidades de saúde há décadas. E não se tem notícia que houvesse exigência acerca da obrigatoriedade da criação de qualquer Conselho de Administração para que o relacionamento pudesse se efetivar. É verdade que os tempos são outros, mas as leis precisam ser analisadas no seu conjunto e de forma harmônica.
O Decreto-lei n. 200/67, que trata da organização da Administração Federal e estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa, em vigor até os dias de hoje, já previa exatamente isso, ao dispor:
Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada.
[…]
- 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução. (sic)
A fiscalização acerca do cumprimento das obrigações e prestação de contas do dinheiro público que era transferido para a associação sempre existiu e se dá por intermédio dos mecanismos previstos na lei n. 8.666/93 (Lei de Licitações).
É certo que a qualificação de entidade como Organização Social e o firmamento do Contrato de Gestão prescindem de licitação. No entanto, o Poder Público não está descoberto de rigorosos mecanismos aptos a fiscalizar as parceiras. Ele pode e deve fiscalizar (contábil, operacional, patrimonial, orçamentária e financeiramente) de diversas formas, inclusive pelas previstas na própria lei para o controle interno, via contrato de gestão, e também para o externo, por intermédio do Tribunal de Contas da União – TCU.
Ainda que haja controvérsia sobre a legitimidade do TCU em fiscalizar a entidade privada diretamente, diante do previsto no art. 70, CF, o entendimento a seguir mencionado mostra-se o mais correto:
O caput do art. 70 da CF/88 estabelece a realização de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração direta ou indireta, não permitindo, a princípio, sua incidência sobre o terceiro setor parceiro do Estado. No parágrafo único do citado preceito constitucional – reforçado, a nosso ver, pelo conteúdo dos incisos II e IV do art. 71, CF -, há menção, no entanto, ao dever de prestação de contas por entidades privadas quando gestoras de recursos públicos, podendo-se asseverar ter o constituinte incluído as entidades do terceiro setor no âmbito de incidência dos tipos de fiscalização.[16]
As competências da União estão apresentadas ao longo dos vários incisos dos arts. 21 a 24, CF, e não se verifica em nenhum deles a permissão para interferir na administração de pessoa jurídica de direito privado. E nem poderia ser diferente, haja vista a expressa vedação do inciso XVIII, do art. 5º, da Carta Magna.
Não pode o Poder Público fazer parte da gestão e nem interferir na tomada das decisões da entidade privada, muito menos determinar o que deve ou não constar no seu estatuto, ainda que sob o manto da lei (inconstitucional, nos artigos debatidos) e sob a justificativa de que esta exerce atividade pública e recebe bens, verbas e servidores públicos. Isso nada mais é do que o aviltamento do Estado Democrático de Direito, que tem como um dos seus fundamentos o valor social do trabalho e o da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF).
Esta imposição legal representa hediondo e perigoso retrocesso aos tempos do Estado Novo, no qual a CF de 1937 interrompeu o Estado Democrático iniciado em 1934 e impôs restrições e arbitrariedades sob a justificativa do estado de apreensão no país pela infiltração comunista (Preâmbulo). Era Getúlio Vargas, auxiliado por seu ministro da Justiça Francisco Campos, no exercício da ditadura e do afastamento da democracia do país.
Os dias passaram, o mundo evoluiu, as Constituições Federais brasileiras sofreram importantes alterações (1946, 1967, 1969[17], 1988) e não é possível aceitar que o Poder Público volte a estabelecer regras para o funcionamento das associações, que é o que se via com a permissão constitucional da época de Vargas (CF/37) e, pior, faça parte efetiva da sua administração.
A exigência para que haja o Conselho de Administração e que nele integre determinado número de membros representantes do Poder Público, a partir da obrigação de previsão estatutária da entidade, mandada pelo Estado, demonstra o desatendimento do princípio da razoabilidade que, nas palavras de Fábio Pallaretti Calcini, é uma “forma de controle do mérito dos atos estatais”[18], inclusive os legislativos.
O mesmo autor[19] cita José Afonso da Silva, no que se refere à abertura que o princípio da razoabilidade proporciona:
[…] uma ampla possibilidade de questionamento judicial acerca do mérito dos atos legislativos e administrativos, cuja margem de discrição perde a exagerada onipotência que normalmente se lhe atribui, de modo a permitir aos juízes exercer um efetivo controle no tocante à razoabilidade e à racionalidade das classificações legislativas, que não devem ser arbitrárias, implausíveis ou caprichosas, mas meios idôneos, hábeis e necessários ao atingimento de finalidade constitucionalmente válida, exigindo-se, para tanto, uma indispensável relação de congruência com o fim a que se destinam.[20]
Outro enfoque a ser abordado refere-se à participação dos servidores da União nos Conselhos de Administração.
