Republico, com adaptações, dois artigos que escrevi em 2004 e 2007, intitulados “Afinal, o Terceiro Setor presta?” e “Filantropia: isso presta?”, respectivamente. Infelizmente, o conteúdo deles ainda continua bastante atual. Pego o gancho e complemento as informações acerca da atual fase da filantropia, diante da recente edição de novas normas jurídicas.
Por volta de 1991, participei de reunião com o padre Cherubin, que se mostrava preocupado com ações governamentais que visavam alterar as regras da concessão do então Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos (CEFF). Naquela época, estávamos preocupados com a “nova legislação” que estava por vir, como efetivamente aconteceu em 1992. Não é de hoje, portanto, que este assunto atormenta as entidades sem fins lucrativos portadoras do atual CEBAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, emitido pelo CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social.
A concessão do CEBAS pressupunha minuciosa prestação de contas anuais, reunidas trienalmente, pelas entidades, com a análise detida de vários documentos pelos técnicos do CNAS. Isso de nada adiantava, pois, nos últimos anos, a Secretaria da Receita Federal do Brasil recorria (ao ministro da Previdência Social) linearmente de todas as concessões ou renovações do CEBAS, desqualificando a manifestação dos técnicos do CNAS e as decisões do colegiado daquele Conselho. Outros processos administrativos eram gerados e as entidades tinham que gastar tempo e dinheiro (que não têm) para se defender dos recursos e fazer seu acompanhamento processual.
É mais do que sabido que o governo depende das entidades sem fins lucrativos, pois, sozinho, não consegue cumprir suas obrigações constitucionais. As entidades privadas, compostas por homens e mulheres que abdicam de prazeres individuais e se doam em prol do exercício de atividades que visam trazer bem estar e alento ao desfavorecido, assumem a função incompleta do governo de forma corajosa e competente, mesmo não sendo sua obrigação, mas em respeito e auxílio à população e em cumprimento à sua função social. A título de exemplo, mais da metade dos usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) é atendida nas dependências de hospitais sem fins lucrativos, privados, a grande maioria portadora do CEBAS. A administração pública não possui tradição nem histórico em oferecer saúde de qualidade à população, salvo as exceções de sempre, para não fugir à regra.
“O Estado brasileiro não foi feito para administrar saúde”, já disse um secretário de saúde de importante estado brasileiro.
Entretanto, muitos governantes e autoridades pensam (alguns têm certeza) que as entidades privadas não fazem mais do que sua obrigação. (?) Ora, quem descumpre a Constituição Federal (CF) são os governantes, pois a atuação das entidades do Terceiro Setor é complementar à pública e não a principal. Basta ler o texto constitucional. Todavia, em enorme quantidade de municípios brasileiros, a única alternativa de atendimento da população é o hospital privado (a Santa Casa local, normalmente). Neste caso, as entidades não complementam as atividades do Estado. O Estado é verdadeiramente substituído, pois simplesmente é ausente, em flagrante e inadmissível descumprimento da lei maior do Brasil.
Ao invés de os governantes apoiarem as entidades privadas sem fins lucrativos que atendem a população carente no seu lugar, fomentar, incentivar e incrementar financeiramente seu trabalho, maquinam formas diabólicas de as extinguirem, com exigências descabidas, ilegais e inconstitucionais, visando fazer com que elas sucumbam, mais cedo ou mais tarde, com a pretensa engorda dos cofres públicos. E estão conseguindo. Centenas de hospitais brasileiros fecharam suas portas nos últimos 3 anos por diversos motivos, donde se destacam dois principais: a defasagem da tabela do SUS diante dos custos e a perda do CEBAS, com consequente cobrança do retroativo.
Desde 1998, quando entrou em vigor o decreto 2.536, temos ouvido falar sobre a possibilidade de sua alteração. Há alguns anos teci comentários sobre artigo escrito por Arnaldo Jabor que soava como profecia e que pode se aplicar perfeitamente à área da filantropia, tanto naquele momento quanto no que vivemos atualmente: “Alguma coisa de muito grave está se gestando, uma doença, uma terrível crise no ventre do País. Um autoritarismo virá? De quem?” A entidade que (conseguir) sobreviver verá.
Eu tenho escrito, há alguns anos, que está passando da hora de o governo (em todos os níveis) pensar profunda e responsavelmente sobre essa situação e se conscientizar sobre o tamanho do buraco em que o Brasil está se metendo ao desprestigiar e combater as entidades privadas sem fins lucrativos, principalmente as filantrópicas. As horas (e os anos) continuaram passando até que o governo resolveu agir. Infelizmente, teria sido melhor não fazê-lo.
Com pano de fundo de pregação de pretensa moralidade, o governo federal enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) nº 3.021, em março de 2008, alguns poucos dias após a deflagração da Operação Fariseu, pela Polícia Federal. Em novembro daquele ano, o governo federal, atropelando a discussão e o andamento daquele PL, editou a Medida Provisória (MP) nº 446, que dispunha sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social e que alterava as regras até então praticadas, tendo retirado a competência do CNAS para conceder o CEBAS, que foi extinto. A MP interferia no funcionamento das entidades, pois determinava que elas fizessem a cisão, caso atuassem em mais de uma área (saúde, educação e assistência social) e tivessem receita superior a determinado valor, o que fere o art. 5º., XVIII, CF.
