No corredor em frente à sala de julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) cerca de vinte advogados se aglomeram e se organizam para realizar as sustentações orais, pois todos atuam no mesmo caso. Enquanto espero a vez do processo do meu cliente assisto as intervenções dos colegas. E me surpreendo com as histórias.
O caso é complexo, emblemático e envolve vinte e uma partes, num processo que possui cem volumes, mais de vinte mil páginas e se iniciou em 2011.
Assisti a maioria das sustentações orais feitas no julgamento do mensalão (ação Penal 470) pelo STF. O inquérito de tal processo foi instaurado em 2005 e o julgamento se iniciou em 2012, sete anos depois. Alguns réus foram absolvidos, mas tiveram que amargar as agruras e isolamentos sofridos ao longo desse tempo.
No caso do julgamento assistido também foi assim.
Na sustentação oral, o advogado informou aos desembargadores a tragédia pessoal do réu em razão do processo movido pelo Ministério Público.
Jovem e talentoso, o cliente do advogado viu sua vida se transformar num inferno, sua reputação ser questionada e as oportunidades de trabalho minguarem em razão da pecha de criminoso que lhe foi imputada maldosa e apressadamente pela sociedade e pelas pessoas que compunham o nicho de mercado em que atuava.
O réu passou por isso sem nenhuma razão jurídica, pois a situação apurada no processo aconteceu antes da sua entrada na empresa, não podendo ele, portanto, ter adotado qualquer atitude ou cometido irregularidade antes de pertencer a ela.
Mesmo diante deste fato concreto e cronológico, conhecido e sabido, ele teve que contratar advogado para se defender da injusta acusação e foi condenado pelo juiz de primeira instância, que mandou os réus devolverem quase R$ 3 bilhões aos cofres públicos.
Ele foi absolvido pelo Tribunal de Justiça oito anos depois de tramitação do processo, período no qual suportou as acusações e ilações preconceituosas que lhes foram direcionadas, tendo que suportar os incontáveis prejuízos decorrentes delas.
É assim que o sistema funciona. Felizmente ou infelizmente. E de novo pode-se discutir o conceito de justiça, sobre o qual talvez nunca se consiga chegar a alguma conclusão satisfatória por causa do subjetivismo que permeia o tema.
Ressaltou o advogado aos desembargadores que o seu cliente virou réu porque teria descumprido recomendação do Ministério Público para adotar alguma providência. Além de ser mera recomendação, e não ordem nem obrigação, a decisão de aceitá-la ou não pertencia ao colegiado do qual ele participava e não a ele, isoladamente.
E o colegiado decidiu por não aceitar a recomendação. Então, já que é assim, o Ministério Público ajuizou a ação de improbidade administrativa e o incluiu como réu dela, mesmo não tendo ele responsabilidade direta e pessoal pela pretensa ilegalidade da qual foi acusado.
Tanto é verdade que na peça de acusação o Ministério Público não fez a individualização da conduta de forma específica para que se pudesse aferir com precisão a conduta do réu e a sua classificação como ilícita, sustentou o advogado. E não fez porque não tinha como fazer.
Por curioso e preocupante, os desembargadores afirmaram que, quando se trata de cartel é mesmo difícil individualizar as condutas. Ora, então por isso ignora-se o previsto na lei e executa-se sanha condenatória sem limites? “Ninguém se escusa de cumprir a lei, …”, prevê a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – Decreto-Lei 4.657/42.
O processo seguiu adiante e a pessoa foi condenada em primeira instância por sentença que abrangeu todos os réus em bloco, mesmo diante da sua ilegitimidade passiva e, não bastasse isso, da falta de provas, por consequência.
Empresas que ficaram nos últimos lugares da licitação foram incluídas como rés da ação de improbidade administrativa unicamente porque participaram do certame, mesmo sem qualquer indício e muito menos prova nem correlação com as que combinaram resultados, conforme restou decidido pelo Tribunal de Justiça. E elas também sofreram os oito anos de duração do processo até que fossem excluídas dele pela segunda instância.
Dolo é a intenção deliberada de alguém em praticar um crime. Em contraponto a ele há a culpa, que ocorre quando a pessoa dá causa a um resultado por imprudência, negligência ou imprudência.
As decisões judiciais e a doutrina jurídica são unânimes em afirmar que há a obrigatoriedade inafastável de existência, constatação e prova de dolo para que o ato praticado pela pessoa seja enquadrado na lei de improbidade administrativa (8.429/92). No caso concreto não houve – e não havia – como se caracterizar o dolo na atitude do réu, o que demorou oito anos para ser reconhecido pela segunda instância. Assusta como o Judiciário faz vistas grossas para essa exigência e condena réus sem que necessariamente as regras doutrinária e jurisprudencial sejam respeitadas.