Aplicando-se por analogia o comando do inciso X, do art. 117, da lei n. 8.112/90 (que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais), que proíbe o servidor de fazer parte de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, com exceção prevista no inciso I do mesmo artigo, para participação nos conselhos de administração e fiscal de empresas ou entidades em que a União detenha, direta ou indiretamente, participação no capital social ou em sociedade cooperativa constituída para prestar serviços a seus membros, conclui-se que também por este prisma legal a participação dos membros do Poder Público na tomada de decisões acerca da administração de entidades privadas por intermédio do Conselho de Administração é inadmissível.
O Estado tem o direito-dever de fiscalizar, mas não tem o direito e nem legitimidade para administrar as entidades privadas por intermédio do Conselho de Administração.
É possível entender o objetivo primeiro do legislador federal para a criação do Conselho de Administração, mas isso não passa pelo crivo da constitucionalidade. As alíneas “c” e “d” do inciso I dos artigos 2º, art. 3 e incisos IV e VI, 4º, da lei n. 9.637/98, são inconstitucionais, além de irem de encontro ao previsto no artigo 59 do Código Civil.
- Contexto da criação das Organizações Sociais estaduais e municipais
A lei de criação das Organizações Sociais federais partiu de premissa estudada acima. Já as leis que instituíram a qualificação das Organizações Sociais no âmbito dos Estados e municípios partiram da lei federal, mediante aproveitamento por estes daquele texto normativo, pois a intenção de modernização e busca da eficiência na prestação dos serviços públicos é interessante e atraente para o bom administrador público.
Porém, a cópia dos dispositivos da lei federal, pelos Estados e Municípios, sem a adaptação da norma jurídica para a sua realidade, acaba por criar franksteins jurídicos que impedem o seu integral cumprimento, como deveria ser exigido.
A premissa da qual partem estados e municípios é totalmente diferente da qual partiu a União Federal. Falta às leis municipais e estaduais aquilatar o que realmente pretendem seus titulares, diante dos seus cenários específicos.
Cabe destaque ao tão mencionado Conselho de Administração que, ainda que inconstitucional a sua previsão pela lei n. 9.637/98, houve pretensa “justificativa” para tanto, vez que, ao extinguir órgãos públicos e transformá-los em pessoas jurídicas de direito privado, o legislador federal pretendeu continuar a participar e manter o controle das novas entidades surgidas.
Para que fosse possível exercer este comando ou essa participação, a lei federal n. 9.637/98 previu a criação do referido Conselho pela nova pessoa jurídica, cuja composição exige a presença de determinado percentual de membros natos do Poder Público, ou seja, daquele Poder que deu origem à nova pessoa jurídica.
Deveriam os criadores de tais leis municipais e estaduais levar em conta a sua realidade e o que realmente necessitam e não simplesmente copiar legislação sem a necessária reflexão a respeito da sua aplicabilidade e possibilidade de cumprimento integral pelas entidades sem fins lucrativos privadas que se interessarem em ajudar os governos a cumprirem os mandamentos constitucionais que lhe são impostos.
A consequência, infelizmente, é o contínuo descumprimento da legislação pelas entidades, o que as vulnera e lhes traz incomensurável insegurança jurídica, com a qual, infelizmente, terão que conviver, se quiserem efetivamente contribuir com o ente político, o que não se mostra razoável nem plausível.
- Diferença entre as premissas das leis federais, estaduais e municipais para a criação dos Conselhos de Administração
A premissa que norteia a criação de leis estaduais e municipais que qualificam entidades sem fins lucrativos com o título de Organizações Sociais, no que se refere ao Conselho de Administração, é diferente da qual partiu o legislador que criou a lei federal n. 9.637/98.
A lei federal teve como pressuposto para criação do Conselho de Administração a permanência no gerenciamento das atividades desenvolvidas pelas entidades privadas criadas por conta da extinção dos órgãos públicos.
Diferentemente, as leis estaduais e municipais não tratam da extinção de nenhum órgão público que os integrasse anteriormente. Estados e municípios buscam firmar parcerias com entidades sem fins lucrativos já existentes para que, juntos, consigam atingir determinados objetivos com mais precisão, rapidez e eficiência. Aliás, a maioria dessas legislações municipais e estaduais exige que a entidade sem fins lucrativos tenha experiência de anos na execução das atividades que pretende ver desenvolvidas.
Por conta dessa diferença e da não percepção pelos legisladores municipais e estaduais, que importam dispositivos da lei federal sem a preocupação de adequá-los ao seu contexto, equívocos jurídicos são cometidos, o que fragiliza o relacionamento entre as partes e expõe as entidades de forma indevida e não desejada.
