O Poder Executivo, consciente das dimensões continentais do Brasil, de suas diferenças regionais e culturais e sabedor de que nem sempre possui em seu quadro pessoas capacitadas especificamente para a gestão de estabelecimentos hospitalares e afins, de alguns anos para cá tem procurado descentralizar a atividade administrativa, transferindo seu exercício para pessoas jurídicas, especialmente para entidades do Terceiro Setor. “O Estado brasileiro não foi feito para administrar saúde”, costuma dizer o Secretário de Estado da Saúde de São Paulo, dr. Luiz Roberto Barradas Barata (citação extraída da revista FUNDAP).
Possibilidade legal. Alguns doutrinadores administrativistas, teóricos, criticam e são contrários a tal possibilidade, pois entendem que municípios, estados e a União Federal não poderiam utilizar a faculdade acima mencionada, fato que sempre é explorado pelo Ministério Público nas ações que intenta contra entes políticos que assim procedem.
Porém, o artigo 197 da Constituição Federal (CF) prevê que a execução dos serviços de saúde deve ser feita diretamente pelo Poder Público “ou através de terceiros, e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”
O artigo 199 da CF prevê que “a assistência à saúde é livre à iniciativa privada.” O parágrafo primeiro deste artigo prevê que “as instituições privadas poderão participar e forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.”
Terceiro Setor é o nome que se dá ao conjunto de entidades sem fins lucrativos, de direito privado, regidas pelo Código Civil, que realizam atividades em prol do bem comum e auxilia o Estado na solução de problemas sociais.
Decorre da própria Constituição Federal, lei maior do País, a autorização para que entidades do Terceiro Setor participem da assistência à saúde da população, haja vista que tal atividade não é privativa do Estado.
O presidente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas do Brasil (CMB) e ex-presidente do CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social, dr. Antônio Brito, escreveu na Folha de S.Paulo de 13.06.05: “É inegável a posição preferencial de parceria das santas casas e hospitais filantrópicos na promoção de ações de saúde e assistência social com os governos municipais, estaduais e federal, conforme, inclusive, previsto nos artigos 199 da Constituição Federal e 25 da lei no. 8.080/90. Essa situação gera uma relação de interdependência entre o governo e essas instituições que deve se constituir em reconhecimento mútuo, do qual o grande beneficiário é a população brasileira.”
Terceirização da gestão. Ao transferir a gestão de um hospital público para uma entidade sem fins lucrativos, o ente político não está se afastando do cumprimento da obrigação constitucional de garantir saúde a todos os brasileiros. Longe disso. Mais longe ainda fica a idéia de que se está “privatizando” atividades essenciais. Ele apenas está transferindo a gestão dos serviços a uma pessoa jurídica especializada e capacitada tecnicamente para desenvolvê-los, visando a otimização dos recursos, permanecendo a atividade essencialmente pública.
O custeio dos serviços continua sendo promovido pela Administração Pública, como determina a Constituição Federal. É o que se chama de Gestão Compartilhada, onde o patrimônio continua sendo público, mas o gerenciamento dos serviços passa a ser privado.
Na Gestão Compartilhada, os entes políticos procuram introduzir na Administração Pública princípios gerenciais típicos da iniciativa privada, procurando fugir da burocracia exagerada que a rege. É unânime a crítica que se faz ao emperramento das atividades públicas que a rigidez da legislação licitatória imprime ao país. Infelizmente, ao que parece, o Legislativo não tem tempo de alterá-la, pois outros assuntos mais “picantes” prendem a atenção de nossos eleitos.
Formas de contratação. O ente político pode se valer de algumas formas jurídicas para se relacionar com as entidades do Terceiro Setor, dependendo de cada caso concreto.
a) Licitação. A regra geral é a realização de licitação. Todavia, a própria legislação licitatória prevê hipóteses em que ela pode ser dispensada ou inexigida, mediante o cumprimento dos respectivos requisitos para isso.
b) Convênio. Pode o ente político utilizar-se da realização de Convênios, que atraem a formalização de instrumentos jurídicos de Concessão para que a entidade utilize imóveis, móveis, equipamentos, veículos e pessoal (servidos públicos) etc., para cumprir a missão de gerenciamento para a qual foi convocada.
Veja-se que a entidade irá gerenciar atividades já existentes, procurando criar as condições mais favoráveis ao seu desenvolvimento, podendo até ampliar os serviços e os atendimentos, dependendo das situações específicas e da viabilidade econômico-financeira, de mercado e de outros inúmeros fatores que interferem direta e indiretamente neste nicho de mercado.
c) Organização Social. Esta é a denominação de uma qualificação (um título) que o Poder Executivo pode conceder a associações civis sem fins lucrativos que preencherem os requisitos legais.
Ao conceder ou atribuir esta qualificação a uma entidade do Terceiro Setor, o ente político tem a intenção de formalizar e fomentar a realização de parceria entre ele e instituições privadas que possuem fins complementares às atividades públicas.
