A hipocrisia reina no Brasil em praticamente todas as áreas. Quem acompanha o caso do governo do Distrito Federal e a desfaçatez dos seus atores sabe do que falo. Quem ouve explicações que tentam desqualificar vídeos nos quais a própria pessoa diz o contrário do que verbalizou há de concordar comigo.
Temos normas jurídicas que preveem coisas quase impossíveis de se cumprir. E quem não as cumpre, obviamente, tem que ser punido. Não é lógico? Afinal, o cumprimento da lei é cogente. Algumas normas são insanas. Vejam a Portaria n. 1.510/09, do Ministério do Trabalho e Emprego. Ela manda as empresas que utilizam cartão de ponto eletrônico imprimir um papelzinho toda vez que o empregado registrar seus horários: quando chega ao trabalho, sai e retorna do almoço e vai embora. São, pelo menos, quatro papeizinhos diários comprovando o horário que o empregado anotou, que devem ser entregues a ele. Imaginem cem empregados de um hospital fazendo isso todo dia. Quantos papeizinhos serão impressos? Quantos metros de papel serão gastos? Multiplique isso pelos milhões de pessoas que trabalham com carteira de trabalho assinada no Brasil. A que número se chega? Isso não é insano? E tudo o que se fala sobre sustentabilidade, vai para as cucuias? E a assinatura do empregado no espelho do ponto eletrônico não vale nada? Não, não vale. Poderíamos citar dezenas de exemplos, mas o foco aqui é outro, apesar de continuarmos no campo da hipocrisia.
Não há nenhuma lei no Brasil que regulamente a terceirização. Tramitam na Câmara dos Deputados alguns projetos de lei que pretendem regrar as relações de trabalho em atos de terceirização. O proposto pelo Vicentinho (PT/SP), n. 1.621/07, está longe de ser aprovado, tendo em vista os questionamentos dos empresários, pois seu texto é retrógrado, burocrático e, na prática, impede a terceirização, ao prever, por exemplo, o envolvimento do sindicato da categoria profissional no processo.
O único texto que contempla o assunto é a súmula n. 331, de 1993, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que não é lei. A súmula apenas aponta o pensamento dos ministros do TST sobre o assunto, o que não vincula os juízes das primeira e segunda instâncias, em tese, pois estes têm a prerrogativa do livre convencimento.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi implantada no Brasil em 1943. Foi Getúlio Vargas (o ditador “pai dos pobres”, lembram?) quem a assinou, a partir da cópia da Carta Del Lavoro italiana, promulgada em 1927 pelo regime fascista e entulhado de Mussolini. E isso não é mito, como defendem alguns.
Como era a sociedade brasileira de 1943? Como se davam as relações de trabalho entre empregados e patrões naquela época? Qual era a dinâmica entre médicos e hospitais? Como era o fluxo de informação antes da Segunda Guerra mundial? Qual era a leitura que se fazia de Karl Marx e do seu Manifesto do Partido Comunista, escrito juntamente com Friedrich Engels, em 1848? E hoje, quais são as repostas às mesmas perguntas, setenta anos depois da edição da CLT? Quero crer que, no mínimo, elas não são iguais.
A CLT foi criada, também, para proteger o hipossuficiente (hipo: posição inferior; suficiente: capaz, apto), aquele que é o mais fraco, mais frágil, numa relação jurídica, o que justificaria a sua proteção e defesa por alguém superior: o Estado. A hipossuficiência é a vulnerabilidade levada a extremos e pode se dar em vários níveis: intelectual, social, cultural, financeiro, técnico, jurídico, econômico etc. O Direito do Trabalho tem por escopo, a partir da conclusão que uma parte litigante é hipossuficiente (o proletário, em última análise, destituído dos meios de produção e que possui apenas a venda de sua força de trabalho para sobreviver) em relação à outra (o empregador), equilibrar jurídica e equitativamente os desiguais. Parte-se da premissa que o empregador (o mais forte) subjuga o empregado (o mais fraco). O peão era (e é) mais fraco que o latifundiário. O operário era (e é) mais fraco que o industrial. O bancário era (e é) mais fraco que o banqueiro, e por aí vai.