O outro lado também merece destaque, que é a legislação estadual e municipal elaborada a partir da redação federal, mas respeitando, nem que seja de modo relativo, se é que isso é possível, a Constituição Federal no que aquela desprezou em relação à proibição de interferência estatal no funcionamento das associações.
Cabe referência à Lei Complementar n. 846/98, do Estado de São Paulo, que foi regulamentada pelo Decreto n. 43.493/98, onde a composição do Conselho de Administração não conta com representantes do Poder Público:
Artigo 3º. – O Conselho de Administração deve estar estruturado nos termos do respectivo estatuto, observados, para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos:
I – ser composto por:
- a) até 55 % (cinqüenta e cinco por cento) no caso de associação civil, de membros eleitos dentre os membros ou os associados;
- b) 35% (trinta e cinco por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do Conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral;
- c) 10% (dez por cento) de membros eleitos pelos empregados da entidade;
Peca referida lei por exigir que a entidade preveja no seu estatuto a criação do Conselho de Administração e por manter algumas atribuições que são privativas da assembleia geral, conforme previsto no artigo 59 Código Civil, para o indigitado Conselho: alteração do estatuto e destituição dos administradores.
Situação idêntica é a verificada na lei n. 14.132/06, do município de São Paulo[21]:
Art. 3° O Conselho de Administração deve estar estruturado nos termos do respectivo estatuto, observados, para fins de atendimento dos requisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos:
I – ser composto por:
- a) 55% (cinqüenta e cinco por cento), no caso de associação civil, de membros eleitos dentre os membros ou os associados;
- b) 35% (trinta e cinco por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do Conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral;
- c) 10% (dez por cento) de membros eleitos pelos empregados da entidade;
Isso já não acontece, por exemplo, com a lei n. 2.546/08, editada pelo município de Guararema/SP, onde o legislador teve sensibilidade e extirpou as violações da Constituição Federal e do Código Civil que tinham na lei paradigma (9.637/98) e elaborou a lei de Organização Social no âmbito municipal que merece atenção:
Art. 6o – A entidade deverá criar um Conselho de Administração, por intermédio de ata de assembléia geral extraordinária de seus associados, para decidir todas as questões inerentes ao Contrato de Gestão no Município onde for qualificada como Organização Social, devendo tal órgão ser regido pelas seguintes regras:
I – ser composto por:
- a) 60% (sessenta por cento) de membros eleitos dentre os membros ou os associados;
- b) 30% (trinta por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do Conselho de Administração, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral do Município;
- c) 10% (dez por cento) de membros eleitos pelos empregados da entidade.
Nos termos da lei em comento, deverá existir o Conselho de Administração, mas não previsto no estatuto (o que atende o Código Civil), mas por meio de assembleia geral extraordinária, cuja deliberação é reduzida por escrito, em ata.
Referido Conselho de Administração versará sobre assuntos relacionados com o contrato de gestão que for firmado com o município, ou seja, específico para este fim e sem a ingerência estatal, vez que não impõe na sua composição a presença de membros do Poder Público (o que respeita a Constituição Federal). É a medida exata para a criação e atribuições do Conselho, até porque a associação poderá, assim, firmar contratos de gestão precedidos de qualificação como organização social com diferentes municípios e estados, sem que a sua administração, como um todo, fique à mercê do Poder Público nas suas diversas esferas.
- Impertinência da transposição da composição do Conselho de Administração das Organizações Sociais federais para as estaduais e municipais
A lei n. 9.637/98 criou o Programa Nacional de Publicização que, segundo Luiz Carlos Bresser Pereira[22], “constitui uma alternativa ao estatismo, que pretende tudo realizar diretamente pelo Estado, e a privatização, pela qual se pretende tudo reduzir à lógica do mercado e do lucro privado.” Continua o autor afirmando que
O processo de publicização começa com a decisão da entidade e do ministro supervisor de caminhar nessa direção. Tomada de decisão, é necessário para extinguir a entidade estatal que realiza as atividades a serem publicizadas para que estas possam ser absorvidas por uma associação ou fundação de direito privado, criada por pessoas físicas.
[…]
O aumento da esfera pública não-estatal aqui proposto não significa, portanto, a privatização de atividades do Estado. Ao contrário, trata-se de ampliar o caráter democrático e participativo da esfera pública, subordinada a um Direito Público renovado e ampliado. A impossibilidade de captura privada ou privatização da entidade (que assim se transformaria em uma falsa OSPNE, como existem muitas no Brasil) está automaticamente garantida pelo contrato de gestão e pela própria natureza da entidade. Não obstante, uma série de cautelas legais e administrativas foram adotadas, particularmente a exigência do contrato de gestão, o permanente controle dos resultados pelo ministério supervisor e pelos órgãos de controle interno e externo e a própria constituição do conselho de administração, no qual a presença de personalidades da sociedade eleitas e de representantes natos da sociedade civil permitirá um maior controle social.
