Treze anos parece ser um tempo razoável de casuística para aferição de resultados da implantação de qualquer coisa. Nada que seja totalmente ruim sobrevive tanto tempo. Olhando para trás e para os números, é inegável constatar que houve mais benefícios do que malefícios na aproximação feita pelo Estado de São Paulo com as entidades filantrópicas que possuem expertise na gestão de estabelecimentos de saúde, especialmente hospitais, que redundou na firmação de parceria entre eles para fomento e execução de atividades da área da saúde, exteriorizada que foi pela assinatura de Contratos de Gestão, instrumentos jurídicos advindos e regulamentados pela lei.
O Estado de São Paulo editou a Lei Complementar n. 846 em 04.06.1998, que dispôs justamente sobre as regras para atribuição do título de Organização Social para entidades sem fins lucrativos que comprovassem o seu cumprimento. Tal lei foi editada pelo então governador Mário Covas em menos de um mês após a edição da Lei federal n. 9.637/98 (15.05.1998), que dispunha no mesmo sentido.
Desde então, o que se viu foi o aumento e diversificação da parceria entre o Primeiro e o Terceiro setores e a comprovada melhoria no atendimento das pessoas, a partir cumprimento das metas qualitativas e quantitativas constantes dos Contratos de Gestão, pelas entidades qualificadas como Organização Social por aquele, passo inicial prévio, obrigatório e autorizativo para que possam ser signatárias de tais instrumentos.
É óbvio que mudanças e ajustes tiveram que ser realizados no modelo ao longo de mais de uma década, inclusive a substituição de uma ou outra entidade que se mostrou aquém do cumprimento do desafio que lhe foi proposto. Mas a essência do sistema permanece o mesmo: a parceria e a conjugação de esforços em prol do melhor atendimento da população, no mínimo com dignidade, como manda a Constituição Federal (art. 1º., III).
A tônica da aproximação e do estabelecimento de parceria entre o Poder Público e as entidades sem fins lucrativos é o efetivo e adequado cumprimento dos mandamentos previstos nos artigos 196 da Constituição Federal, que determina que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, e 199, que autoriza a participação da iniciativa privada na assistência à saúde e dispõe sobre a preferência pelas entidades filantrópicas (§ 1º.), que obrigatoriamente sempre são sem fins lucrativos.
A participação e contribuição das entidades privadas na área da saúde é absolutamente importante porque o Sistema Único de Saúde (SUS), criado há vinte e um anos pela Lei n. 8.080/90 e regulamentado pelo Decreto 7.508/11, em que pese ser unanimemente reconhecido como bom modelo, ainda padece de crônico problema de financiamento, custeio, acesso, gestão e efetiva implantação na geografia continental brasileira. Além disso, é notório e sabido que os hospitais da administração direta sofrem com a aplicação insana, mas obrigatória, de regras de Direito que foram criadas primitivamente para obras de engenharia e que não levam em consideração a dinâmica operacional própria demandada por pacientes internados que requerem assistência e cuidados contínuos e ininterruptos.
Matiz justificadora da presença das entidades sem fins lucrativos e filantrópicas na contribuição com o Estado na gestão de hospitais públicos, e por isso mesmo objeto de críticas exasperadas, é a possibilidade de elas proverem e abastecerem tais estabelecimentos de forma imediata, desburocratizada, com mais qualidade e mais acessível financeiramente, a partir da utilização e aplicação de benefícios e incentivos fiscais que lhe foram assegurados pelo regular e periódico cumprimento de requisitos constitucionais e infraconstitucionais específicos. Além disso, tais entidades, por serem privadas, constituídas à luz do estipulado pelo Código Civil, não são destinatárias das regras licitatórias que incidem sobre a Administração Pública Direta, Indireta, Autarquias e demais instituições do mesmo naipe ou a ele assemelhados.
