O governo brasileiro não tem histórico do trato das questões sociais de forma pensada, planejada e específica, tanto o atual quanto os anteriores. Também não é praxe dele discutir prévia e diretamente com os setores específicos da sociedade sobre os assuntos que lhe são afetos. Ao contrário. Em muitos casos, assistimos tentativas de imposições de determinadas posturas governamentais que se efetivariam, não fosse a (ainda precária) mobilização da sociedade contra arroubos surreais. Em relação ao tão famoso CEBAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, emitido pelo CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social, não é diferente.
Há no Brasil algo em torno de 340 mil entidades sem fins lucrativos, conforme levantamento do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A mídia sempre faz questão de destacar as (poucas) maçãs podres que existem no Terceiro Setor (sim, elas existem), ignorando por completo a imensa maioria de frutos frondosos que trazem alento e atendimento ao desgraçado que teve a infelicidade de nascer pobre neste País.
Cito, para ilustrar, o primeiro parágrafo de reportagem da revista Veja de 23 de abril deste ano, páginas 54 e 55, denominada “A fraude documentada”, que assim se referiu ao Terceiro Setor de forma ampla e indevida, o que demonstra clara cultura de almanaque: “As Organizações Não-Governamentais (ONGs) ficaram conhecidas nos últimos tempos como um instrumento eficaz de roubar dinheiro público. Sem observar critérios elementares de boa gestão, o governo federal despejou, nos últimos cinco anos, 12 bilhões de reais nos cofres dessas entidades. Em vez de grandes resultados sociais, as ONGs vêm encabeçando uma infinidade de escândalos. Descobriu-se que muitas delas são entidades de mentirinha, cujos dirigentes, quase sempre subordinados a partidos políticos, simulavam serviços, montavam prestações de contas e dividiam os lucros entre si. Uma CPI foi instalada no Congresso para tentar desvendar os caminhos do dinheiro desviado, mas pouco conseguiu até agora.”
Fico curioso, caro leitor, em saber sua opinião sobre esta pequena transcrição. Você, dirigente de uma entidade sem fins lucrativos, de uma Santa Casa, por exemplo, que recebe do governo federal (via SUS – Sistema Único de Saúde) apenas 55% do custo real do atendimento dos pacientes (incluindo procedimentos), que precisa destinar 60% da sua capacidade instalada para o SUS e que tem que inventar fontes de receita para cobrir o déficit deixado pelo atendimento que caberia ao Poder Público fazer, como se sente ao ler tamanha e leviana generalização?
O leitor já deve ter ouvido falar da CPI das ONGs, pois a mídia faz questão de estampá-la (quando convém) à opinião pública com informações parciais. Você sabia quantas entidades sem fins lucrativos estão sendo investigadas pela atual (já houve outras) CPI das ONGs? Do universo das 340 mil existentes no Brasil, apenas 28 delas são alvo de tal CPI, que se intitula indevidamente como sendo “das ONGs”. Ora, será que o percentual de 0,00008% é suficiente para generalizar a CPI como se fosse de todo um segmento (“das ONGs”)? Quero crer que não. Mas, quem não é da área e lê, ouve e vê tais informações unilaterais acaba por concluir que as ONGs são um câncer para a sociedade e que devem ser extirpadas linearmente, devendo o Estado, este que você conhece, caro leitor, cuidar única, exclusiva e diretamente da sua saúde, educação, trabalho, previdência e todos os demais direitos sociais previstos na Constituição Federal. Você confia?
Além dessa “versão” parcial sobre as entidades sem fins lucrativos ser passada descaradamente para a sociedade sem nenhuma contextualização, temos assistido a “demonização” do CNAS, órgão federal ligado ao MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – que recebeu da LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993, catorze competências, sendo uma delas a concessão do CEBAS. Apesar das outras 13 competências, tão importantes quanto “aprovar a Política Nacional de Assistência Social”, sobressai-se a concessão do CEBAS.
Das 340 mil entidades sem fins lucrativos brasileiras, pouco mais de 7 mil possuem o CEBAS. Em março deste ano, obviamente que com a cobertura quase ao vivo e em cores da mídia, a Polícia Federal prendeu 6 pessoas, dentre elas 3 conselheiros do CNAS e alguns advogados, acusados de integrar suposta “quadrilha” que “fraudaria” a concessão do CEBAS. Todas foram soltas poucas horas após a prisão e os processos tramitam, cabendo a quem acusa provar suas alegações.
A impressão passada para a sociedade brasileira foi a de que o CNAS não teria condições, inclusive morais, de cumprir a sua função legal de conceder e renovar o CEBAS de forma imparcial, sendo necessário tirar dele tal competência e passá-la para o Poder Executivo, este sim, ícone de competência, seriedade, honestidade e efetividade, que agiria, então, de forma moralizadora e colocaria ordem na “bagunça” apregoada. O veículo para fazer isso? O Projeto de Lei (PL) 3.021, enviado pelo próprio Executivo ao Congresso Nacional coincidentemente em março, apenas 4 dias após o espetáculo da prisão de “integrantes do CNAS”.