Está indiscutivelmente claro que o raciocínio para a criação e composição do Conselho de Administração foi desenvolvido a partir da publicização de órgão público, ou seja, a extinção dele e a criação de associação civil sem fins lucrativos de direito privado que absorveria as suas atividades, a verba, servidores públicos e os bens, estes de forma precária.
Luciana de Medeiros Fernandes analisa o nascimento das organizações sociais advindas da publicização como “designativos de pessoas jurídicas de direito privado, instituídas com feição nitidamente substitutiva de órgãos ou entidades de direito público, cujas atribuições devem ser incorporadas pelos novos agentes privados, através da celebração de contratos de gestão. Negou-se, por assim dizer, às organizações sociais a espontaneidade de atuação da sociedade civil, elemento que está na base teórica das noções de parceria entre o público e privado e de Estado subsidiário.”[23]
Nessa linha de raciocínio, a premissa era de que somente seriam qualificadas como Organização Social as extintas entidades estatais, justificando, portanto, o surgimento do Conselho de Administração. Afinal, a ideia do Estado não era (nem nunca foi, neste particular) privatizar, mas publicizar, o que significa transferir a execução da prestação de serviços não exclusivos, mas mantendo o controle da pessoa jurídica de direito privado.
E foi nesta equivocada visão que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ilmar Galvão, prolatou o seu voto na Medida Cautelar em ADIN n. 1.923-5, cujo excerto induz o desavisado a erro:
Na verdade, por meio da “qualificação” que os habilita a cumprir o contrato de gestão, atua o Estado como verdadeiro criador da organização, que nenhum objetivo terá senão servir como agente descentralizador da Administração, com a qual mantém relação de dependência constante e efetiva, não limitado à cooperação para produção de determinados resultados, mas decisiva.
O contrato de gestão, causa determinante da instituição das organizações sociais, estabelece, como se viu, as atribuições e responsabilidades do novo ente, o Ministério a que será adstrito, as bases gerais de sua organização, as funções dos órgãos de direção e os bens e meios econômicos que lhes serão atribuídos.
Não passam, portanto, de simples instrumento técnico de que se utiliza o Estado para a gestão de seus próprios serviços; por ele criado, utilizado e, quando for o caso, extinto por via da desqualificação.
[…]
A sua extinção ou dissolução só pode ser decidida pelo Estado. Não é, portanto, o árbitro de sua própria vida, do mesmo modo que não pode subtrair-se nem abdicar do desempenho da função pública que lhe foi destinada e que executa como função própria do Estado, desenvolvida por meio de sua capacidade ordinária de direito privado.
Não apenas seu nascimento, repita-se, mas também a sua vida e a sua morte se acham na dependência da vontade do Estado, ao qual, por óbvio, permanecem íntima e indissoluvelmente ligadas, como os demais entes da administração indireta, razão pela qual, nesse ponto, estão submetidas a princípios de direito público.
No trecho acima transcrito há nítido enleio entre a existência da associação civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de direito privado que é, com a qualificação como Organização Social, que representa uma titulação, dando a impressão de serem única coisa.
Parte o relator do pressuposto, pela redação transcrita, que só existirá organização social advinda da finalização do órgão público e consequente nascimento da entidade privada, sendo o Estado responsável por tudo: criação, gestão e até a definição da sua morte.
Causa estranheza esta limitada percepção da lei, mas isso demonstra que o pensamento, embora equivocado, para que o Estado administre e controle por meio do Conselho de Administração tais associações qualificadas como Organização Social, é coerente.
Este raciocínio também foi utilizado por um dos principais mentores da reforma do Estado, o então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. Mas isso que não reflete o alcance da lei, pois outras associações civis sem fins lucrativos, que não as criadas pelo Estado, também podem pretender se qualificar como Organização Social perante o Poder Público. E, neste caso, razão nenhuma há para a existência do Conselho de Administração e muito menos que, na sua composição, figurem membros do Poder Público, vez que não se originaram de extintos órgãos públicos.