Hélio Schwartsman escreveu recentemente: “Juízes juram de pés juntos que, na hora de julgar, levam em conta apenas provas e teses jurídicas, mas qualquer um que já tenha aberto um livro de psicologia sabe que não é bem assim. Magistrados, a exemplo de outros humanos, são influenciados por uma infinidade de fatores, que incluem humores políticos, importância dos réus, preferências ideológicas e até parâmetros fisiológicos.” (Folha de S.Paulo, 16.10.2019, A 2)
Eu sempre digo e sustento: não aplauda arbitrariedade; você poderá ser vítima dela.
O juiz de primeira instância deferiu a realização de perícia e os réus pagaram os honorários do perito. Lá pelas tantas o juiz julgou o processo sem a produção da prova e mesmo assim as alegações de cerceamento de defesa, de anulação da sentença, inépcia da inicial e outras irregularidades não foram acatadas pelos desembargadores.
E o argumento utilizado para embasar tal decisão é mais temeroso ainda, pois os julgadores disseram que a prova que não foi produzida não iria alterar o julgado. Ora, como se chegar a essa conclusão sem justamente produzir a prova? Por adivinhação?
Os desembargadores decidiram que no caso concreto houve o direcionamento da licitação, o crime foi praticado, o conluio (cartel) existiu, o foi confirmado pelo acordo de leniência feito por um dos réus e pelas demais provas e as pessoas precisam ser punidas, pois há que se prestigiar quem fez a denúncia e sair do círculo vicioso da corrupção, estando o Brasil em momento de guinada das regras do jogo. E tudo isso se iniciou a partir de matéria de jornalista publicada pela Folha de S.Paulo em outubro de 2010, função social que foi enaltecida.
Instaurado o processo, que é o roteiro obrigatório e sequencial de atos que levam até a decisão final (para isso existem o Código de Processo Penal, decreto-lei 3.689/41, e o Código de Processo Civil, lei 13.105/15), as suas etapas devem ser cumpridas e seguidas até que ele se encerre, o que se dará dentro do tempo burocrático de cada órgão e que normalmente demora anos, período em que o réu simplesmente espera e sofre as consequências indesejadas dela, pessoais, profissionais e sociais.
“Nas democracias, o devido processo legal pode combater os corruptos e preservar o Estado de Direito. Já o populismo judicial corrompe também o combate à corrupção.” (Folha de S.Paulo, 18.10.2019, A 12)
O caso em questão envolve serviço e dinheiro públicos, situação que hoje em dia coloca o primeiro em elevado grau de risco, pois os contratos entre os particulares e o poder público são vistos como potenciais de lesividade ao erário e não como possível melhoria dos serviços para a população.
E por conta desse sentimento que domina a sociedade a prevalência das posturas dos órgãos de fiscalização é de eterna desconfiança, o que os induz a questionar tudo de todos e a transformar, igualar e enquadrar eventuais descuidos burocráticos em acusações graves e genéricas de desvio de dinheiro público, jogando na mesma vala comum ações e situações diferentes, mas que experimentam do mesmo fel de forma indiscriminada.
A lepra (mal de Lázaro ou hanseníase) é enfermidade que era associada ao pecado, à impureza e à desonra. Por causa dessa associação adveio o preconceito em relação à pessoa que era portadora dela, pois a transmissão da doença pressupunha contato corporal que se dava também sexualmente e, portanto, pecaminoso.
Para quem gosta, lê-se na Bíblia que “leproso é aquele homem, imundo está; o sacerdote o declarará totalmente por imundo, na sua cabeça tem a praga. Também as vestes do leproso, em quem está a praga, serão rasgadas, e a sua cabeça será descoberta, e cobrirá o lábio superior, e clamará: Imundo, imundo. Todos os dias em que a praga houver nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial.” (Levítico, 13: 44-46)
Visto dessa forma histórica – único viés aqui invocado – o leproso era alguém indesejado no convívio da sociedade.
Guardadas as devidas proporções, obviamente, quem é réu em processo judicial hoje é visto pela sociedade como um leproso, de quem não se deve aproximar ou mesmo andar junto, pois o preconceito enraizado na população, alimentado pela mídia, faz com que a opinião pública condene os atores do fato de bate-pronto, sequer sem desenvolvimento do necessário, obrigatório e constitucional processo, cujo final – e somente no final, com o trânsito em julgado da decisão – condenará ou absolverá o acusado.
A Constituição Federal prevê um princípio fundamental do ser humano que, na opinião de muita gente, não passa de um “detalhe”, no sentido pejorativo da palavra.
Está previsto na lei maior do país que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). É o princípio da inocência.
É muito cruel para com qualquer pessoa o julgamento instantâneo que a classifica imediatamente como culpada a partir da primeira notícia veiculada em relação à situação na qual ela estaria envolvida. Até porque, ao final do processo, após alguns anos, a pessoa poderá ser absolvida.