O Senado Federal devolveu a MP à Presidência da República e a Câmara dos Deputados a rejeitou em fevereiro de 2009. Como o governo federal não editou a norma jurídica prevista na CF dentro do prazo ali regulamentado, prevalece o previsto na própria CF no sentido de que “as relações jurídicas constituídas e decorrentes dos atos praticados durante sua vigência (da MP) conservar-se-ão por ela regidas.” Atos praticados pelo CNAS durante a vigência da MP permanecem válidos, portanto. Projetos de decretos legislativos que propunham a revogação dos efeitos produzidos pela MP perderam seu objeto, pois não foram editados em tempo hábil. Decisões liminares teratológicas contra as entidades portadoras do CEBAS serão cassadas pelos tribunais, pois não possuem solidez jurídica. Dois projetos de lei ainda tramitam no Congresso Nacional a respeito do assunto, um no Senado e outro na Câmara dos Deputados.
Com a não reedição da MP, o CNAS voltou a ser legítimo para conceder e renovar o CEBAS, o que ele não quer fazer e, mesmo que quisesse, não possui estrutura operacional física e de pessoal. A divisão das entidades para os ministérios, em razão da sua área de atuação, ainda não pode ser feita, pois não há lei válida que preveja isso: os PLs ainda não foram convertidos em lei e a MP não foi reeditada. E assim caminhamos.
Também não é de hoje que nós, profissionais atuantes no Terceiro Setor, somos chamados de “pilantrópicos”, às vezes com todas as letras, outras indiretamente. Ganhamos críticas impiedosas, artigos desairosos e dossiês que exploram apenas um lado da questão, em afronta ao princípio básico do contraditório e da informação sobre sua versão dos fatos. Pessoas biltres existem no nosso meio. Mas não é privilégio do Terceiro Setor. Todos os setores da sociedade convivem com gente vil e desprezível. As pessoas abjetas são minoria, mas adquirem força e exposição tais que a esmagadora maioria de gente do bem é atropelada por alguns seres canalhas e de má qualidade. É apenas esse lado maléfico que tem espaço nos meios de comunicação. Você se lembra, caro leitor, da última vez que abriu o jornal e viu reportagem que trazia os relevantes serviços prestados à população por uma entidade sem fins lucrativos? Em contrapartida, as que descumprem a legislação e utilizam títulos e qualificações em prol de objetivos menores são manchetes quase que diariamente.
Ora, já que o Terceiro Setor é usado como covil de malfeitores, no pensamento dos cínicos, ameaça a sustentabilidade financeira do País, é pernicioso, fraudulento, sendo tão atacado e não reconhecido, a não ser pelo usuário que dele se beneficia, porque então o presidente Lula não edita uma Medida Provisória, que ele tanto gosta e utiliza, e decreta o fim das entidades do Terceiro Setor, ao invés de tentar engoli-las pelas beiradas, com projetos de lei e decretos libertinos, instruções normativas gozadoras, ordens de serviço devassas e resoluções incoerentes? Pouparia tempo de todos.
Deveria o governo extinguir as entidades do Terceiro Setor por decreto, ao invés de, agindo com macaqueação e com falta de arrojo, utilizar subterfúgios ilegais e contínuos, cessando de uma vez por todas a masturbação social de idéias prosaicas que sabe ser inviáveis, que são “pensadas” por pessoas ignóbeis distanciadas da realidade brasileira, que copiam legislação de países de primeiro mundo e se esquecem (ou fazem de propósito?) que somos do terceiro, com viés de baixa.
O Brasil precisa de gente que faz, como dizia um comercial. E que faz bem feito. Estamos fartos de sermos dirigidos por gente improvisada e pífia que é alçada à condição de mandatário por questiúnculas menos nobres e que lá estão por acomodação política.
Quando será que essa pouca vergonha cessará? Ao que parece, daqui a muito, muito tempo, se levarmos em consideração o naipe de nossos “governantes” e “legisladores”, que fazem da política um balcão de negócios despudorado e libertino. Há um ditado terrível: nada é tão ruim que não possa ficar pior. Essa parece ser a tônica governamental, a julgar pelo que vimos nos últimos anos.
Que Deus continue velando por nós! Sempre! Se Ele desistir, será nosso fim. Oxalá as pessoas de bem não esmoreçam nunca, pois são em maior número, mais inteligentes, mais eficientes e mais úteis ao seu semelhante! Infelizmente, são desorganizadas. E o governo, aproveitando disso, ao que tudo indica, conseguirá a estatização das entidades sem fins lucrativos, por mais incoerente que isso possa parecer. Aí, de nada adianta espernear, pois o bonde já terá sido perdido há tempos.
SP, 11.05.2009