Por esta razão, a existência do Conselho de Administração na esfera federal tem certa lógica, o que não se reconhece seja constitucional. Nos âmbitos municipais e estaduais não existe coerência ou lógica nenhuma, pois os seus legisladores, de forma impertinente e desavisada, simplesmente transpuseram o texto federal para as suas esferas, sem que, ao menos, estivesse a exigência do Conselho de Administração (e sua composição) justificada pela extinção de órgãos públicos para a criação de associações civis de direito privado, tal qual aconteceu na lei n. 9.637/98, o que não afasta, de qualquer forma, a violação constitucional.
- Parcerias entre os poderes públicos estaduais e municipais com entidades sem fins lucrativos já constituídas
Muitos entes políticos optaram pela parceria com as entidades sem fins lucrativos, impulsionados pela forma instituída inicialmente pela lei n. 9.637/98 e copiada por eles nos seus âmbitos de atuação, alguns com as necessárias adaptações, mas outros não. São exemplos que regulam a qualificação das Organizações Sociais pelo Poder Público:[24]
Ente político | Nº da lei |
Bahia | 7.027/97 e 8.647/03 |
Ceará | 12.781/97 |
Espírito Santo | LC 158/99 e 489/09 |
Goiás | 15.503/05 |
Maranhão | 7.066/98 |
Rondônia | 2.387/11 |
Iguape (SP) | 2.037/10 |
Itupeva (SP) | 1.718/09 |
Praia Grande (SP) | 1.398/08 |
Uberlândia (MG) | 7.579/00 |
Rio de Janeiro – RJ | 5.026/09 |
Também contam com leis específicas sobre Organizações Sociais estados como o Pará (5.980/96), Pernambuco (11.743/00), Santa Catarina (12.929/04), Espírito Santo, Acre (Medida Provisória n. 01/06) e o Distrito Federal (4.081/08), entre outros.
Vários municípios também editaram leis sobre Organizações Sociais, tais como São Paulo (14.132/06), São Carlos/SP (14.060/07), Atibaia/SP (Lei Complementar 457/05), São Sebastião (1.872/07), Cubatão/SP (2.764/02), Santo André/SP (8.294/01), Barretos (3.447/01), Barueri/SP (1.360/03), São Vicente/SP (1.865-A/07), Jundiaí/SP (7.116/08), Araucária/PR (1.856/08), Ipatinga/MG (2.340/07), entre outros.
Muitas entidades que não foram criadas pelo Poder Público[25] e nem a partir da extinção de órgãos públicos celebraram Contrato de Gestão com o Estado de São Paulo, dentre elas:
Entidade | Hospital |
Associação Beneficente Casa de Saúde Santa Marcelina | Geral de Itaquaquecetuba |
Geral do Itaim Paulista | |
Associação Congregação de Santa Catarina | Geral de Pedreira |
Geral de Itapevi | |
Fundação ABC | Estadual Mário Covas – Santo André. |
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo | Geral de Guarulhos |
Ambulatório de Especialidades Dr. Geraldo Paulo Bourroul | |
SECONCI – Serviço Social da Indústria da Construção Mobiliário do Estado de São Paulo | Geral de Itapecerica da Serra |
Estadual de Vila Alpina | |
Centro de Referência do Idoso da Zona Norte |
Inclua-se no quadro acima a entidade denominada Cruzada Bandeirante São Camilo Assistência Médico-Social que possui mais de 10 (dez) contratos de gestão com o governo do Estado de São Paulo e a entidade denominada Pró-Saúde Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar que possui diversos contratos de gestão com vários entres políticos por todo o Brasil.
As parcerias firmadas entre as entidades do Terceiro Setor e o Poder Público, especialmente pela qualificação como Organização Social, acabou se transformando e se realizando em modelo de gestão por meio do qual os entes políticos passaram de executores ou prestadores diretos de serviços para reguladores da atividade, por meio da fiscalização e avaliação qualitativa periódicas das ações desenvolvidas pelas entidades sem fins lucrativos e cumprimento das metas por eles[26].
- Confronto jurídico entre as leis estaduais e municipais com o Código Civil. Prevalência deste como norma a ser cumprida pelas associações civis.
O artigo 54 do Código Civil determina o que deve conter no estatuto de uma associação civil, sob pena de impossibilidade de seu registro. Exige o inciso V de tal artigo que se identifique o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos. Não se impõe expressa ou tacitamente quais sejam estes órgãos, muito menos a composição deles. Não se exige que a associação tenha no seu estatuto a previsão da existência do Conselho de Administração, sua composição e que parte dos seus componentes seja representantes do Poder Público ou de entidades da sociedade civil, que é o que impõe as alíneas “c” e “d”, inciso I, artigos 2º e 3º da lei n. 9.637/98, inúmeras vezes reproduzidas país afora.
