A história de uma fada que, influenciada por Satanás, se transforma numa bruxa e prejudica a população de uma cidade.
No rincão do Brasil existe uma cidade onde vive população mal atendida em relação à saúde, pois o seu hospital público sempre teve dificuldades materiais e com recursos humanos por falta de dinheiro para custear as suas várias despesas mensais.
Não bastasse isso, a gestão do hospital padecia de falta de profissionalismo e os colaboradores estavam desmotivados por causa desse cenário nada animador.
Foi então que o estado, sabedor que existia alternativa interessante que estava sendo aplicada com êxito noutros locais, publicou edital convidando entidades sem fins lucrativos para se qualificarem como Organizações Sociais e firmarem Contratos de Gestão para que elas aplicassem a sua expertise profissional naquela unidade de saúde visando a melhoria dos serviços e consequentemente do atendimento das pessoas.
O estado pensou (ou deve ter pensado): eu firmo parceria com alguém que conhece mais detalhadamente da gestão para administrar o hospital com profissionalismo e repasso a tal entidade os recursos financeiros necessários para que os serviços que ele (o estado) definiu, constante dos anexos técnicos dos Contratos de Gestão, sejam realizados com a qualidade desejada.
E assim aconteceu naquela longínqua comunidade: o estado realizou a licitação da qual participaram apenas entidades sem fins lucrativos qualificadas como Organizações Sociais por ele mesmo – a partir do cumprimento de requisitos estabelecidos pela legislação específica – e, dentre elas, o ente político escolheu aquela que apresentou a melhor proposta técnica para a situação definida por ele, de acordo com a resolutividade do hospital.
O universo conspirou favoravelmente e a fada madrinha da história aplicou seus poderes mágicos e o Contrato de Gestão foi assinado, devendo ambas as partes cumprir as suas respectivas obrigações que foram escritas nele.
A entidade qualificada como Organização Social pelo estado e vencedora do certame começou a realizar a sua gestão profissional e todo mês apresentava à comissão de fiscalização indicada pelo ente político a prestação de contas das atividades que desenvolveu, acompanhada de relatório gerencial-administrativo, extrato bancário, notas fiscais e todos os demais documentos que comprovavam o gasto do dinheiro público.
Acontece que toda história tem um vilão – um bruxo que não gosta que as coisas boas aconteçam – que procura de todas as formas matar a mocinha e enfraquecer a fada.
Eis que o estado deixou transparecer a sua face do mal e, usando seus exclusivos poderes de regulação do repasse da verba pública à Organização Social, movido por vozes que passou a ouvir oriundas da profundeza do inferno, começou a atrasar o repasse dos valores mensais combinados à gestora do hospital, mesmo estando tal obrigação escrita no Contrato de Gestão.
Como o valor mensal pactuado como preço no Contrato de Gestão representava exatamente o necessário para o custeio do hospital, o atraso no repasse logicamente impediu a Organização Social de manter os serviços na sua inteireza, pois ela começou a não mais pagar em dia as obrigações que foram contraídas com fornecedores de materiais e medicamentos, honorários médicos, folha de pagamento, encargos dela, água, luz, limpeza, vigilância, prestadores de serviços em geral, assessorias especializadas e mais infindável gama de itens operacionais que compõem uma estrutura hospitalar, o que gerou protestos das dívidas pelos credores e ações judiciais de cobrança contra a entidade, que foi quem juridicamente mantinha a relação acessória com eles, já que o contrato principal era o de Gestão firmado com o poder público.
A situação de não cumprimento das obrigações financeiras por parte da Organização Social em razão da falta de repasse integral e tempestivo dos recursos públicos a ela pelo estado fez com que ela perdesse credibilidade no mercado, pois os prestadores de serviços passaram a desconfiar de sua solidez financeira e a cobrar as vendas à vista, encarecendo o custo mensal.
A entidade também passou a não ter condições de pagar os encargos nos prazos legais, a provocar multas em razão do atraso no pagamento da folha dos empregados e mais uma série de consequências desastrosas geradas unicamente pelo estado, que se tornou devedor contumaz e inviabilizou a manutenção da parceria, o que afetou a qualidade do atendimento da população, aquela mesma que sempre foi desamparada nas suas necessidades.