Mas, e o médico? Será este profissional liberal, de nível superior, hipossuficiente? Será o médico, com todo o respeito que goza na sociedade (é verdade que a sua “moral” já foi maior no passado), subjugado pelos hospitais a ponto de depender do socorro salvador do Estado para lhe proteger? Suas atitudes, atos, assinaturas, decisões e vontades não valem nada, a ponto deles precisarem ser tutelados pelo Judiciário, tal qual o hipossuficiente genuíno?
Os médicos escolhem os hospitais nos quais querem trabalhar e assim agem por vontade própria, porque as condições comerciais combinadas lhes são convenientes. Os hospitais precisam dos médicos, por dedução lógica e óbvia. Na maioria das vezes, os médicos compõem equipes com colegas que combinam entre si alternar o atendimento, de modo que o serviço seja prestado ininterruptamente, conforme as necessidades dos pacientes. O revezamento se dá de acordo com os seus compromissos de consultório, particulares e atendimento em outros estabelecimentos de saúde. Ao hospital cabe receber a escala de trabalho no final do mês, feita pelos próprios médicos, para acompanhar a prestação dos serviços e pagar o valor pactuado. Sem medo de errar, é exatamente assim que acontece em praticamente todos os hospitais brasileiros.
Quando um médico desenvolve sua atividade por anos a fio num hospital, por meio de contrato de prestação de serviços firmado com a sua pessoa jurídica, mas ajuíza reclamação trabalhista afirmando que foi “obrigado” e “forçado” a assim agir durante todo aquele tempo em razão da supremacia do estabelecimento hospitalar naquela relação jurídica, ele não está se colocando (indevidamente?) no patamar daqueles que sobrevivem com o mínimo de condições financeiras e dos miseráveis, em busca da proteção do Estado/Juiz? Com todo o respeito, o médico não se iguala à figura do hipossuficiente tutelado pelo Direito do Trabalho. O médico conhece seus direitos, possui autonomia na prestação de serviços e não é obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje. É o que está escrito no artigo 7º do Código de Ética Médica, que os médicos conhecem muito bem, obviamente.
A verdade é que nem sempre as pessoas aceitam o rompimento de relações jurídicas de bom grado. Quando interesses pessoais ou econômicos são contrariados, as pessoas “se vingam” buscando direitos até então por elas “ignorados”, pois, enquanto o relacionamento vigorava, não convinha exigir o cumprimento do rigor, do peso e do custo da lei. Quando a ruptura acontece, relacionamentos firmados entre as pessoas jurídicas dos médicos e os hospitais são alcunhados por aqueles de “pressão”, “fraude”, “burla”, “exploração do poder econômico” e mais uma série de expressões encontradas em reclamações trabalhistas promovidas por bóias-frias contra usineiros, por exemplo, nivelando o hipossuficiente que bate na porta do Judiciário Trabalhista à procura de tutela e proteção. A leitura das ações judiciais promovidas pelos médicos nos leva a pensar que o hospital teria agido daquela forma sozinho, como se o contrato de prestação de serviços firmado não fosse bilateral e não houvesse concordância expressa de ambas as partes, por meio das suas assinaturas. O médico, que se travestia de verdadeiro empresário (e se orgulhava disso) na relação jurídica mantida com o hospital, agora, instantaneamente, se coloca na condição de humilde empregado, proletário, subjugado, e procura o reconhecimento do Judiciário de que foi obrigado a assim agir, ao longo de anos, em razão da influência coativa capitalista exercida pelo hospital escorchador. O médico hipossuficiente, então, pleiteia o reconhecimento de que recebia o simplório salário mensal que pode chegar a R$ 20 mil, em alguns lugares, que deverá ser usado como base de cálculo das verbas rescisórias da relação jurídica, férias, décimo terceiro, fundo de garantia, horas extras e demais itens do rosário trabalhista tupiniquim. O pedido dos médicos nessas ações, normalmente, ultrapassa os R$ 500 mil, podendo chegar facilmente a R$ 1 milhão, dependendo da capacidade da calculadora do seu defensor.