O tumulto legislativo não para aí. As atribuições do Conselho de Administração verificadas nos incisos IV e VI do artigo 4º da lei n. 9.637/98 e as suas cópias pelos Poderes Executivos municipais e estaduais violam o Código Civil (art. 59, incisos I e II), na medida em que este determina que compete privativamente à assembleia geral eleger e destituir administradores e alterar o estatuto.
A lei n. 9.637/98 e outras estaduais e municipais que são reproduções dela retiram da competência da assembleia geral, que é exclusiva (ou privativa), tais atribuições e as transfere para o Conselho de Administração, desprezando o comando do Código Civil, sem revogá-lo expressamente. E nem poderia, haja vista que aquela lei cuida de qualificação, ou seja, concessão de um título e não de regras para criação de pessoa jurídica de direito privado de fins não econômicos, que é o que preveem os dispositivos civilistas.
Tramita no Supremo Tribunal Federal, além da ADIN n. 1.923-5, a de n.1.943-1/DF[27] contra as leis n. 9.637/98 e 9.648/98[28], estando ambas aguardando julgamento do mérito. Em voto proferido na Medida Cautelar em ADIN 1.923-5/DF, o ministro Ilmar Galvão (relator), que foi contrário à concessão da liminar, fundamentou assim seu posicionamento:
Os dispositivos legais transcritos instituíram, entre nós, sob a denominação de organizações sociais, um novo tipo de entidade de direito privado, destinada a atuar nas áreas do ensino, da pesquisa científica, do desenvolvimento tecnológico, da proteção e preservação do meio ambiente, da cultura e da saúde.
Sua qualificação como tal é feita pelo Governo, por meio de ato do Poder Executivo, mediante a comprovação de observância de requisitos minuciosamente especificados nos arts. 2º, 3º e 4º da lei transcrita.
O entendimento do ministro merece contraposição, pois inexiste um novo tipo de entidade de direito privado. A entidade – associação, no rigor técnico legislativo – é aquela mesma prevista no Código Civil (arts. 44[29], 53 a 61). A Presidência da República, por intermédio da Advocacia Geral da União – AGU, nas informações prestadas na mesma Medida Cautelar, reconheceu que:
Não houve, propriamente, criação ou instituição de novo tipo societário. São, na verdade, sociedades civis sem fins lucrativos que, acomodando-se nos requisitos enumerados na lei, podem qualificar-se como organizações sociais. E, aí, espera-se que, um pouco menos peiadas, consigam mais eficientemente prestar os serviços que o Estado, com as amarras que lhe apuseram, não vem conseguindo.
A AGU salientou, em outra passagem, que “nenhuma entidade é constituída como organização social”, vez que a sua criação passa, necessariamente, pela forma prevista no Código Civil e, caso queira se qualificar como organização social, seguirá a lei de qualificação.
A lei n. 9.637/98 dispõe sobre a forma de qualificação como Organização Social de entidade preexistente, ou seja, já constituída como associação sem fins econômicos, além de dispor sobre o contrato de gestão e assuntos correlatos. Exceção somente verificada em relação à Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron – ABTLus e à Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP, cuja criação de ambas foi expressamente referida na lei.
Organização Social é a denominação de uma qualificação (título, certificação, condecoração etc.) que o Poder Executivo, das três esferas políticas, discricionariamente, pode conceder às entidades sem fins lucrativos que preencherem os requisitos das respectivas legislações que as criaram e cujas finalidades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, dentre outras, conforme previsão legal específica. Não é nova forma de pessoa jurídica.
Deve prevalecer o previsto pelo artigo 54 do Código Civil sobre o conteúdo do estatuto da associação, que não exige a criação de Conselho de Administração, sua composição e atribuições, e o artigo 59 do mesmo diploma, no que pertine à alteração do estatuto (inciso II) e destituição dos administradores (inciso I), serem de competência exclusiva da assembleia geral.
- Conclusão
A existência das Organizações Sociais como modelo ou sistema de gestão, ao que tudo indica, veio para ficar, até diante da necessidade de modernização efetiva e eficaz da administração pública.
A lei n. 9.637/98 não passa a brancas nuvens pelo crivo da constitucionalidade, pecando pela exigência do Conselho de Administração e ingerência estatal na entidade privada, além de retirar atribuições privativas da assembleia geral e transferi-la para o Conselho de Administração, sem autorização constitucional para fazê-lo.
Seguem nessa mesma linha equivocada algumas leis estaduais e municipais. Há minoria que partiu do modelo apresentado pela lei n. 9.637/98, adaptou-a à sua realidade e observou a Constituição Federal e o Código Civil.
