O sigilo do Prontuário do Paciente é para valer?
Sempre me surpreendo com as respostas dos participantes de palestras que realizo sobre o Prontuário do Paciente quando eu pergunto se eles encaminham cópia de tal documento a pedido de delegados, promotores, juízes ou outras autoridades.
As respostas são as mais variadas. Alguns afirmam categoricamente que não encaminham quando delegados pedem a cópia. Porém, tal convicção não é a mesma quando se questiona sobre o mesmo pedido feito pelos juízes. Nesta hipótese, a maioria afirma que manda a cópia, mesmo sem saber muito bem qual é a variante legal que os autorizaria a assim agir, já que a lei que protege o sigilo do prontuário é a mesma e não muda em razão da qualidade da pessoa que tenta acessar os dados íntimos do paciente, que os confiou ao médico e ao estabelecimento de saúde, exclusivamente.
A verdade é que o sigilo dos prontuários dos pacientes é quebrado diuturnamente pelos hospitais, que mandam cópia deles para qualquer autoridade, sem muita cerimônia. Se não mandam por ocasião do primeiro pedido, basta o ofício ser reenviado pela autoridade ameaçando o diretor do hospital de processo por crime de desobediência que a cópia do prontuário fica pronta rapidinho.
Quando insisto categoricamente na necessidade de os hospitais cumprirem a obrigação administrativa, legal e constitucional de proteger o sigilo contido nos prontuários, sou olhado com desconfiança e incredulidade. É natural. Tudo o que sai da rotina, de modelo de atuação pré-fabricado e de orientação que vem de anos, causa incômodo e faz com que as pessoas fiquem reticentes em aceitar a orientação. Nesses momentos, costumo ouvir a irritante e imbecilizante máxima: “já era assim quando eu entrei aqui.” Nada fere mais a inteligência do que essa afirmação.
O conteúdo dos prontuários dos pacientes não pode ser revelado para terceiros, sejam eles quem for. A única hipótese que permite que o hospital entregue cópia do prontuário a alguém é a autorização escrita neste sentido do próprio paciente. Caso este tenha ido a óbito, a revelação do sigilo não pode ser “autorizada” pelo inventariante, pela viúva, pelos filhos, pelo promotor, pelo delegado, pelo juiz, pelo desembargador ou por quem quer que seja. Prevê o Código de Ética Médica que é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente e que tal proibição permanece mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido e que, na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. (art. 73)
Além do Código de Ética Médica, várias leis e a Constituição Federal preveem a obrigatoriedade de manutenção do sigilo das informações constantes do prontuário do paciente. E os estabelecimentos de saúde não podem se furtar ao cumprimento das normas legais em razão de ordens ilegais emanadas de autoridades desavisadas. Sim, isso acontece, caro leitor.
A Constituição Federal prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º., X).
Se concordarmos que o prontuário de um paciente registra fatos dos quais podemos extrair informações que podem expor a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, então, este documento é inviolável, o que conceitualmente quer dizer sagrado, intangível, que não pode ser devassado. E, se é assim, o encaminhamento de cópia do prontuário a alguém que não seja profissional da saúde (este está obrigado a manter sigilo das informações a que tem acesso por mandamento dos seus respectivos códigos de ética) viola o mandamento constitucional e expõe o paciente, sujeitando o hospital a ação de dano moral, inclusive.
O paciente que procura o urologista, o ginecologista, o psicólogo, o psiquiatra ou qualquer outro médico expõe intimidades e conta-lhes coisas que não exteriorizariam para ninguém, em prol da sinceridade ao profissional e para facilitar a correta e rápida identificação do mal que o acomete. E o paciente faz isso na certeza de que aquelas informações ficarão restritas ao conhecimento do médico que o atendeu, no consultório ou no leito hospitalar. Se o paciente desconfiar que as informações que revelou não estão seguras e que qualquer um pode ter acesso a elas, muito provavelmente ele omitiria alguma passagem relevante, o que poderia lhe trazer incalculáveis prejuízos. E se os pacientes assim passassem a agir é possível acontecer sérios problemas de saúde pública, em razão da impossibilidade da aferição do real estado de saúde da população. O sigilo inerente ao prontuário do paciente possui diversas vertentes, como se vê.
