Será que justiça para você tem o mesmo significado que para mim?
Na faculdade de Direito ensinam um exemplo clássico: um homem que possui cem imóveis alugados ajuíza ação de despejo contra uma velhinha que ocupa um deles porque ela não pagou o aluguel. Isso é justo? É legal? Por ser legal é justo? Por ser justo é legal? Ou seria injusto?
O conceito de justiça é abstrato. Há estudos desde a Grécia antiga e já escreveram sobre ela Aristóteles, Platão, Sócrates, Céfalo e Polemarco, dentre tantos outros. Na Idade Média, São Tomás de Aquino a conceituou de acordo com seu pensamento. Hans Kelsen também apresentou seu ponto de vista acerca dela.
Mesmo sem se saber conceituar exatamente o que significa justiça há linhas de pesquisa em mestrados e doutorados sobre o acesso a ela, que pode ser classificada como efetivação dos direitos humanos, como objeto de política pública e mais um sem número de ideias. Aliás, será que é possível conceituá-la “exatamente”?
Passamos a vida toda tentando entender o significado de justiça, que vai se transmutando à medida em que vivemos experiências que conflitam com as anteriores e colocam em xeque sentimentos que pensávamos que estavam consolidados, mas que se esvaem diante de reflexões que levam a novas conclusões e convicções até então inéditas. Não sei se isso é bom ou ruim, mas o ser humano é uma metamorfose ambulante, como escreveu e cantou Raul Seixas.
Por seis meses seguidos da minha vida estudei o conceito de justiça nas aulas que tive com Tércio Sampaio Ferraz Jr., meu professor no mestrado. Passamos horas a fio aprendendo com ele os vários vieses conceituais de justiça: ela como retribuição, distribuição, igualdade proporcional, amor, misericórdia, harmonia, equilíbrio, equidade, virtude e por aí vai. E vai longe.
Quando vejo alguém falar em justiça fico logo imaginando qual seria o conceito que ele adotou para sustentar o seu ponto de vista. E é inevitável lembrar do crítico social norte-americano Henry Louis Mencken, que afirmou que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Este brevíssimo contexto mostra o quão difícil e trabalhoso é a simples conceituação de justiça, na qual se aplicam, ainda, doses de subjetividade e de individualidade, que se somam a técnicas de hermenêutica, eventualmente.
Isso torna a conceituação de justiça e a sua prática adequada como uma das coisas mais difíceis de se fazer e praticar. Prática adequada da justiça? Qual seria a prática inadequada dela? Vejam que à medida em que se vai escarafunchando o assunto mais ele se torna complexo, com variáveis quase infinitas.
Hoje estive no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) acompanhando o julgamento de um caso em que funciono como advogado de um paciente de cinquenta anos que foi operado (eletivo) de hérnia de disco e saiu da mesa cirúrgica com paresia dos seus membros.
A ação foi ajuizada em 2003. Até o julgamento de hoje se passaram dezesseis anos sem que o Judiciário tivesse entregado a prestação jurisdicional pretendida, ou seja, a tal justiça buscada. Nesse meio tempo, meu cliente morreu.
Há alguns meses, o TJ/SP pautou o julgamento do caso. Foi feita sustentação oral que chamou a atenção para o absurdo que foi a realização da perícia médica na qual a sentença se firmou para julgar a ação improcedente. Houve pedido de vistas por um desembargador e suspendeu-se o julgamento. Memoriais foram entregues nos gabinetes dos três desembargadores e novamente levados a eles, agora abordando aspectos da discussão havida em plenário.
Hoje, em menos de três minutos, o desembargador relator leu a ementa do seu voto usando nela chavões próprios para casos como esse, tais como inexistência de nexo de causalidade, falta de prova idônea apta a descaracterizar o laudo pericial e vários outros.
O relator manteve a sentença de improcedência, no que foi seguido pelo desembargador revisor. O terceiro desembargador, novo na Câmara, pediu vistas, pois não teve tempo de analisar os autos para julgar o caso. Mas a maioria já se formou no sentido de negar a indenização por danos materiais e morais buscada aos familiares do meu falecido cliente.
O que mais incomoda é que os argumentos sólidos que criticavam o laudo pericial e indicavam a necessidade de refazimento da prova – alinhados na apelação e que motivou o primeiro pedido de vistas – sequer foram mencionados no julgamento, tendo preferido os desembargadores tratar o caso como sendo ele integrante dos demais que são jogados numa vala comum de situações que, num primeiro momento, podem parecer iguais, mas não são. (Parêntesis: como o algoritmo trabalharia ou resolveria esse tipo de situação?)
Espero que a íntegra da decisão do TJ/SP aborde os detalhes do assunto e indique os erros da tese defendida na apelação, que se tornou perdedora.
E aí voltamos na dificuldade – quiçá impossibilidade – de conceituar justiça. A decisão deste caso foi justa ou injusta? Para mim, foi claramente injusta. Certamente os réus e seus advogados a acharam justíssima. O meu cliente, que ficou com paresia dos seus membros em razão da cirurgia realizada por um dos réus e morreu ao longo do processo, e também os seus familiares, devem achar a decisão injusta.
E do que vai adiantar rotular a decisão justa ou injusta? Nada. Se houver argumento jurídico para isso, após o estudo da decisão, poderá haver a interposição de recurso ao Superior Tribunal de Justiça, o que nem sempre é fácil, pois as questões fáticas se esgotaram com o julgamento pela segunda instância.
E assim continuamos a conviver com o antagonismo dos significados dos substantivos justiça e injustiça, tentando nos conformar ou confortar com decisões judiciais que se enquadram numa ou noutra definição, a depender do caleidoscópio utilizado.
Josenir Teixeira
Escrito em 15.10.2019