Foi em dezembro de 2001. A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas – CMB – promoveu em Brasília o Fórum Nacional “Caminhos para uma nova Filantropia”.
O padre José Linhares Ponte, então deputado federal e presidente da CMB, fez constar na carta de boas-vindas ao evento:
“As entidades filantrópicas assumem importância ímpar pelo que representam dentro das sérias demandas sociais enfrentadas pelo país. Mesmo assim, são alvos de ações que pretendem extinguir os benefícios que lhes são garantidos pela Constituição, o que coloca em risco a própria existência delas.
Neste embate, ilógico, pérfido e prejudicial a toda a sociedade, se confundem entidades sérias e as que apenas ostentam o selo de filantropia, sem, de fato, cumprir sua missão social. O resultado é que canais de notícia e opinião pública avaliam o todo pela parte, o que só prejudica as entidades realmente filantrópicas e, por consequência, quem delas necessita.
Este fórum pretende instigar o debate, gerar ideias e propor caminhos para a filantropia brasileira. Por ser uma iniciativa pioneira, fruto do dinamismo empreendedor da CMB, trata-se de uma grande oportunidade para corrigir desvios e vislumbrar soluções. Por isso sua participação é tão importante.”
Antes, no convite de 13.11.2001, a CMB fez constar em ofício dirigido às suas filiadas:
“… Acontece que, nos últimos tempos, inúmeras foram as manobras do governo federal para acabar (ou restringir) com esse benefício constitucional.
A motivar essa intenção estão os sucessivos déficits da Previdência Social e a sua necessidade de correr atrás de toda e qualquer contribuição, mesmo aquela das entidades parceiras do governo na realização de ações sociais que a ele competem, principalmente as Santas Casas e Hospitais Filantrópicos.
… O fato é que as entidades filantrópicas atualmente beneficiadas estão permanentemente sujeitas ao estigma da perda da isenção, o que, se ocorrer, colocará muitas delas em processo de extinção.
Preparar-se para a hipótese da perda da isenção da contribuição da empresa para a seguridade social ou formular alternativas para o governo federal, visando melhorar o controle sobre a concessão desse benefício, passa a ser uma necessidade.”
Não é de hoje, portanto, que o assunto ocupa e preocupa as entidades. A discussão em torno da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Paralela à reforma da Previdência tem como tema exatamente a mesma ameaça de dezoito anos atrás.
A tal PEC Paralela tem esse nome porque do texto e do contexto da reforma da Previdência (PEC 6/2019), que é assunto denso, foi extraído o tema “o fim da desoneração de entidades filantrópicas de saúde e educação” – além de outros – para tramitar em conjunto, e em paralelo, mas em procedimento específico (PEC 133/2019).
A proposta é mudar a Constituição Federal (art. 195, § 7º) para obrigar as entidades a pagarem contribuição de 20% sobre a folha de pagamento para o INSS – Instituto Nacional do Seguro Social.
Antes do atual momento, durante o governo Temer, em 2017, o então relator da reforma da Previdência Social – o deputado federal Arthur Maia (DEM-BA) – se manifestou no sentido de que iria incluir em seu parecer o fim dessas desonerações, classificadas por ele como “aberração”, “escárnio” e “pouca vergonha”, referindo-se às entidades filantrópicas. (O Estado de S. Paulo, 25.02.2017)
O mesmo deputado afirmou, tratando novamente às entidades filantrópicas: “Não posso deixar de colocar o dedo nesta ferida. Toda a Sociedade tem que contribuir para o equilíbrio das contas” e “não sou contra a filantropia, mas a Previdência está falida e Educação não tem nada a ver com Seguridade Social.” (wwww.camara.leg.br/noticias, 16.03.2017)
Tive a oportunidade de conversar sobre o assunto com o próprio deputado Arthur Maia em 23.03.2017, em seu gabinete em Brasília, e expor a preocupação das entidades filantrópicas com a sua postura e seu entendimento a respeito delas.
Antes, em 17.02.2017, a Comissão de Defesa das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos da OAB/SP, então presidida por mim, divulgou a seguinte Nota Pública:
“É preocupante a intenção do deputado federal Arthur Maia, relator da PEC da Reforma da Previdência na Câmara, de retirar, diminuir, cortar ou rediscutir a “isenção” (imunidade, na verdade) das entidades filantrópicas, inclusive das que atuam na saúde, para estancar o alegado rombo da Previdência.
