Entrei na faculdade de Direito da UNIFMU em 1989. Tive professores ótimos, inclusive de Penal e de Processo Penal. Um deles, Newton Alves de Oliveira, que chegou a exercer o cargo de Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, era um baixinho engraçado, ensinava com muita naturalidade e propiciou à minha turma passar uma tarde inteira na Casa de Detenção, algo inesquecível, já que naquela época (1991) o presídio fervia (o “massacre do Carandiru” aconteceu em 1992). O Carandiru era dirigido por José Ismael Pedrosa, que nos acompanhou durante as cinco horas da visita. Pedrosa veio a ser assassinado em 2005, em Taubaté/SP, aos 70 anos.
Quando estudamos o Código de Processo Penal (CPP – Decreto-Lei n. 3.689/41), artigo por artigo, em 1991 – há vinte e sete anos -, aprendemos que, no caso de alguém ser intimado a comparecer num ato previamente designado e não se apresentasse, a autoridade deveria marcar outra data para a realização dele e mandar buscar a pessoa à vara, ou seja, forçosamente, mediante coerção, para que a sua ordem e o Direito fossem respeitados.
Aprendemos (até caiu na prova) naquela época que o Código de Processo Penal, no artigo 260, previa – desde 1941 – a condução coercitiva, cuja essência é: se alguém descumpre uma ordem de comando a autoridade manda buscar (conduzir) a pessoa mediante o uso da força (coerção) pela polícia.
Eis a clara redação do artigo 260, CPP, nesse sentido:
Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Não vamos discutir os aspectos doutrinários da coerção nem os posicionamentos de Kelsen e Kant a respeito dela. Aqui, basta a ideia de que a coerção é eventual e secundariamente necessária para garantir a aplicação e a eficácia das normas jurídicas. Ela (a coerção) consiste na autorização legal dada ao Estado – por meio de seus agentes – para agir com força e contra a vontade da pessoa que se recusa a cumprir a lei ou desobedece a ordem da autoridade.
Lembram quando o Lula foi conduzido coercitivamente pela Polícia Federal e levado à delegacia do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, simplesmente para depor? Isso aconteceu em 04.03.2016, quando da deflagração da 24ª fase da operação Lava Jato. A manchete do Jornal Nacional à época deixou claro o objetivo da aplicação (indevida) da condução coercitiva naquele caso concreto: “PF leva Lula para depor a investigadores da Lava Jato em SP”.
A crítica que se fez à época – e que ainda se faz – é que aquela condução coercitiva era (e foi) desnecessária e ilegal porque a pessoa (Lula) não havia sido intimada anteriormente para prestar depoimento. Ele sequer teve a chance de se recusar a comparecer da convocação da autoridade, pois esta não houve. Se tivesse sido intimado e assim se portado, a condução coercitiva era a medida certa a ser adotada pela autoridade. Mas não foi assim que os fatos se deram. Naquele caso, e em vários outros, o requisito constante do artigo 260 do CPP não foi cumprido e a condução forçada foi nitidamente ilegal.
Foi feito auê naquela oportunidade e o episódio foi aplaudido por muita gente que gosta de ver a polícia prendendo políticos e não discutem – nem querem – sobre a legalidade do ato. Querem apenas ver o fuzuê armado.
A partir do mensalão, e principalmente depois do petrolão, a condução coercitiva foi banalizada e passamos a assistir, nas quase sessenta fases da Operação Lava Jato – e tantas mais de outras Operações – centenas de ações ilegais de autoridades que transformaram o instituto da condução coercitiva em regra e não em exceção, pois ela se aplicaria somente a partir da recusa da pessoa em atender a determinação da autoridade.
E sob os aplausos da patuleia de desavisados que adoram ver viaturas em alta velocidade pelas ruas com o giroflex ligado, tudo acompanhado em tempo real pela mídia que “descobriu” que em determinado dia, às 06h00, alguém seria conduzido coercitivamente para depor, mesmo sem saber que seu depoimento era esperado, pois nunca tinha sido intimado anteriormente para a prática daquele ato. Exatamente como aconteceu com o Lula, por exemplo.
Chegou um dia (19.12.2017) em que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu dar um basta na prática de uso indiscriminado da condução coercitiva, retomar a ordem jurídica das coisas e fazer valer o que aprendi em Direito Processual Penal em 1991 – e ainda não mudou – e impedir aquela prática sem que tivesse havido intimação prévia e não comparecimento da pessoa.
Assim, desde dezembro de 2017, por meio da decisão proferida na Medida Cautelar na ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 444 (e também na de n. 395) proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), está proibida a condução coercitiva de investigados para depor perante autoridades em razão da inconstitucionalidade de tal ato porque ele viola a liberdade de locomoção e a presunção de não culpabilidade, previstos nos incisos LIV e LVII do artigo 5º da Constituição.
Decidiu o ministro Gilmar Mendes que “A condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal”. Segundo ele, as coercitivas implicam restrição à liberdade, ainda que temporária. E como essa restrição é feita por policiais e em vias públicas, “não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes”. “O investigado conduzido é claramente tratado como culpado.”