Autoridades em geral não gostam de ter suas ordens descumpridas. Quando alguém se insurge contra elas, expondo o argumento jurídico que o impede de cumprir a ordem, inevitavelmente o ousado receberá ofício no qual estará escrito, em negrito, que o não atendimento da determinação implicará na configuração de crime de desobediência. Não é bem assim. Tal qual qualquer pessoa, mas principalmente as autoridades de qualquer nível, são obrigadas a respeitar a legislação. O fato de ser autoridade não dá a ninguém o direito e nem o livre arbítrio de fazer ou exigir o que quiser. A limitação de sua ordem esbarra no ordenamento jurídico. E cabe aos hospitais explicar isso detalhadamente às autoridades, quando instados a cumprir ordem que não encontra amparo legal.
Os estabelecimentos de saúde possuem vasto material constitucional, legislativo, doutrinário, jurisprudencial e administrativo para se insurgir contra ordens ilegais que mandam que eles enviem cópia de prontuários de pacientes sem que estes tenham autorizado por escrito. O velho ditado que diz que ordem judicial não é para ser discutida, mas cumprida, encontra limites quando elas são ilegais. Uma ilegalidade não justifica outra. Os hospitais têm que enfrentar as ordens ilegais, pois baixar a cabeça para elas fragiliza todo o segmento e faz com que eles descumpram a Constituição e exponham os segredos que seus pacientes revelaram ao seu corpo clínico, o que não é admissível sob nenhum ponto de vista, principalmente jurídico.
Recentemente li algumas peças produzidas por autoridades que me preocuparam.
Um delegado paulista informou que estava investigando um caso de “erro médico” (qual seria o crime, já que essa expressão normalmente é utilizada para questões cíveis?) e determinou que o hospital enviasse a ele cópia integral do prontuário do paciente e que fossem identificados todos os tratamentos realizados e medicamentos aplicados, com seus horários e volumes. E mais. Além das cópias, o prontuário deveria ser todo transcrito, à parte, para que ficasse de forma legível e facilitasse a sua leitura.
Noutro ofício, um promotor de justiça relativizou o direito fundamental à intimidade dos pacientes afirmado que o sigilo do prontuário não pode servir para encobrir a prática de crimes.
Em relação a tais posicionamentos, tire você mesmo, caro leitor, as conclusões de tão absurdas manifestações de autoridades. Vejam: de autoridades. O hospital se insurgiu judicialmente contra as ordens. O Judiciário provavelmente protegerá o mandamento constitucional e legal de manutenção do sigilo das informações contidas no prontuário do paciente. Afinal, ou esse negócio vale ou não vale. E, se é a Constituição que manda, eu espero que valha, sob pena da instalação da anarquia, do que não estamos precisando.
Ora, que eu saiba, cabe ao Estado provar a autoria de crime praticado pelas pessoas. Parece-me que, ainda, o princípio constitucional que faculta a pessoa a não produzir prova contra si mesma continua válido. Portanto, a conclusão de que o não encaminhamento de cópia de prontuário a autoridades, sem autorização do paciente, seria a tentativa de acobertamento de crime e impedimento de conhecimento de eventual autoria mais parece choro de incompetente do que argumento jurídico. Cabe ao Estado buscar a comprovação da prática de crimes e a identificação do autor, mas sem descumprir o ordenamento jurídico, a quem ele deve rigorosa e irrestrita obediência, sem qualquer margem discricionária, sob pena de colocar em risco as instituições e os direitos fundamentais das pessoas, o que é absolutamente inadmissível e deve ser rechaçado pelos hospitais de forma rápida e precisa, no Judiciário, se necessário for.
Enquanto a Constituição Federal e a legislação estiverem redigidas como estão ninguém tem direito de conhecer o conteúdo do prontuário se não for autorizado por escrito pelo próprio paciente ou seu representante legal, estes em especialíssimos casos que constituem a regra e não a exceção. Os hospitais não devem fazer vistas grossas a desmandos e nem podem se curvar a ilegalidades, em nenhuma hipótese.
Ou fazemos a legislação valer ou este será mais um odioso capítulo da novela tupiniquim das leis que “pegam” e das que “não pegam”. Não caiamos na vala comum desta demonstração de falta de cidadania. O Brasil não merece essa postura de nossa parte.
Quem desejar aprofundar o assunto sugiro o livro Aspectos Jurídicos do Prontuário do Paciente, disponível em www.abeditora.com.br, deste articulista.
Publicado na revista Notícias Hospitalares edição 65, em janeiro de 2010.
Olá, Parabéns pelo artigo!
Interessou-me o fato do profissional da saúde manter o sigilo e qual o remédio cabível para assegurar que o detentor do prontuário não o compartilhe com outra pessoa ou autoridade que exiga. seria um habeas corpus preventivo? existe alguma previsão para solicitar a destruição do prontuário? grato.