Há coisas que são sabidas, apesar de não serem ditas. Há coisas que, ditas, causam perplexidade, apesar de sabidas.
Lembrei-me disso ao ler a entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cezar Peluzo na revista Veja de 07 de julho de 2010. Ele apontou problemas que justificam o afogamento dos tribunais, inclusive os superiores, provocado em grande parte pelos governos e pelas grandes empresas, que insistem em entulhar o Judiciário com questões já decididas. Procuram eles adiar o máximo que puderem a execução das decisões. Por isso recorrem de todas elas, mesmo que claramente sem razão, para protelar. Talvez a ampla reforma processual que tramita no Congresso Nacional, que possui quase 1.000 artigos, dê jeito nisso. Talvez.
Mas o que mais chamou a atenção na entrevista foi a resposta do magistrado quando questionado se os ministros leem todos os processos que julgam. Disse Cezar Peluzo: “É humanamente inconcebível um ministro trabalhar em todos os processos que recebe. Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano. O que acontece? Você faz um modelo de decisão para determinado tema. Depois, a sua equipe de analistas reúne os casos análogos e aplica o seu entendimento. Acaba-se transferindo parte da responsabilidade do julgamento para os analistas. É claro que o ideal seria que o ministro examinasse detidamente todos os casos.”
Perguntado se isso prejudica a qualidade da decisão, respondeu o ministro: “Não quero afirmar que isso sempre prejudica a qualidade da decisão, mas há o risco de isso ocorrer – e só o risco já é suficiente para tentarmos resolver o problema. Essa transferência de responsabilidade para as assessorias pode causar abusos. Não digo em relação ao STF, que é muito cioso de seus assessores. Refiro-me aos tribunais de segunda instância, em que o volume de trabalho também é enorme.”
Você, caro leitor, ou o seu hospital, que possui uma ação que aguarda julgamento no STF há anos, décadas, talvez, pode tê-la julgada não por um ministro que, em tese, possui “notável saber jurídico” (CF, art. 101), ou a “sabedoria que a vida nos dá”, mas por um assessor ou analista dele. Eles podem até ser “bons”, mas continuam assessores e analistas. É claro que não está sendo feita nenhuma crítica a qualquer assessor de quem quer que seja. Nem analistas. Eu não tenho nada contra os assessores. Nem contra os analistas. E nem nada a favor de nenhum dos dois. Muito pelo contrário.
Infelizmente, os operadores do Direito sabem de há muito que as coisas funcionam assim. O que causou admiração foi o fato desta “circunstância” ser externada da forma como o foi. Quando li a entrevista imaginei que o assunto seria debatido amplamente pela sociedade por dias a fio, tal qual acontece com os “grandes” crimes. Pensei que a Ordem dos Advogados do Brasil, as associações dos magistrados, os jornalistas, as partes dos processos, enfim, que o mundo discutiria algo tão agudo com a profundidade merecida e que os veículos de comunicação seriam inundados com opiniões de pessoas incomodadas (revoltadas?) com a fala do ministro. Nada. Absolutamente nada aconteceu. A edição seguinte da revista registrou quatro cartas abordando outros aspectos da entrevista. E assim caminha a nossa sociedade. Paciência.
De que adianta pesquisar decisões judiciais (jurisprudência), a doutrina e a legislação para fundamentar e elaborar com responsabilidade peças processuais densas tecnicamente se o destinatário de tais argumentos não os lê, delegando tal atribuição, constitucional, a seus assessores? Os assessores não são escolhidos pelo presidente da República. Não são os assessores que devem ser aprovados pela maioria absoluta do Senado Federal. Os currículos dos assessores não estão no site do STF para conhecermos quem irá “reunir os casos análogos” aos nossos. Com isso, e por mera e sutil conjectura, será que o Código de Defesa do Consumidor não está sendo infringido no artigo 6º., que prevê como seu direito básico (III) a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem? A parte de um processo, autor ou réu, não é o consumidor do serviço prestado pelo STF, em última análise? Talvez.
E se o assessor “reunir” um caso análogo que não seja tão análogo assim ao nosso e a decisão for num sentido diferente do que deveria ter sido? Isso se enquadraria no “abuso” referido pelo ministro? Se sim, a quem mais recorrer, se o STF é a última instância do Judiciário brasileiro? Ao bispo? Não deixa de ser uma opção.
Em outubro de 2006 escrevi artigo intitulado “A banana boat e o Judiciário”, no qual eu me referi à insegurança e instabilidade jurídicas. Após mencionar alguns aspectos do assunto, exemplifiquei a questão citando decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na qual o ministro Humberto Gomes de Barros desabafou, em 2003, ao tratar de caso envolvendo a COFINS: “Nos últimos tempos, entretanto, temos demonstrado profunda e constante insegurança. Vejam a situação. (…) Dissemos sempre que sociedade de prestação de serviço não paga a contribuição. Essas sociedades, confiando na Súmula nº 276 do Superior Tribunal de Justiça, programaram-se para não pagar esse tributo. Crentes na súmula, elas fizeram gastos maiores e planejaram suas vidas de determinada forma. Fizeram seu projeto de viabilidade econômica com base nessa decisão. De repente, vem o STJ e diz o contrário: esqueçam o que eu disse; agora vão pagar com multa, correção monetária etc., porque nós, o Superior Tribunal de Justiça, tomamos a lição de um mestre e esse mestre nos disse que estávamos errados. Por isso, voltamos atrás. Nós somos os condutores, e eu – Ministro de um Tribunal cujas decisões os próprios Ministros não respeitam – sinto-me triste. Como contribuinte, que também sou, mergulho em insegurança, como um passageiro daquele vôo trágico em que o piloto que se perdeu no meio da noite em cima da selva amazônica: ele virava para a esquerda, dobrava para a direita e os passageiros sem nada saber, até que eles, de repente, descobriram que estavam perdidos: o avião com o Superior Tribunal de Justiça está extremamente perdido. Agora estamos a rever uma Súmula que fixamos há menos de um trimestre. Agora dizemos que está errada, porque alguém nos deu uma lição dizendo que essa Súmula não devia ter sido feita assim. Nas praias de Turismo, pelo mundo afora, existe um brinquedo em que uma enorme bóia, cheia de pessoas, é arrastada por uma lancha. A função do piloto dessa lancha é fazer derrubar as pessoas montadas no dorso da bóia. Para tanto, a lancha desloca-se em linha reta e, de repente, descreve curvas de quase noventa graus. O jogo só termina quando todos os passageiros da bóia estão dentro do mar. Pois bem, o STJ parece ter assumido o papel do piloto dessa lancha. Nosso papel tem sido derrubar os jurisdicionados.” (AgRgREsp nº 382.736-SC)
Que Deus nos proteja !
agosto de 2010