A inconstitucionalidade acima defendida ainda não foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. Já são catorze anos que a lei está em vigência e as entidades estão, de uma forma ou de outra, fazendo as adaptações para a qualificação como organização social ou simplesmente deixando de fazê-las. Nesta hipótese, os órgãos públicos perdem a oportunidade de firmar contratos de gestão com pessoas jurídicas competentes nas suas áreas de atuação.
O debate está instituído e a discussão tem que ser enfrentada. Veja-se que o ministro Eros Grau, num primeiro momento, deferiu a liminar na Medida Cautelar em ADIN n. 1.923-5, mas reconsiderou a sua decisão para negá-la definitivamente, após o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, que trouxe importantes informações acerca da existência e do eficiente trabalho desenvolvido por Organizações Sociais.
O ministro Eros Grau não fechou os olhos para a realidade que lhe foi apresentada, ainda que consignou não estar convencido da constitucionalidade da lei n. 9.637/98. Fato é que repensou a sua posição e isso é de inegável importância.
Os legisladores estaduais e municipais precisam repensar suas legislações, partindo do que dispõe a Constituição Federal sobre a proibição da interferência estatal no funcionamento das associações de direito privado, do contexto da criação dos artigos aqui tratados e não se olvidando dos imprescindíveis mecanismos que a própria lei n. 9.637/98 coloca à disposição para o controle, fiscalização e avaliação do contrato de gestão.
Falta a diversas leis municipais e estaduais aquilatar o que realmente pretendem os titulares do Poder Executivo. Deveriam os criadores dessas leis pensar na sua realidade e no que realmente necessitam e não simplesmente copiar legislação sem a necessária reflexão a respeito da sua aplicabilidade e possibilidade de cumprimento integral pelas entidades que se interessarem em ajudar os governos a se realizarem. A disparidade entre o previsto nas leis e o que é possível realizar traz insegurança jurídica para ambos os lados, Poder Público e entidades privadas sem fins lucrativos, e vulnera a solidez do relacionamento, dando margem a questionamentos jurídicos que facilmente poderiam ser evitados.
A consequência dessa sanha legislativa irrefletida é a criação de leis estaduais e municipais que não podem ser cumpridas na integralidade pelas entidades sem fins lucrativos que pretendam ser qualificadas como Organizações Sociais pelo Poder Público, pois normalmente não lhes é possível alterar seu estatuto da forma exigida por estas normas, o que confirma e reafirma o sentimento de falta de proteção com o qual passam a conviver, neste particular.
A participação de membros natos do Poder Público no Conselho de Administração das novas pessoas jurídicas privadas criadas pela União Federal (ou órgãos públicos federais) tem razão de ser: essas novas pessoas jurídicas foram criadas a partir da extinção de órgãos públicos.
A participação de membros natos do poder Público no Conselho de Administração de entidades sem fins lucrativos já constituídas não tem nenhuma razão de ser e se configura, na verdade, em odiosa interferência estatal no seu funcionamento, o que é proibido pelo artigo 5º, inciso XVIII, da Constituição Federal.
Ainda que se imponha a necessidade de criação do Conselho de Administração, que o faça sem atropelos ao Código Civil, que não o exige, e sem a intromissão na sua composição com a indicação da presença de membros do Poder Público e de entidades da sociedade civil, pois “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Da forma como se apresenta a lei federal n. 9.637/98 e as estaduais e municipais, que são sua reprodução, em geral, é inegável a indevida e impertinente a utilização da composição do Conselho de Administração federal para estas.
O Brasil está numa crescente onda de modernização e de mudanças. Para que isso aconteça de forma democrática e sem retrocesso, deve haver o respeito à Constituição Federal aos institutos legal e constitucionalmente estabelecidos, por mais óbvio que essa afirmação possa parecer.
- Bibliografia
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Publicado na Revista de Direito do Terceiro Setor – RDTS,
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[1] Lei n. 9.637/98 – Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.
[2] Lei n. 9.637/98 – Art. 2o São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social: […] c) previsão expressa de a entidade ter, como órgãos de deliberação superior e de direção, um conselho de administração e uma diretoria definidos nos termos do estatuto, asseguradas àquele composição e atribuições normativas e de controle básicas previstas nesta Lei; d) previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do Poder Público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral;
[3] Lei n. 9.637/98 – Art. 3o O conselho de administração deve estar estruturado nos termos que dispuser o respectivo estatuto, observados, para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos: I – ser composto por: a) 20 a 40% (vinte a quarenta por cento) de membros natos representantes do Poder Público, definidos pelo estatuto da entidade; […]
[4] Lammêgo Bulos, Uadi. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 182.
[5] Lei n. 6.404/76 – Art. 138. A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria. § 1º O conselho de administração é órgão de deliberação colegiada, sendo a representação da companhia privativa dos diretores. § 2º As companhias abertas e as de capital autorizado terão, obrigatoriamente, conselho de administração.