O parlamentar trata a imunidade como ´bondade´ que o governo dá às entidades e que precisaria ser ´discutida´.
O tratamento linear e igual de atores desiguais que atuam no mesmo cenário pode provocar a leitura míope da situação, com a consequente adoção de posturas incorretas e que poderão causar enormes prejuízos às Santas Casas e aos Hospitais Filantrópicos, já que este nicho é composto justamente pelas chamadas entidades filantrópicas.
O fato de a imunidade tributária das entidades se constituir em cláusula pétrea da Constituição Federal e que não poderá ser modificada nem por Emenda Constitucional parece não representar limite de atuação do parlamentar, a se levar em conta suas manifestações.
Esta Comissão acompanha atentamente os desdobramentos dos trabalhos e irá discutir a questão sob a ótica jurídica com os parlamentares visando proteger a população, cujo atendimento poderá ser diretamente afetado no caso de efetivação da intenção até aqui anunciada pelos componentes do Congresso Nacional.”
Naquela época, instituições que representam as entidades filantrópicas fizeram organizado e eficiente lobby junto aos parlamentares, mostraram a importância delas para os brasileiros e a necessidade de manutenção dos benefícios fiscais constitucionais conquistados ao longo das últimas décadas. A pressão funcionou e a pretensão de mudança foi suprimida do texto da reforma da Previdência logo no início da sua discussão na Comissão Especial.
O tempo passou, o mandato do Michel Temer acabou, o deputado pela Bahia deixou a relatoria da reforma da Previdência, Jair Bolsonaro assumiu a presidência da República em 01.01.2019, a composição do Congresso Nacional foi renovada pela eleição de 2018 e hoje há outro relator da reforma da Previdência, além de relator específico para a PEC Paralela.
O tema “o fim da desoneração de entidades filantrópicas de saúde e educação” voltou a ser discutido de forma firme e forte na PEC Paralela, juntamente com outros assuntos, e vai avançar, conforme análise de alguns parlamentares.
E toda essa discussão concretiza o que se entende por política, que é a arte de discutir os assuntos até que, democraticamente, ele seja votado, tornando-se vitoriosa a tese ou postura adotada pela maioria dos componentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Obviamente que as instituições representativas das entidades filantrópicas se mobilizaram novamente para convencer o relator da PEC Paralela, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a retirar o assunto da proposta e, quiçá, mudar o seu pensamento sobre o setor, que é o seguinte: “Não estamos falando de nenhuma entidade filantrópica que atenda uma pessoa de baixa renda. O que se propõe é a discussão sobre aquelas entidades que são chamadas de filantrópicas, mas são ONGs que não têm objetivo de lucro, mas que têm superávit, e atendem a parte mais alta da sociedade.” (www12senado.leg.br/noticias, 01.10.2019)
Sem dúvida faltam ao senador informações concretas e detalhadas sobre o assunto que lhe permitam analisar o setor de forma técnica, numérica e jurídica, base de sustentação que não encontramos em suas falas.
Voltando a 2001, eu tive a oportunidade de ser debatedor naquele evento. No convite, o então superintendente da CMB, o incansável José Luiz Spigolon, que se aposentou recentemente depois de décadas de ótimos serviços prestados às entidades filantrópicas, fez constar:
“Na próxima semana, dias 10 e 11, teremos o prazer de tê-lo conosco no Fórum Nacional “Os caminhos para uma nova filantropia”, ocasião em que esperamos poder discutir o assunto de forma propositiva e encontrar as melhores opções (caminhos) para defender esse direito que as entidades filantrópicas conquistaram após centenas de anos praticando a assistência social aos brasileiros mais carentes.”
Passados dezoito anos estamos de novo discutindo o mesmo assunto e tentando identificar os caminhos para defender as entidades filantrópicas dos ataques de sempre aos seus direitos constitucionalmente assegurados.
O roteiro para discussão em grupo daquele evento, disponibilizado pela CMB, abordava catorze questões profundas, preocupantes e abrangentes sobre o tema que, se lidas hoje sem indicação da data, reproduziriam exatamente o sentimento de insegurança e preocupação de agora.
