A Santa Casa sofreu intervenção do município.
O prefeito nomeou quatro pessoas como interventores para administrarem o hospital ao longo do tempo em que durou a intromissão, com mandato individual de um ano.
Os administradores, cada um no seu tempo, praticaram os atos inerentes à administração, por óbvio, como admissão e demissão de empregados, contratação de pessoas jurídicas para prestarem diversos serviços, inclusive médicos, rescisão de contratos, movimentação bancária etc.
Passados alguns anos os administradores viraram réus de Ações Civil Públicas por prática de ato de Improbidade Administrativa – sim, “ações”, pois foi mais de uma – porque o Ministério Público entendeu que, diante da intervenção realizada, a Santa Casa “mudou” sua natureza jurídica de entidade privada para ente público, haja vista que passou a ser administrada pelo município, pessoa jurídica de direito público.
Cabe aqui a crítica veemente à decisão absolutamente equivocada do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa” (RE 852475), o que traz inacreditável insegurança jurídica aos gestores e agentes públicos dado ao emaranhado absurdo de leis e normas jurídicas vigentes, o que impediria, a meu ver, a candidatura de qualquer pessoa a exercer alguma atividade que possa vir a ser considerada ilegal pelo Ministério Público, a qualquer tempo, o que nem precisa de tanto esforço.
Voltando ao caso concreto, o Ministério Público classificou como ilegais todas as contratações realizadas pelos administradores hospitalares, pois nenhuma delas foi precedida de licitação, com base na lei 8.666/93, que rege as práticas da administração pública, como é o município, e nem justificou sua atitude profissional e operacional como sendo o caso de dispensa ou inexigibilidade do certame.
De quebra, e por consequência, o Ministério Público também acusou os administradores hospitalares de infringir os princípios constitucionais da impessoalidade, isonomia, moralidade, lisura, legalidade e transparência, num combo comum do qual se valem os acusadores.
Além disso, os administradores também são acusados de enriquecimento ilícito, da mesma forma que as empresas que foram contratadas sem a pretensa licitação, pois elas foram as beneficiárias do dinheiro pago em razão dos serviços que prestaram.
O Ministério Público quer que os administradores hospitalares e as empresas contratadas por eles sem a realização de licitação sejam condenados pela prática de ato de improbidade administrativa (lei 8.429/92) e a:
- perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao seu patrimônio, no valor de quase R$ 2 milhões, com ressarcimento dessa quantia aos cofres públicos;
- perda da função pública;
- suspensão dos direitos políticos por 8 a 10 anos;
- pagamento de multa civil de até 3 vezes o valor do acréscimo patrimonial, ou seja, R$ 6 milhões;
- proibição de contratar com o poder público por 10 anos;
- pagar as custas e despesas do processo;
O valor da causa de uma das Ações Civis Públicas é de quase R$ 20 milhões (soma do enriquecimento ilícito e do máximo das multas possivelmente aplicáveis) e o da outra é de R$ 3,5 milhões.
A situação beira ao surrealismo e produzimos manifestação preliminar para mostrar o raciocínio equivocado e enviesado do Ministério Público diante dos fatos e, claro, em razão da não “transformação” da Santa Casa em ente político nem público por causa da intervenção, mantendo ela sua natureza jurídica de entidade privada, e requeremos a rejeição da Ação Civil Pública ante a sua incoerência lógica e jurídica e ausência de justa causa para sua existência.
O que o juiz fez? Desconsiderou os argumentos, recebeu a ação e mandou citar os réus, que apresentaram defesa e vão amargar o desenrolar do processo por uns sete anos de suas vidas, além de gastar dinheiro com o pagamento dos advogados para os defenderem.
E mais: correm o risco de ser condenados em primeira instância, tendo que recorrer à segunda instância para tentar reverter a sentença e, quiçá, terão que ir aos tribunais superiores em Brasília para provar a sua inocência e a prática de atos profissionais comuns e normais, mas que foram considerados ilegais pelo Ministério Público.
E lá se vão anos e anos de preocupação, suspense, gastos, patrimônios bloqueados e mancha em seus currículos que são difíceis de apagar, mesmo com sua inocência decretada eventualmente pelo judiciário.
A sociedade brasileira, cansada, machucada, ignorada, enganada e saturada, e também sedenta por sangue e justiça a qualquer preço ou custo, adotou caminho perigoso de apoiar cegamente quaisquer atos e ações que aparentemente visam combater um inimigo, mesmo que para isso leis e procedimentos processuais burocráticos e necessários sejam ignorados em prol de um “objetivo maior”, que é a punição quase que prematura das pessoas.
As regras estabelecidas pela Constituição Federal e pelas leis não podem ser desprezadas ao bel prazer de quem quer que seja, nem pelo cidadão comum, nem pelo homem médio, nem pelas autoridades, nem pelos órgãos de acusação, nem pelos órgãos de controle, nem pelos juízes e nem pelo judiciário, sob nenhuma condição, contexto ou argumento, nem para se atingir um “propósito maior” e mesmo que as pretensas intenções sejam ou pareçam ser boas, sob pena da instalação do caos social e da quase anarquia jurídica.
A regra basilar da manutenção da democracia é a obediência às leis. Se a sociedade entende que uma lei não atende mais aos seus anseios ela deve ser mudada por meio dos procedimentos legislativos existentes para tal. E, se mudar, a partir daquele momento a nova lei passa a nortear as novas práticas aprovadas.
O que não pode, sob pena da instalação de ditadura jurídica, é a desobediência a leis vigentes e válidas independentemente de qualquer circunstância, objetivo ou pretexto.
Prevê a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/42, atualizada por algumas leis, sendo a última a 13.655/18) que “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (art. 3º).
A sociedade está embevecida num transe momentâneo em que aceita, sem refletir nem ponderar as consequências, a promessa de tudo e de todos no sentido da solução imediata de males crônicos instalados no seu seio há décadas e que não podem ser simplesmente extirpados com uma canetada, pois são complexos e suas ramificações estão espalhadas por toda ela, numa metástase incontrolável e cujo quadro clínico não se resolve apenas com uma droga ou pílula de papel, mas com tratamento sério, científico e prolongado.
Não aplauda arbitrariedade. Você poderá ser vítima dela.
Oremos, todos!
Os administradores processados? Eles seguem na defesa intransigente da legalidade dos atos operacionais que praticaram, mas ainda faltam alguns anos para o judiciário julgar os seus casos.
Josenir Teixeira
Escrito em 25.08.2019