Gilmar Mendes declarou o artigo 260 do Código de Processo Penal como não recepcionado pela Constituição. E é esse dispositivo que permite à autoridade mandar conduzir acusados à sua presença, caso ele não atenda a intimação anterior nesse sentido, desde que ela exista, o que parece ser óbvio.
O texto do Código de Processo Penal é de 1941, mas a prática só se tornou frequente com a Operação Lava Jato: foram 222 (duzentos e vinte e dois) mandados judiciais de condução coercitiva apenas de 2014 até 14.11.2017. Disse o ministro Gilmar Mendes: “Apenas para ilustrar, é mais do que a soma de todas as prisões no curso da investigação – 218, sendo 101 preventivas, 111 temporárias, 6 em flagrante”. E continuou afirmando que o artigo 260 foi “substituído” pelo artigo 367 do CPP, que fala no “prosseguimento da marcha processual” à revelia do réu. Com isso, afirmou Gilmar, o artigo 260 “foi reciclado” para dar ao juiz, além do poder de cautela, aplicar a condução coercitiva. “Parte-se do princípio de que, se o juiz pode o mais – decretar a prisão preventiva –, pode o menos – ordenar a condução coercitiva”, afirmou o ministro.
Para conhecimento, eis a redação do artigo 367 do CPP:
Art. 367. O processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo.
Essa decisão do ministro Gilmar Mendes frustrou e irritou muita gente – como normalmente acontece com tudo o que ele faz – inclusive autoridades e veículos de mídia, que passaram a não mais ter à disposição aquele instituto que permitia a espetacularização de um depoimento.
Como boas brasileiras que são, as autoridades deram um jeitinho e encontraram outro instituto jurídico para fazer as vezes da condução coercitiva, proibida pelo STF: a prisão temporária, que foi introduzida no artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) em 2011 pela Lei n. 12.403, e sua aplicação somente pode acontecer nas hipóteses previstas no próprio CPP, que são as previstas no seu artigo 282, assim redigido:
Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:
I – necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais;
II – adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
A partir daí as autoridades passaram a prender as pessoas temporariamente para forçá-las a prestar depoimento para o qual nunca tinham sido intimadas antes, numa clara ginástica contorcionista à proibição do STF pelo uso indiscriminado da condução coercitiva. O uso discriminado de tal instituto continua válido. O que o ministro proibiu o seu uso indiscriminado.
Um exemplo claro do uso indiscriminado da prisão temporária para colheita de depoimento de investigado foi a detenção de empresários na Operação Skala, da polícia federal, quando dez pessoas foram presas – inclusive o advogado José Yunes, chamado pela mídia como “amigo de Michel Temer”.
Eles foram presos temporariamente numa sexta-feira à tarde e soltos no sábado de madrugada, sendo que a detenção deles se deu por apenas algumas horas e foram soltos após prestarem depoimento. A própria Procuradora-Geral da República Raquel Dodge pediu a revogação da prisão temporária antes mesmo dos seus cinco dias de duração, pois “o objetivo das prisões, de instruir as investigações em curso, já foi cumprido”. (G1, 31.03.2018, 18h39, Por Camila Bomfim, TV Globo, Brasília).
Diante de tal pedido da PGR, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, assim decidiu: “Desse modo, tendo as medidas de natureza cautelar alcançado sua finalidade, não subsiste fundamento legal para a manutenção a manutenção das medidas, impondo-se o acolhimento da manifestação da Procuradoria-Geral da República. […] Revogo as prisões temporárias decretadas nestes autos. Expeçam-se, com urgência, os respectivos alvarás para que se possa proceder à imediata soltura”. (Por G1, 31.03.2018, 23h50)
Ora, não teria sido mais fácil – e legal – ter havido a intimação daquelas pessoas para prestarem depoimento e, se elas se recusassem a comparecer, aí sim ser determinada a condução coercitiva (o que seria adequado neste caso) delas, ao invés da prisão temporária? Sim, teria sido.
Infelizmente, estamos assistindo a outro capítulo de arbitrariedades promovidas por autoridades que mandam prender pessoas temporariamente – por cinco dias – para colher delas o depoimento sobre determinada investigação – inclusive aquelas que se arrastam há anos – sem que tenha havido sequer a sua intimação prévia para prestar depoimento, numa clara inversão das cronologias determinadas pela legislação.
Antes de aplaudir apressadamente a prisão temporária de quaisquer pessoas de forma indiscriminada seria conveniente conferir e refletir se aquela determinação não estaria ferindo a constituição, a legislação e os direitos do cidadão, pois, se assim tiver acontecido, seu apoio homenageará um ato ilegal, o que não é bom nem sadio para a sociedade, nem para a consolidação do nosso sistema jurídico e nem para as pessoas. E isso poderá custar muito caro no futuro.
Josenir Teixeira
OAB/SP 125.253
Escrito em 02.11.2018