Esta breve contextualização histórica retrata que o mesmíssimo assunto vem sendo discutido da mesmíssima forma há quase vinte anos, tempo em que as entidades filantrópicas estão com a espada de Dâmocles pendurada sobre suas cabeças, suspensa apenas por um fino fio de crina de cavalo, exatamente como conta a lenda nascida na história da Grécia há 2400 anos.
Nas minhas anotações daquele evento, que guardo até hoje, constam as discussões do dia 10.12.2001: “alteração do órgão que concede o certificado”, o que veio a acontecer em 2009 por meio da lei 12.101, e a “proporcionalidade da isenção da cota patronal”, que é o que consta do parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, que afirma: “Haverá transição, para que essa tributação se estabeleça de forma gradual e progressiva, ao longo de 5 anos.” (PEC 133/2019, p. 60).
O parecer da CCJ assim resume as sugestões constantes da minuta da PEC Paralela:
“Cobrança gradual de contribuições previdenciárias das entidades educacionais ou de saúde com capacidade financeira enquadradas como filantrópicas, sem afetar as Santas Casas e as entidades de assistência.”
A mídia informa que o parecer do senador Tasso Jereissati sobre a PEC Paralela deverá ser entregue na CCJ na próxima semana e que ele o lerá no dia 23.10.2019.
Há centenas de artigos escritos abordando as mais variadas vertentes dos eficientes serviços realizados pelas entidades filantrópicos aos cidadãos brasileiros ao longo dos últimos séculos.
Especificamente em relação às entidades filantrópicas que atuam na área da saúde, elas estão endividadas (em R$ 20 bilhões) e praticam tabela definida pelo Sistema Único de Saúde – SUS – que não cobre a integralidade dos seus custos, o que gera déficit mensal nas suas contas e que vai se acumulando e aumentando a crise ainda mais.
De nada adianta o governo emprestar dinheiro às entidades filantrópicas, mesmo a juros mais baixos que os praticados pelo mercado, pois isso não resolve o déficit acumulado por elas ao longo das décadas e constitui em paliativo ilusório.
O atual presidente da CMB, o combativo Edson Rogatti, levou pessoalmente ao conhecimento do presidente Jair Bolsonaro, por mais de uma vez em 2019, as angústias e debilidades do setor. O aceno obtido foi o empréstimo de dinheiro a juro subsidiado, o que não resolve o problema. O aumento dos preços praticados pela tabela SUS está fora de cogitação pelo governo. A mudança da forma de pagamento pelos serviços prestados pelas entidades filantrópicas ao SUS (fee for service) está sendo estudado há anos e não sai do papel. A adoção de remuneração fixa por procedimentos, por meio de pacotes predefinidos e prefixados, categorização de pacientes segundo a sua complexidade assistencial, o estabelecimento de valor fixo levando em consideração a série histórica do hospital e demais alternativas são discutidas lentamente e não se chega a consenso para implementá-las.
Este cenário de falta de recursos das entidades filantrópicas será agravado forte e determinantemente com o pagamento de impostos por elas (20% de INSS), mesmo que gradual, pois implicará na saída de dinheiro de cofre que já está vazio. Será o fim de muitas delas que hoje mal conseguem sobreviver mesmo usufruindo da imunidade tributária constitucional de que gozam.
A tentativa de cobrar impostos das entidades filantrópicas é atitude absurda por parte dos parlamentares que pretendem punir o terceiro setor, que muito contribui para o eficiente atendimento do cidadão nas suas necessidades.
O chavão desde sempre invocado pelo governo, de que existem entidades pilantrópicas no meio das entidades filantrópicas, é a confirmação da falha dele mesmo em fiscalizar adequadamente o setor de forma a identificar aquelas que se enquadrariam na primeira classificação e extirpá-las do convívio das que adequadamente se encaixam na segunda categoria.
O que não se pode permitir – e é isso que constará do voto do relator da PEC Paralela, provavelmente – é o aniquilamento de um setor inteiro por causa de poucas maçãs podres que se misturam à maioria das decentes e sadias, o que é enorme injustiça, para falar o mínimo.
A prevalecer tal intenção, a constitucionalidade do que restar decidido pela PEC Paralela certamente será discutida no Supremo Tribunal Federal, de modo a fazer com que as entidades filantrópicas consigam sobreviver e atender a população que dela depende, diante do descaso e inércia do governo em cumprir a sua obrigação constitucional.
Josenir Teixeira
Advogado
Escrito em 16.10.2019