Não adianta ser pobre. Tem que provar que é pobre. A morte das ONGs.
O título deste artigo, “Não adianta ser pobre. Tem que provar que é pobre. A morte das ONGs.”, me pareceu apropriado para bem resumir o que pretendo afirmar.
Vivemos época de rebeldia. Questiona-se tudo. A massificação da tecnologia contribuiu decisivamente para isso porque o acesso à informação foi facilitado e quanto mais se sabe mais o atrevimento se sobressai.
Em 2010 eu estava na Escócia e presenciei, em Edimburgo, enorme discussão e movimento popular contra a visita do Papa Bento 16, que se deu em setembro daquele ano e durou 4 dias. As pessoas sustentavam a imprestabilidade da visita, sugeriam que os católicos deveriam boicotá-la, questionavam o alto custo da viagem (R$ 26 milhões), que seria paga pelos anfitriões, e chegaram a afirmar que o Papa não era bem vindo.
Defendiam, inclusive, que a rainha Elizabeth 2ª sequer deveria recebê-lo, o que acabou acontecendo. E era a primeira visita de Estado do líder da igreja Católica ao Reino Unido. A situação foi surreal, principalmente aos olhos de quem nasceu da década de 1970, foi adolescente em 1980 e viveu a mocidade em 1990, época em que a internet engatinhava no Brasil, não havia celular, muito menos os smartphones que hoje conectam o portador ao mundo em tempo real, de onde se estiver.
As ONGs no Brasil
As entidades filantrópicas existem no Brasil pelo menos desde 1543, quando a Santa Casa de Santos foi fundada, estando ela em funcionamento até hoje. Mais recentemente, de 1960 até 2000, pelo menos, as tais entidades, nas quais se incluem as mais de 2.400 Santas Casas, gozavam de reconhecimento e respeito inequívocos por parte da população e das autoridades. Todos se sentiam honrados em contribuir com as atividades por elas desenvolvidas e ficavam gratificados com a oportunidade de auxiliar os mais necessitados.
Os tempos mudaram! Quem auxilia as Santas Casas continua agindo imbuído do desejo de ajudar o próximo, o que faz de forma voluntária em seus momentos livres. As atitudes de pessoas não sérias, também presentes no meio das entidades sem fins lucrativos, ganharam a mídia e descobrimos diversas artimanhas construídas para desviar dinheiro dos seus verdadeiros destinatários.
A divulgação dos crimes praticados ganhou a opinião pública, que ficou ressabiada e, como não foi esclarecida a contento, passou a desconfiar de todas as entidades, que foram rotuladas uniformemente como desonestas, até prova em contrário. Inverteu-se a lógica e, por culpa da inércia das próprias entidades, todas elas foram colocadas sob suspeita.
A impertinente Súmula 481, do STJ
Diversas consequências funestas para as entidades advieram dos novos tempos e da ação dos bandidos nelas incrustados. Uma das mais recentes, de agosto de 2012, é a edição da Súmula n. 481, pelo Superior Tribunal de Justiça. Súmula é a ferramenta por meio da qual os tribunais interpretam as leis e serve de norte para as instâncias inferiores a respeito de determinada matéria jurídica.
Eis a redação de tal Súmula: “Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais.”
A justiça gratuita é um instituto jurídico que assegura ao cidadão o direito de acessar a justiça sem o pagamento de custas ou despesas processuais e até mesmo honorários advocatícios, caso venha a perder o processo no qual se envolveu. A concessão de tal benefício é deferida pelo juiz da causa ao cidadão a partir da demonstração da impossibilidade de se pagar as despesas, naquele momento, sem que haja o comprometimento do seu próprio sustento.
Esse instituto é antigo. Após a proclamação da Constituição Federal de 1891 e insistentes pedidos do então Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, o assunto foi regulamentado em 1897, erigido à condição de garantia do cidadão na Constituição de 1934 e regulamentada em nível infraconstitucional em 1950, por meio da Lei n. 1.060, que está em vigor até hoje, além de outras que tratam do assunto. A Constituição de 1998 também cuidou da questão e expandiu a sua aplicação aos que comprovarem insuficiência de recursos.
O assunto avançou e os tribunais passaram a estender o benefício da justiça gratuita também às pessoas jurídicas, principalmente para as entidades sem fins lucrativos que, em razão da própria natureza jurídica, não têm a intenção de lucros.
Agora, vem a Súmula 481 para, de forma impertinente, igualar as pessoas jurídicas sem fins lucrativos com as empresas comerciais.
O tempo consumiu e desgastou a aura até então imaculada das primeiras e as jogou no caldeirão efervescente da generalidade, apesar de a Constituição Federal dar “preferência” às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos na participação do atendimento dos usuários do Sistema Único de Saúde – SUS (CF, art. 199).
Sabemos a penúria financeira na qual as Santas Casas estão mergulhadas, no passado e agora, principalmente em razão do distanciamento dos valores que o governo repassa a elas, se comparado com o custo real dos procedimentos destinados aos usuários do SUS.
A prova da pobreza
Todavia, formal e tradicionalmente, os balanços dessas entidades não registram situação econômica tão caótica, o que comprometeria ainda mais seu crédito e fôlego de negociação e impactaria de forma negativa no desenvolvimento de suas atividades.
E isso não é ilegal, pois os princípios e normas contábeis permitem entendimentos e posturas vários que recepcionam formas diferentes de interpretação e aplicação pelos contadores, sempre baseados nas orientações das autarquias controladoras da sua atividade profissional.
Balanços patrimoniais positivos não provarão a “impossibilidade de arcar com os encargos processuais.” Apesar do eventual resultado azul, previsões e provisões constantes no balanço, se realizadas, poderão inverter os números e a situação passar para o vermelho, o que se verificará apenas no exercício fiscal seguinte.
Para receberem o benefício pelo juiz, as entidades deverão provar que estão no vermelho e que são deficitárias, situação que, convenhamos, se chegar a esse ponto, formalmente, a concessão da justiça gratuita pouco adiantará.
Incoerência do STJ
A Súmula n. 481, do STJ, por simples analogia, vai de encontro a recente decisão do próprio Superior Tribunal de Justiça que ampliou os meios de aferição da condição de hipossuficiência econômica do idoso ou do portador de deficiência para fins de concessão do benefício assistencial.
Neste caso, o STJ afirmou que “a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.” Não soa incoerente?
Uma das formas de se alterar a Súmula, e talvez a mais eficiente, seria reformar a redação da Lei n. 1.060/50, o que automaticamente determinaria a revisão do assunto pelo STJ.
Há vários projetos de lei em tramitação neste sentido.
É o caso de os deputados (federais e estaduais) e senadores que compõem as Frentes Parlamentares da Saúde criadas em vários Estados e municípios atuarem firme e rapidamente para que a odiosa “equiparação” das entidades sem fins lucrativos às empresas comerciais seja revertida, de forma a revigorar, neste particular, a aplicação do princípio constitucional que prega que todos são iguais perante a lei, mas que os desiguais devem ser tratados na medida da sua desigualdade.
Noutras palavras: devem-se igualar os desiguais levando em conta suas diferenças.
Isso pode não resolver a situação, mas certamente retardará o enterro de entidades sem fins lucrativos que, infelizmente, já estão mortas.
Infelizmente, “Não adianta ser pobre. Tem que provar que é pobre.” A morte das ONGs.
Josenir Teixeira, OAB/SP 125.253
Publicado na revista Notícias Hospitalares n. 73,
ano 12, mar/abr/mai/2013, p. 32.
Publicado no livro Opiniões 3,
em maio de 2015.