O CNAS é composto por 18 Conselheiros: 9 representam o governo e 9 a sociedade civil. Em abril deste ano, haveria eleição dos representantes da sociedade civil, o que ocorre regularmente a cada 2 anos. Foi adiada, diante dos “recentes acontecimentos”, vindo a se efetivar somente em junho, quando os novos Conselheiros eleitos foram empossados pelo ministro Patrus Ananias, no dia 24, em Brasília.
Mas, afinal, o que prevê o PL?
O primeiro aspecto que salta aos olhos é a sua inadequação técnico-jurídica em tratar da “isenção” de contribuições sociais, quando, na verdade, trata-se de “imunidade”, o que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, neste particular. O que pende de decisão do STF é a natureza jurídica qualificadora da lei autorizada a regulamentar a imunidade tributária constitucional: ordinária ou complementar? Nós nos aliamos a praticamente todos os doutrinadores tributaristas brasileiros, capitaneados pelo Dr. Ives Gandra da Silva Martins, de que ela só pode ser complementar, por previsão da própria Constituição Federal.
Outros dois aspectos do pretendido pelo PL já são suficientes para concluir o autoritarismo ilegal e inconstitucional que o Poder Executivo pretende exercer sobre as entidades sem fins lucrativos:
1. O CNAS, órgão paritário entre governo e sociedade, deixa de ser o concedente do CEBAS, passando tal competência para os ministros da Saúde, Educação e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, dividindo-se as entidades por área de atuação. Numa primeira análise, a divisão parece lógica e aceitável: cada ministério cuida das entidades que desenvolvem suas atividades na sua respectiva área de atuação.
Porém, devemos aprofundar a discussão. Ora, todas as entidades portadoras do CEBAS são privadas. Cabe ao Poder Executivo instituir tributos e arrecadar impostos da sociedade. O PL coloca unicamente na mão do Executivo, na figura do ministro da respectiva pasta, a autoridade para estabelecer “regulamentos” e “atos complementares” da forma pela qual as entidades passarão a ser certificadas, sendo que, no caso não tão raro de indeferimento da concessão do certificado ou da sua renovação, o recurso será dirigido ao próprio ministro.
Onde fica a igualdade de representatividade da sociedade civil nessa discussão, já que as entidades são privadas? A Constituição Federal prevê que as ações governamentais nas áreas da assistência social, saúde e educação serão realizadas com a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis. Qual segurança jurídica terá as entidades de que seus certificados serão analisados de forma imparcial pelo Executivo, responsável que é justamente pela instituição e arrecadação de tributos? Em outras palavras, não tão adequadas, mas esclarecedoras: não é a raposa cuidando do galinheiro?
É clara a intenção de esvaziamento e enfraquecimento do CNAS, enquanto órgão paritário, composto também pela sociedade civil para discussão das coisas inerentes a ela. Este é o principal propósito e linha-mestra do PL: tirar a competência de concessão e renovação do CEBAS do CNAS e passá-la para os ministros de Estado, que decidirão tudo monocraticamente sem a necessidade de nenhuma discussão com representantes da sociedade civil e, no caso de recurso, também a ele (ao ministro) caberá o seu julgamento. Se isso é democracia eu não sei mais o que quer dizer ditadura.
2. Outro absurdo inconstitucional é a previsão de cisão das entidades que atuam em mais de uma área (saúde, educação e assistência social), devendo ser criadas pessoas jurídicas distintas para o desenvolvimento de cada atividade. É irritante e absolutamente preocupante a interferência estatal no funcionamento das associações civil privadas, o que é proibido expressamente pelo artigo 5º., XVIII, da Constituição Federal, o que coloca em risco, inclusive, o Estado Democrático de Direito.
A sociedade brasileira não pode tolerar esta tentativa governamental que se opõe à razão e ao bom senso e que é destituída de sentido e de racionalidade.
As entidades sem fins lucrativos, mesmo as que não possuem o CEBAS, não podem assistir pacificamente a passagem do bonde governamental como se nele não tivesse assento. Elas precisam se reunir, unir, discutir e, se assim entenderem, ter a coragem de enfrentar a fúria arrecadatória que permeia a idéia escancarada pelo PL 3.021/08. Se assim não fizerem, correm o sério risco de, no futuro, estar na linha de tiro do governo. Hoje é o CEBAS, amanhã …
Josenir Teixeira
Advogado, Mestrando em Direito Privado pela FADISP (Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo), Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela UNIFMU/SP, em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), em Direito do Trabalho pelo Centro de Extensão Universitária (CEU/SP) e em Direito do Terceiro Setor pela FGV/SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo). Presidente do IBATS – Instituto Brasileiro de Advogados do Terceiro Setor. Membro do Conselho Consultivo da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP. Professor do curso de Direito do Terceiro Setor da Escola Superior de Advocacia (ESA) da OAB/SP. Professor do curso de Pós-Graduação em Administração Hospitalar e Negócios da Saúde da UNISA (Universidade de Santo Amaro) em São Paulo. Articulista da revista www.noticiashospitalares.com.br. Autor dos livros “Prontuário do Paciente: Aspectos Jurídicos” e “Assuntos Hospitalares na Visão Jurídica”. OAB/SP 125.253
agosto/2008
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PS: tchau, Bindi. Seu rosto alegre e reluzente será lembrado de forma querida por quem conviveu com você. Terei saudade. Adeus, magnânimo!