Ora, o fato de ser acusado da prática de alguma ilegalidade civil, administrativa ou criminal não torna a pessoa culpada, por mais prosaica que essa afirmação possa parecer, pois será a decisão a ser proferida pela autoridade, ao final do processo, que selará a sorte dela.
E essa decisão não é de primeira e nem de segunda instâncias, podendo ela passar pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal (STF), pois o texto constitucional exige que a inocência somente seja perdida após o trânsito em julgado da decisão, ou seja, que dela não caiba mais nenhum recurso.
Não fosse assim não precisaria haver acusação, mas condenação direta, sem respeito à obrigatoriedade de existência de processo, no qual o réu deverá exercer o seu direito fundamental de ampla defesa e do contraditório, princípios consagrados pelo artigo 5º, LV, da Constituição Federal.
A aplicação prática dessa teoria pode ser vista justamente no caso concreto presenciado: após oitos anos de tramitação do processo alguns réus da ação de improbidade administrativa foram absolvidos.
Outra recente constatação de tal teoria, na prática, foi o pedido de absolvição feito pelo próprio Ministério Público Federal dos “ex-presidentes Dilma e Lula, além dos ex-ministros Antônio Palocci Filho, Guido Mantega e João Vaccari Neto, em ação referente ao chamado ‘quadrilhão do PT´. O texto, assinado pela procuradora da República Márcia Brandão Zollinger, diz que ´não há o pretendido domínio por parte dos denunciados, especialmente os ex-presidentes da República, a respeito dos atos criminosos, […]´”. (Folha de S.Paulo, 18.10.2019, A 14)
O jornalista Reinaldo Azevedo foi preciso. Após afirmar que “prefiro correr o risco de absolver um culpado a condenar um inocente”, ele explicou: “o inocente acusado só tem a seu favor a ausência de provas. Se esta passou a ser irrelevante, culpados e inocentes se igualam sob a sanha de justiceiros.” (Folha de S.Paulo, 18.10.2019, A 12)
A importância desse assunto pode ser facilmente constatada a partir da informação de que “mais de 1/3 das decisões de segunda instância são alteradas no STJ” e de que “levantamento que mapeou ações criminais também aponta revisão de 7% dos casos no Supremo”. (Folha de S.Paulo, 17.10.2019, A 8).
Isso quer dizer que pessoas consideradas ilegalmente culpadas por duas instâncias judiciárias tiveram o seu destino radicalmente mudado ao serem absolvidas pelos tribunais superiores, em decisões que restabeleceram a justeza das suas situações.
Seria democrático, adequado, humano ou justo deixar inocentes pagarem por ilegalidades das quais foram acusados, mas que não cometeram? Não, não seria justo nem aceitável numa sociedade que se rege e respeita a prevalência dos direitos humanos (CF, art. 4º, II), individuais e coletivos, que devem ser promovidos e defendidos em todos os graus, judicial e extrajudicial […].” (CF, art. 134)
A sociedade é ansiosa demais para crucificar quem aparece nas mídias como destinatário de ações das autoridades que questionam atos e posturas de pessoas, formam sua convicção a partir da análise unilateral das situações e as acusam da prática de ilegalidades, fruto da primeira conclusão diante das notícias que chegaram ao seu conhecimento.
É justamente o desenrolar processo que irá confirmar ou não se realmente a pessoa acusada é culpada. Quando não há confirmação dessa culpa ou a autoridade julgadora entende de forma diferente da acusadora, a partir de valoração antagônica, o réu é absolvido da imputação que lhe foi feita, que se mostrou indevida.
Aconteceu exatamente isso na Justiça Federal de Brasília. O juiz da 12ª Vara Federal Criminal absolveu o ex-presidente Michel Temer da acusação de obstrução de justiça que lhe foi feita pela Procuradoria-Geral da República, então representada por Rodrigo Janot. (g1.globo.com/politica, 16.10.2019)
O desgaste, o preconceito e o bullying público sofridos pelo ex-presidente desde o momento em que foi indevidamente acusado e durante a tramitação do processo, a sua demonização e as angústias e constrangimentos pelos quais passou durante todo esse tempo são absurdamente cruéis e, dependendo da pessoa que está envolvida nessa situação, ela se torna tão insuportável que ela fica instigada, nalguns casos, a deixar essa vida.
A situação é dramática. Pessoas consideradas boas, honestas, cumpridoras das suas obrigações por décadas a fio, num passe de mágica e rapidez estrondosa, a partir de fatos que precisam ser aprofundados, viram vítimas de julgamentos rasos, antecipados e desprovidos de contextos.
As pessoas, desumanas, ávidas por sangue, ignoram passados sólidos e preferem se fiar a fatos líquidos que carecem de comprovação efetiva, no tempo adequado de tramitação dos processos.
É assim que o sistema funciona.
A fugaz educação da sociedade não permite a mudança deste cenário a curto e médio prazos, infelizmente. É pena.
Quem viver, verá!
Josenir Teixeira
Escrito em 20.10.2019