O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos classificou a homologação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, localizada em Roraima, como “a obra mais importante” do governo Lula. Pode ser. Não tenho nada contra os índios. Nem a favor.
Todavia, como cidadão pagador de impostos, de segurança particular na minha rua, de plano de saúde particular, de escola e faculdade particulares, de seguros (carro, residência etc.) e mais um sem número de necessidades pessoais diante do seu não oferecimento de forma digna pelo governo (seja ele qual for), eu esperava que sua “a obra mais importante” fosse mais impactante para a coletividade. Eu ansiava mais do meu “sócio majoritário”.
Meu desconforto se acentua porque, como profissional militante na área da saúde há quase duas décadas, inclusive no contencioso, como conhecedor do previsto na Constituição Federal (Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.), como assistente da embromação que está sendo feita em relação à regulamentação definitiva da Emenda Constitucional nº. 29, aprovada em 13 de setembro de 2000 (há quase oitos anos), confesso que me sinto bastante decepcionado com a atuação do governo e com a façanha espetacular à qual se referiu o ex-ministro.
Há décadas discutimos os motivos pelos quais a prestação de serviços na saúde brasileira não atinge o nível esperado. Também há décadas sabemos exatamente qual é a resposta. Não precisamos de nenhum “grupo de trabalho” para chegar a essa conclusão. A saúde não deslancha e não se nivela por cima porque os fatores da equação “gestão + verba” nunca estão presentes de forma concomitante, o que não propicia o equilíbrio desejado. E se assim não estiverem, podemos continuar com a discussão do assunto por várias outras décadas e não sairemos da mesmice e inércia atuais.
A constatação disso é bastante simples. Basta ler os jornais. Quais são os hospitais públicos que melhor assistem a população? Por que conseguiram atingir este nível? Qual foi a “mágica” feita pelo gestor público para conseguir isso? Se você, caro leitor, está razoavelmente informado, verá que os resultados que pululam à nossa frente, de uma forma ou outra, simplesmente foram obtidos porque chegou-se ao produto da operação “gestão + verba”.
Lembro-me de audiência da qual participei como advogado de uma Santa Casa do interior de São Paulo que foi vítima de intervenção judicial, a pedido do Ministério Público. Durante anos (mais de cem, para ser exato), a Santa Casa pediu ao município que a ajudasse na manutenção do seu custeio, visando melhorar os serviços disponibilizados para a população, já que era o único hospital da cidade. O governo municipal, por questões políticas, por não gostar de alguns membros da diretoria da Santa Casa, ou seja lá por qualquer outro fator, nunca aportou recursos naquela instituição. Ou melhor, destinava algo em torno de sete mil reais mensais para ajudar a pagar a conta que chegava a quatrocentos mil reais mensais. Como a Santa Casa não conseguia sair daquele círculo vicioso que a impossibilitava de obter receita extra para incrementar seus serviços, estes começaram a definhar, como é natural, situação que não a difere de centenas de entidades. Na audiência, fiquei por quase duas horas discutindo com o prefeito, os secretários de saúde e de finanças e o Promotor de Justiça sobre a necessidade de se cumprir o art. 23 (É competência comum da União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (…) II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;) da Constituição Federal, ao passo que os governantes insistiam na surrada tese de “má gestão”, que utilizavam como argumento impeditivo para o não repasse de recursos. Não era o caso específico daquela Santa Casa. É claro que sempre há espaço para melhorias administrativas, mas, decididamente, o batido rótulo de “má gestão” não se aplicava naquele caso concreto. O que aconteceu depois da discussão e da audiência? Nada. O Judiciário determinou a intervenção e, pasme, caro leitor, transformou o município, que era réu da ação civil pública junto com a Santa Casa, em interventor. Ou seja, colocou a raposa para cuidar do galinheiro. Agora como “interventor”, o município aporta algo em torno de quatrocentos mil reais mensais naquela Santa Casa e “resolveu” o problema de saúde. Fácil, não? Se o município destinasse menos da metade desse valor à Santa Casa, que era o pleito dela, ela teria conseguido desenvolver suas atividades com mais qualidade e segurança para a população. Mas não. Enquanto o município não tinha o “poder de mando” do hospital, não havia dinheiro para a saúde. Agora que tem, o dinheiro apareceu. Tenho certeza que o leitor conhece vários exemplos iguais ou muito parecidos com o acima relatado, infelizmente. Só quero ver o que vai acontecer quando o município tiver que devolver o hospital à Santa Casa, pois a intervenção judicial é sempre provisória. Será que o dinheiro que hoje abunda irá desaparecer?
Voltando ao cerne da discussão, o governo (de todas as esferas) tem que parar com pirotecnias e enfrentar o problema de frente, com recursos e gestão, pois, caso contrário, as firulas continuarão a ser improdutivas. Recente pesquisa, baseada em dados do ministério da Saúde e do IBGE, concluiu que “a maioria dos recursos aplicados em saúde no país já vem do setor privado”, sendo que o SUS (Sistema Único de Saúde) responde por 49% dos gastos contra 51% dos planos e particulares. Resumindo: eu e você, leitor, estamos financiando aquilo que os impostos que recolhemos deveria pagar.
Fico ainda mais “assustado”, digamos assim, quando leio nos jornais que “o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, diz que o maior problema da saúde pública é a falta de dinheiro e que diariamente tenta convencer a equipe econômica do governo a liberar mais recursos.” (Folha de S.Paulo, 28.04.08) Ora, que a saúde é subfinanciada nós já sabemos há muito tempo. Qual é o compromisso dessa “equipe econômica” com a sociedade ao não “liberar” os tais recursos para a saúde? Qual é o compromisso dos governos com a obediência à Constituição Federal que, dizem, é a lei maior do Brasil?
Veja, leitor, que neste artigo sequer toquei no assunto da CPMF (Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira) ou da CSS (Contribuição Social para a Saúde) que o governo tenta fazer nascer, pois não vale a pena.
Termino esta breve opinião com a transcrição de resposta que o ministro da Saúde deu à seguinte pergunta, feito pelo jornal acima mencionado: “Folha – O Brasil algum dia vai ter uma saúde de Primeiro Mundo? TEMPORÃO – Os melhores exemplos são a Inglaterra e o Canadá, que têm sistemas de saúde universais. A pessoa paga seus impostos e tem atendimento em tudo. O Brasil tem um sistema misto, com mais de 140 milhões de brasileiros que dependem do sistema público para tudo e 40 milhões que pagam seguro e plano de saúde. A tendência no Brasil é a convivência harmônica dos dois sistemas. O SUS é uma importante política de redução de desigualdade social. As pessoas não param para pensar nisso. Nós aqui avaliamos tão mal o sistema, mas os estrangeiros ficam perplexos com a filosofia, a organização, o planejamento e os resultados do SUS.”
Entendeu, caro leitor?
Publicado em Notícias Hospitalares nº. 57, ano 5, maio/junho/julho/2008.