Aristóteles já achava que era perigosa a concentração do poder nas mãos de apenas um indivíduo. No século XVII, o inglês John Locke escreveu sobre o assunto. Maquiavel, em “O Príncipe”, de 1532, identificava a figura de três poderes na França. Em 1748, o francês Charles-Louis Montesquieu publicou a obra “Do Espírito das Leis” (L’Esprit des lois), na qual ele elaborou conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política. No livro, ele apresentou a teoria da separação (ou divisão, como queiram) dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário, que deveriam exercer seus papeis de forma harmônica e independente entre si. É exatamente isso o que consta da Constituição Federal brasileira. A coisa é relativamente simples: o Legislativo legisla (elabora leis), o Executivo as cumpre e o Judiciário mantém a harmonia entre aqueles Poderes.
Porém, o brasileiro, jeitoso que só ele, não poderia simplesmente praticar a teoria como deveria. Ele tem que inventar alguma coisa. Ainda mais quando se tem o poder na mão.
Depois de centenas de anos em que a separação dos Poderes foi “criada”, surge, em 03.07.2009, uma Portaria do Poder Executivo Federal que invade a competência do Legislativo e atropela a discussão democrática sobre assunto que vem sendo discutido há mais de um ano. Para que simplificar se as coisas podem ser complicadas, não é mesmo?
A Portaria alterou o fluxo de registro e renovação de certificados de filantropia das entidades, atribuição que compete ao Legislativo e que já foi feita há mais de onze anos. Para facilitar a compreensão dos comentários que se seguirão transcrevo a íntegra da regra legal:
Portaria nº 208, de 01.07.2009, publicada no DOU de 03.07.2009:
O MINISTRO DE ESTADO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87, parágrafo único, inciso I, da Constituição Federal, bem como o art. 27, inciso II, alínea “h”, da Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, com redação dada pela Lei nº 10.869, de 13 de maio de 2004, com fundamento no Decreto nº 5.550, de 22 de setembro de 2005, e
CONSIDERANDO a existência de inúmeros processos de concessão e renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS aguardando análise e julgamento no Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS;
CONSIDERANDO a rejeição da Medida Provisória nº 446, de 07 de novembro de 2008, pelo Congresso Nacional, fato que impediu a implantação da nova sistemática de certificação das entidades e restabeleceu o modelo antigo de avaliação, que tem como ponto principal a verificação da contabilidade da entidade;
CONSIDERANDO as fragilidades evidenciadas pela “Operação Fariseu” da Polícia Federal no processo de certificação das entidades beneficentes de assistência social no âmbito do CNAS;
CONSIDERANDO as inúmeras ações civis públicas e ações populares ajuizadas contra Conselheiros do CNAS e a insegurança de realizar novos julgamentos sem respaldo técnico;
CONSIDERANDO que o CNAS não possui quadro técnico adequado para analisar os balanços contábeis e demais documentos apresentados todo ano por milhares de entidades, de forma a verificar o cumprimento de todos os requisitos exigidos para a concessão do CEBAS;
CONSIDERANDO que o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome tem deficiência de pessoal desde sua criação no ano de 2004 e não dispõe de condições de dotar o CNAS de quadro técnico qualificado para a análise dos processos relativos à concessão ou renovação de CEBAS;
CONSIDERANDO que a certificação de entidades beneficentes é de interesse direto da área tributária, bem como das áreas de educação e de saúde, e que a participação da Secretaria da Receita Federal do Brasil, do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde no processo decisório, garantirá um julgamento mais técnico e com mais segurança jurídica;
CONSIDERANDO que o julgamento dos recursos interpostos contra as decisões do CNAS relativas à concessão e renovação de CEBAS é da competência do Ministro de Estado da Previdência Social, nos termos do parágrafo único do art. 18 da Lei nº 8.742, de 07.12.1993;
CONSIDERANDO a possibilidade do CNAS solicitar diligência e manter permanente integração e intercâmbio de informações com a Secretaria da Receita Federal do Brasil para a adequada instrução de processo de concessão ou manutenção do CEBAS, nos termos do art. 8º do Decreto nº 2.536, de 6 de abril de 1998;
CONSIDERANDO a necessidade do exercício do poder de supervisão ministerial para garantir o adequado funcionamento do Conselho Nacional de Assistência Social, órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; resolve:
Art. 1º Os processos de concessão e renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS deverão, antes de sua distribuição ao Conselheiro-Relator, ser submetidos à avaliação prévia da Secretaria da Receita Federal do Brasil, para análise da documentação e emissão de parecer técnico sobre o efetivo cumprimento ou não dos requisitos de natureza contábil indicados nos incisos IV, V, VI, VII e VIII do art. 3º do Decreto nº 2.536, de 6 de abril de 1998.
Art. 2º Os processos de concessão e renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS relativos a entidades da área de saúde deverão, após o seu retorno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, ser submetidos à avaliação do Ministério da Saúde, para análise da documentação e emissão de parecer técnico sobre o efetivo cumprimento dos requisitos relativos ao atendimento pelo Sistema Único de Saúde – SUS.
Art. 3º Os processos de concessão e renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS relativos a entidades da área de educação deverão, após o seu retorno da Secretaria da Receita Federal do Brasil, ser submetidos à avaliação do Ministério da Educação, para análise da documentação e emissão de parecer técnico sobre o efetivo cumprimento dos requisitos relativos à concessão de bolsas de estudos e ao Programa Universidade Para Todos – PROUNI.