Neste cenário e dentre as ferramentas e possibilidades que estão à disposição do Poder Público e das quais pode se valer para cumprir o dispositivo constitucional de oferecer saúde à população, a qualificação de entidades sem fins lucrativos e filantrópicas como Organizações Sociais pareceu ser a melhor opção, o que é corroborado pela casuística disponível. Tanto é verdade que, depois do Estado de São Paulo, outros treze Estados, o Distrito Federal e quase uma centena de municípios editaram leis específicas para tratar da certificação aqui mencionada, sendo que grande parte deles formalizaram e implementaram a parceria e dela colhem resultados bastante interessantes no que diz respeito à melhoria e ampliação do atendimento dos usuários do SUS.
Esta exteriorização de ações firma e confirma a correção da adoção da ideologia formadora do Estado Democrático brasileiro no seu viés de regulação e fiscalização, ao invés de o Estado executor direto de atividades para as quais não está preparado tecnicamente, apesar de ser para isso legitimado. Isso também foi possível porque a Constituição Federal permitiu a participação de terceiros em serviços essenciais, mas não exclusivos, em prol dos cidadãos, o que era contraposto pelo Estado Liberal nos séculos XIX e XX, por exemplo.
Ainda naquele ano de 1998, houve o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (n. 1.923) no Supremo Tribunal Federal para discussão do conteúdo da Lei federal n. 9.637/98. O STF indeferiu a liminar em 2007 e, em 2011, iniciou-se o julgamento da ADIN, sendo proferidos dois votos até agora, um do relator, ministro Carlos Ayres Brito, e outro do ministro Luiz Fux. Em que pese ambos julgarem a ação parcialmente procedente, na prática, e a partir da inteligência acerca da amplitude de seus votos, o modelo de aproximação do Poder Público com as entidades sem fins lucrativos, para atuação em áreas (sociais) consideradas essenciais, mas não privativas nem exclusivas do Estado, está validado. O voto do relator, mais agressivo quanto à inconstitucionalidade parcial da lei federal, reconhece que o “mecanismo de parceria” ou a “protagonização conjunta” é um modo de colaboração adequado de o Poder Público se relacionar com o setor privado.
Noutra vertente, a opção e decisão pela adoção de modelos de intervenção direta ou indireta (gerenciamento, por exemplo) que serão implementados na sociedade são exclusivas daqueles agentes eleitos que receberam dos eleitores a autorização para assim atuarem, segundo afirmou o ministro Luiz Fux. Portanto, ao que tudo indica, a experiência exitosa do Estado de São Paulo mostra que o gestor público andou bem ao apostar nos bons resultados que poderiam advir da conjugação de esforços entre o Estado e entidades filantrópicas tradicionais e experimentadas na gestão de estabelecimentos hospitalares.
Seminários realizados pelo Brasil afora tratando do tema aqui abordado, em linhas gerais, confirmam o acerto na escolha e utilização do sistema de parceria entre o Poder Público e as entidades sem fins lucrativos, a partir da qualificação destas como Organizações Sociais, que se mostra viável, eficaz e eficiente para imprimir mudanças palpáveis na melhoria do atendimento das pessoas na área da saúde.
Não foi a outra conclusão a que se chegou no III Seminário Terceiro Setor e Parcerias na Área da Saúde, promovido pelo IBDP – Instituto Brasileiro de Direito Público, em São Paulo, nos dias 16 e 17 de junho de 2011. As manifestações e os cases apresentados durante o evento mostraram resultados concretos e estatísticas favoráveis a indicar cenário e contexto bastante propícios para que a parceria entre o Primeiro e o Terceiro setores continue a ser implantada pelo país, a partir do seu constante e necessário aprimoramento e desenho específico para as situações locais que serão objeto da experimentação do modelo.
É preferível tentar opções, mesmo que inovadoras, do que insistir naquelas que comprovadamente nunca atingiram os seus objetivos. Para o usuário do SUS não interessa o nome ou a forma de realização do modelo de assistência. Interessa-lhe ter o seu problema de saúde resolvido. Isso a Constituição Federal lhe assegura. Cabe aos governos cumprir a ordem emanada da Constituição. A sistemática das Organizações Sociais tem se mostrado alternativa governamental eficiente para o atendimento do cidadão, conforme insistem em provar os números e resultados dela advinda.
Escrito em 04.07.2011
Publicado na revista Consulex nº 348, ano XV, de 15 de julho/2011, p. 36/37.