[6] Lei n. 6.404/76 – Art. 161. A companhia terá um conselho fiscal e o estatuto disporá sobre seu funcionamento, de modo permanente ou nos exercícios sociais em que for instalado a pedido de acionistas. […]
[7] Precedida das Medidas Provisórias 1.591/97 e 1.648/98.
[8] Scheller, Fernando. O Estado de São Paulo. Carreiras, B 21. 25 nov 2010.
[9] Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção de órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências.
[10] Pereira, Luiz Carlos Bresser Pereira e Spink, Peter, organizadores. Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: editora Fundação Getúlio Vargas, 2007, p. 15 a 17.
[11] De autoria do Partido dos Trabalhadores – PT e do Partido Democrático Trabalhista – PDT, alegando inconstitucionalidade da lei 9.637/98.
[12] Pereira, Luiz Carlos Bresser Pereira e Spink, Peter, organizadores. Ob. Cit., p. 21.
[13] Em 1960 foi instituída a Fundação das Pioneiras Sociais (lei n. 3.736/60), que incorporou a Sociedade Civil Associação Pioneiras Sociais, posteriormente extinta por força do Decreto n. 370/91.
[14] Pereira, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado para a Cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: editora ENAP, 1998, p. 249.
[15] Diferentemente do que fundamentou o Ministro Eros Grau na Medida Cautelar em ADIN 1923-5: “A ingerência governamental é justificada pela circunstância de tratar-se de entidades vocacionadas à absorção de atividades de interesse público até aqui exercidas pelo Estado, seja por meio de seus órgãos, seja por via de entes da Administração Pública Indireta.
Daí a exigência, para sua qualificação jurídica, entre outras, de um conselho de administração com até quarenta por cento dos membros escolhidos pelo poder público, com poderes para: (…)”
[16] Schoenmaker, Janaina. Controle das Parcerias entre o Estado e o Terceiro Setor pelos Tribunais de Contas. São Paulo: Editora Fórum, 2011, p. 80.
[17] Tratou-se de Emenda Constitucional – EC 1/69, mas que pela significativa reforma é considerada por muitos como outra Constituição.
[18] Calcini, Fábio Pallaretti, O Princípio da Razoabilidade Um limite à discricionariedade administrativa. Campinas: Editora Millennium, 2003, p. 143.
[19] Calcini, Fábio Pallaretti.Ob. Cit., p. 146.
[20] Silva, José Afonso. O princípio da razoabilidade da lei. Limites da função legislativa. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n. 220, abr./jun., 2000, p. 350.
[21] Lei desafiada por intermédio da ADIN 130.726-0/7-00, de autoria do Diretório Estadual do Partido dos Trabalhadores e julgada improcedente pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo – decisão de 28/2/2007.
[22] Pereira, Luiz Carlos Bresser. Reforma do Estado para a Cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: editora ENAP, 1998, p. 246 e 249.
[23] Fernandes, Luciana de Medeiros. Reforma do Estado e Terceiro Setor. Curitiba: editora Juruá, 2009, p. 347.
[24] Teixeira, Josenir. O Terceiro Setor em Perspectiva. Da estrutura à função social. São Paulo: editora Fórum, 2011, p. 179/181. Nesta obra há relação de 52 entes políticos.
[25] Teixeira, Josenir. Ob.cit., p. 183/184. O que demonstra que o raciocínio utilizado na lei n. 9.638/97 para inserção do Conselho de Administração e sua composição (estatais/órgãos públicos extintos para criação de entidades privadas) é limitado, pois esta não é a única forma de a entidade ser constituída e poder se qualificar como Organização Social.
[26] Teixeira, Josenir. Ob. cit. p. 109.
[27] De autoria do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
[28] Altera o inciso XXIV, art. 24, lei 8.666/93. Trata da dispensa de licitação para celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais qualificadas, no Âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.
[29] Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I – as associações; II – as sociedades; III – as fundações. IV – as organizações religiosas; V – os partidos políticos. VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada.
Boa noite!
Mesmo com todos estes fundamentos, se o estado ou município exigirem em suas Leis o conselho de administração a OS que não tiver tal conselho em seu estatuto é impedida de se qualificar?
Sim, a ONG não será qualificada como OS se não cumprir todas as exigências constantes das leis municipal ou estadual. Há necessidade de confrontação da lei com o estatuto da ONG e fazer as alterações exigidas, se for o caso. Abraço!
Bom dia, parabéns pelo artigo primoroso. É possível alguma solução no contrato de gestão para suprir a ausência do conselho de administração no estatuto?