Art. 4º O Conselho Nacional de Assistência Social, após a devolução dos processos de concessão e renovação de CEBAS e com os pareceres da Secretaria da Receita Federal do Brasil e do Ministério da Saúde ou da Educação, conforme o caso, promoverá seu imediato julgamento.
Art. 5º Os processos de recursos e seus apensos existentes no CNAS deverão ser encaminhados ao Ministério da Previdência Social para providencias de sua alçada, especialmente quanto aos efeitos produzidos pela Medida Provisória nº 446, de 07 de novembro de 2008.
Art. 6º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
PATRUS ANANIAS
Que eu saiba, ninguém (ainda) “repassou” a qualquer ministro de Estado, enquanto componente do Poder Executivo, as atribuições cabíveis ao Legislativo.
O ministro, ao editar a Portaria, mencionou que o fazia no uso das atribuições a ele conferidas pela Constituição Federal, no art. 87, § único, inciso I, que prevê o exercício da “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência”. Que eu saiba, também, o CNAS é vinculado ao Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome (MDS) por questão meramente operacional. O fato de o CNAS estar administrativamente “vinculado” ao MDS não dá ao titular deste a prerrogativa de se sobrepor a lei votada pelo Congresso Nacional e ao seu decreto regulamentador.
O ministro do MDS não é o “chefe” do CNAS. Este é órgão superior de deliberação colegiada responsável, dentre suas catorze competências, pela coordenação da Política Nacional de Assistência Social. Compõem o CNAS dezoito Conselheiros nomeados pelo Presidente da República. Nove deles representam o governo e os outros nove a sociedade civil. Umas das competências do CNAS é o estabelecimento de procedimentos para concessão de registro e Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS) às instituições privadas prestadoras de serviços e assessoramento de assistência social. É isso o que foi escrito pelo legislador em 1993 nos artigos 17 e 18 da Lei nº 8.742 – a LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social.
O ministro “deu de ombros”, ignorou a legislação e, arvorando-se na condição de “presidente” do CNAS, o que ele não é, “determinou” como ele (o ministro) quer que os processos de concessão e renovação do CEBAS devem ser feitos daqui por diante. O que o colegiado do CNAS, composto pelos Conselheiros reunidos em plenária, define, é o que menos interessa. Se o ministro pode determinar o que ele bem entende, para que, então, manter o CNAS aberto? Quem sabe não seja o caso de fechá-lo, já que, ao que parece, ele seria mero fantoche nas mãos do seu “chefe”?
Infelizmente, é a leitura que se tem da Portaria.
O ditado popular diz que, de boas intenções, o inferno está cheio. De nada adiantam “boas intenções” se o remédio que se utiliza para corrigir equívocos e imobilismos históricos é inconstitucional, ilegal e antidemocrático. Não se pode aceitar isso goela abaixo. As coisas e as pessoas devem ser recolocadas nos seus devidos lugares. É assim a democracia, caro leitor, por mais que uns e outros tentem escamoteá-la.
Já combinou com os russos?
A história é conhecida. Dizem que na véspera do jogo entre Brasil e União Soviética, na Copa de 1958, o técnico Vicente Feola levou Garrincha para o canto da concentração e explicou o que ele deveria fazer em campo. “Mané, você pega a bola e dribla o primeiro beque; quando chegar o segundo, você dribla também. Vai até a linha de fundo e cruza forte para trás, para o Vavá marcar”. Malicioso, Garrincha respondeu: “Tudo bem, seu Feola, mas o senhor já combinou com os russos?”
O ministro do MDS determinou que a Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), órgão integrante da estrutura de outro Ministério, o da Fazenda, dirigido pelo Guido Mantega, emita “parecer técnico” sobre o cumprimento ou não de alguns requisitos legais pelas entidades sem fins lucrativos. Não satisfeito, o ministro do MDS determinou, ainda, que outros Ministérios, o da Saúde e o da Educação, também emitam “parecer técnico” sobre o cumprimento de determinados requisitos pelas entidades interessadas na obtenção e/ou manutenção do seu CEBAS.
Noves fora nada, é mais ou menos o que prevê o Projeto de Lei (PL) nº 3.021, que tramita na Câmara dos Deputados desde março de 2008, do qual o mesmo ministro é signatário, juntamente com outros.
Será que os outros Ministérios possuem estrutura para cumprir a ordem dada pelo ministro do MDS? Sabemos que, desde o ano passado, quando se idealizou o PL acima mencionado, os Ministérios ainda não se estruturaram a contento.
Não consta das competências da SRFB (art. 15, Anexo I, Decreto nº 6.764/09) a atribuição de emitir “parecer técnico sobre o efetivo cumprimento ou não dos requisitos de natureza contábil” pelas entidades sem fins lucrativos. O administrador público só pode fazer o que a lei lhe autoriza. E agora? Como a SRFB vai cumprir a ordem do ministro do MDS? Sabe lá Deus!
As entidades estão na terra de ninguém, ou em Neverland, para usar palavra da moda. Enquanto elas não defenderem publicamente sua posição de protagonistas na assistência do cidadão de maneira eficaz, continuaremos a assistir arroubos legislativos que criarão regras ilegais e burocráticas impraticáveis, que em nada ajudarão o destinatário final que teve o azar de nascer pobre e depender da caridade alheia. As regras viciadas matarão as entidades que querem ajudar estes cidadãos. O cenário indica a tentativa de estatização do pobre, infelizmente (ou seria felizmente?).
Valha-nos Deus !
escrito em 19.07.2009