A Organização Social aguentou o quanto pôde, até que se insurgiu formalmente contra os atrasos e informou ao estado que não mais conseguiria gerir o hospital sem o dinheiro necessário para pagar as despesas e que a consequência disso seria o não cumprimento das metas, pois a sua execução foi planejada dentro de normalidade de cumprimento do cronograma financeiro.
De nada adiantou a fada boazinha ser a porta-voz da Organização Social e levar ao conhecimento do estado aquela situação, pois o ente político, possuído pelo demônio, já não mais entendia daquela forma e queria que a entidade “se virasse” com os serviços mesmo sem o respectivo repasse mensal do dinheiro necessário para que eles fossem realizados, exatamente como foi combinado por escrito no Contrato de Gestão.
A Organização Social, diante da face do mal que não conhecia e que foi escondida pelo estado por ocasião da assinatura do Contrato de Gestão, notificou o ente político para rescindir aquele instrumento jurídico, pois não era mais possível realizar a gestão do hospital e muito menos atingir as metas porque o repasse do dinheiro não era mais feito e que esse círculo de fatos viciava a relação jurídica e não era mais saudável para ela.
Diante disso, o estado mostrou ainda mais o lado negro da força e, estimulado pelo Satanás, decretou a intervenção do hospital sob o argumento mentiroso – mas que lhe era conveniente – de que a Organização Social estava descumprindo o estabelecido no Contrato de Gestão.
É claro que a Organização Social estava descumprindo o Contrato de Gestão, pois não era possível realizar os serviços previstos nele sem o dinheiro necessário para pagar as despesas.
Acontece que o estado, covarde, explorou apenas o lado da história que lhe favoreceria e, usando os poderes a ele inerentes, oriundos do Castelo de Grayskull, ou do fato do príncipe, escreveu o que quis no decreto editado por ele mesmo, tirou a Organização Social à força da gestão do hospital e nomeou um de seus asseclas bajuladores (ou pau-mandado, como queiram) para realizar aquele trabalho a partir de então.
O todo poderoso estado brasileiro arrancou da Organização Social, também à força, o controle das suas próprias contas bancárias e proibiu qualquer pessoa ligada à ela de entrar nas dependências do hospital.
E assim o estado usou como quis a pessoa jurídica da Organização Social, o CNPJ daquela filial que ela abriu, os empregados – todos registrados em nome dela – e mais o que bem entendeu porque, afinal de contas, o estado brasileiro é quem manda e pode estuprar quem quiser porque a impunidade lhe protegerá.
A Organização Social não ficou parada e foi orientada pela fada boazinha a procurar abrigo no Poder Judiciário, pois este, norteado pela deusa grega Themis, definidora da Justiça e que empunha a balança para equilibrar as forças, não iria permitir que o cão-tinhoso triunfasse sobre relação de parceria que deixou de ser cumprida pelo estado e finalmente colocaria ordem nas coisas.
A Organização Social foi traída pela sua ingenuidade, pois os ventos fortes que sopram pelas bandas daquela longínqua cidade tocaram para longe o bom senso e o sistema falido e ultrapassado prevaleceu, fazendo com que os deuses do Olimpo se cegassem para a situação causada pelo coisa-ruim.
A entidade sucumbiu e foi condenada a pagar diretamente obrigações que foram contraídas para serem quitadas com o dinheiro público que seria repassado pelo estado, o que não aconteceu.
A Organização Social não possui fins lucrativos, não possui patrimônio, não possui aplicações e obviamente não tem condições de pagar os vários milhões de reais nos quais foi condenada pelo Poder Judiciário. Os seus dirigentes estatutários nunca foram remunerados e perderão a totalidade do seu patrimônio, que será insuficiente para pagar sequer um por cento dos milhões da condenação.
A ação de cobrança movida pela Organização Social contra o estado, na qual relatou tudo isso e pediu acolhida do seu pleito ao Poder Judiciário, mofa numa estante qualquer do gabinete de um deus qualquer, numa vara da fazenda pública qualquer, num fórum qualquer, mostrando a insensatez do sistema e insensibilidade cega e cruel de julgadores que se dobram às ordens do beiçudo.
Não há final feliz para essa história. E nunca haverá para nenhuma Organização Social que se oferece para ajudar o poder público mas que não cobra dele, de forma imediata e dura, o cumprimento das suas obrigações contratuais e legais.
Fim da história. Infeliz.
Josenir Teixeira
Escrito em 11.05.2019