Não vejo, nas mesmas ações judiciais nas quais o médico pleiteia o pagamento dos seus direitos trabalhistas, ele se penitenciar por ter gozado de benefícios fiscais obtidos durante a relação jurídica mantida com o hospital e querer devolver ou pagar ao Fisco, com juros, correção e multa, os valores recebidos indevidamente por meio da pessoa jurídica, quando deveria ter sido tributado como pessoa física.
Há um princípio jurídico que prega que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, ou seja, a ninguém é permitido lucrar com a sua conduta ilícita.
O médico que alega em juízo que foi dominado pela força (esse é o significado de subjugado) de um hospital pode (veja a palavra utilizada: pode) não estar sendo honesto com a realidade (lembram do princípio da primazia da realidade?), com o hospital, consigo mesmo, nem com a sociedade. Havendo condenação (sim, elas existem), o hospital pode fechar suas portas, pois os valores envolvidos neste tipo de processo costumam ser altíssimos, dado ao “salário” que constava nas notas fiscais emitidas pelas pessoas jurídicas dos médicos.
E o Judiciário Trabalhista, como vê isso? Há juízes e juízes, como tudo na vida. Há aqueles atentos à movimentação social e contextualizam e confrontam a legislação com os fatos. Ou vice-versa. Dá no mesmo. O Direito tem a sua base na sociedade e sem entender o movimento da sociedade e sem entender o Direito nós não conseguimos entender a relação que eles estabelecem entre si.
Participei de audiências com juízes que analisaram os fatos à luz do bom senso e da ordem jurídica e souberam tratar as partes como cada uma merecia, fazendo a justiça almejada por todos. Também já tive o dissabor de participar de audiências com juízes que usavam tapa-olho e aplicavam a boa e velha CLT sem contextualizá-la, sem perceber os detalhes fáticos que lhe foram trazidos, sem valorar o depoimento de testemunhas, enfim, olvidando-se de buscar a tão alegada e propalada primazia da realidade. Estes não estão errados, pois escondem eventual despreparo social e judicante na própria legislação, de 1943, como se estivessem julgando casos ocorridos antes da Segunda Guerra mundial. É pena. Mas essa conclusão e nada é quase a mesma coisa, pois consequências funestas para os hospitais eclodem de tais julgamentos, que inviabilizam a manutenção das atividades destes, fazendo com que a população local seja a maior prejudicada, no final das contas. Quem está certo: o médico? O juiz? O hospital? Todos? Responda você, caro leitor. Cabe à sociedade, já que o Direito é um fato social, se debruçar sobre o problema e resolvê-lo, aplicando as regras e normas que a maioria decidir. É assim que se faz a democracia.
É claro que há casos e casos. A inteligência de quem me lê saberá identificar e situar perfeitamente o assunto sobre o qual escrevo e constatará que não prego nem incentivo, em absoluto, o descumprimento da lei. Seria um contrassenso, pois, afinal, sou advogado e minha função social não permitiria tal postura. Apenas não compactuo com a dissimulação, peste epidêmica que contagia nossa sociedade, apesar de toda a legislação que prega a boa-fé nas relações jurídicas (Código Civil, artigo 422).
Enquanto os hospitais ignorarem tais fatos e se preocuparem apenas quando receberem pelo correio a intimação da reclamação trabalhista proposta pelo médico, infelizmente, nada mudará, e a insegurança jurídica continuará rondando sua atuação neste particular.
É preciso que essa situação incômoda e perigosa seja discutida por hospitais, médicos e operadores do Direito, separada e conjuntamente. O que não se pode é fazer cara de paisagem para o assunto e dar de ombros, como se ele não atingisse de forma direta os hospitais, clínicas, laboratórios e empresas de medicina de grupo. Quando a parte mais sensível dessas pessoas jurídicas for afetada, ou seja, o bolso, quem sabe elas acordarão para enfrentar o assunto. Todavia, elas perceberão que a sua inércia e omissão poderão custar um preço alto demais.
Josenir Teixeira
Advogado, Mestre em Direito, Especialista na Saúde e no Terceiro Setor
fev/2010
Meus parabéns pelo excelente artigo! Este, escrito de forma clara, precisa e, principalmente, honesta.