Procura-se aproximar e implantar nova forma de participação popular na gestão administrativa. Ao conceder tal qualificação, o ente político realiza a “publicização”, que é a atribuição de coisa pública a algo originariamente privado, ou seja, a entidade do Terceiro Setor, que é pessoa jurídica de direito privado, ao se publicizar, passa a ser tida como se pública fosse, o que a legitima a prestar serviços de administração e gerenciamento de determinadas atividades públicas, como saúde, educação e cultura, por meio da assinatura de “contrato de gestão”.
Esta forma de relacionamento entre o poder público e entidades do Terceiro Setor dispensa a realização de licitação, conforme dispõe o inciso XXIV do artigo 24 da lei 8.666/93. Entretanto, mesmo com tal permissão, o ente político pode realizar a licitação, se entender conveniente.
A lei federal 9.637/98 rege o tema. Alguns estados e municípios criaram legislação específica para regulamentar o assunto.
Exemplos.
1) O estado do Tocantins editou a lei 762/95, que permitia a celebração de convênios para a concessão de uso de bens móveis e imóveis da rede hospitalar com entidades filantrópicas e associações sem fins lucrativos, com o intuito de promover a descentralização das ações de serviço de saúde, conforme diretrizes do Sistema Único de Saúde.
2) O estado do Rio de Janeiro editou a lei 2.878/97, que mudou a forma de gestão dos hospitais públicos, permitindo sua transferência a terceiros. Esta lei foi revogada pela 3.202/99.
3) O estado da Bahia editou a lei 7.027/97, que instituiu o programa estadual de incentivo às Organizações Sociais. Mais recentemente, aquele estado a revogou e editou a lei 8.647/03 e o decreto 8.890/04, que tratam de detalhes sobre a participação e absorção de atividades e serviços de interesse público pelas Organizações Sociais.
4) O estado de Roraima editou a lei 174/97, que instituiu novo modelo de gestão na área de saúde pública: a gestão compartilhada. Tal lei é específica para Cooperativas de Trabalho ou de Profissionais de Saúde, modalidade que não está sendo mais utilizada e vem sendo substituída pelo modelo das Organizações Sociais. Acreditamos que a adequação legislativa da lei seja questão de tempo.
5) O estado de São Paulo editou a lei complementar 846/98, que tratou do assunto. Desde então e até os dias de hoje, 17 hospitais públicos estaduais são geridos por entidades do Terceiro Setor que foram qualificadas como Organizações Sociais, sem nenhum questionamento do Ministério Público (estadual ou federal), da Procuradoria Geral da República ou de quem quer que seja:
Entidades qualificadas como
Organização Social |
Hospital cedido | Data da cessão |
Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Faculdade de Medicina de Botucatu | Geral de Bauru | 04.11.2002 |
Associação Sanatorinhos – Ação Comunitária de Saúde | Geral de Carapicuíba | 23.10.1998 |
Geral de Itapevi | 20.09.2000 | |
OSEC – Organização Santamarense de Educação e Cultura | Estadual de Francisco Morato | 02.02.2004 |
Geral do Grajaú | 23.10.1998 | |
Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo | Geral de Guarulhos | 14.04.2000 |
Associação Beneficente Casa de Saúde Santa Marcelina | Geral do Itaim Paulista | 05.08.1998 |
Geral de Itaquaquecetuba | 24.03.2000 | |
SECONCI – Serviço Social da Indústria da Construção Mobiliário do Estado de São Paulo | Geral de Itapecerica da Serra | 03.03.1999 |
Estadual de Vila Alpina | 11.12.2001 | |
Associação Congregação de Santa Catarina | Geral de Pedreira | 26.06.1998 |
SPDM – Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina | Estadual de Diadema | 26.10.2000 |
Geral de Pirajussara | 25.01.1999 | |
Estadual de Mogi das Cruzes | 28.08.2004 | |
Fundação ABC | Estadual Mário Covas – Santo André | 20.11.2001 |
FMUSP – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Fundação Faculdade de Medicina | Estadual Sapopemba | 05.04.2003 |
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas | Estadual de Sumaré | 22.09.2000 |
O secretário de Estado da Saúde de São Paulo, dr. Luiz Roberto Barradas Barata, escreveu na Folha de S.Paulo de 24.05.2005: “ … para a população de São Paulo (o modelo de Organizações Sociais de Saúde – OSS) representa melhoria do atendimento, uma vez que o índice de satisfação médio de usuários de 16 hospitais geridos por OSS fica na casa dos 95%. Mais do que isso. Os hospitais gerenciados por organizações sociais são exemplo de eficiência e otimização de recursos. Em 2004, essas unidades tiveram um custo médio de 20% menor do que as unidades de administração direcionada e, no mesmo período, tiveram uma produtividade 37,3% maior.”
6) O estado do Pará editou a lei 5.980/96 e o decreto 3.876/00, que regulamentaram as Organizações Sociais.
7) O município de Cubatão/SP editou a lei 2.764/02 e o decreto 8.374/02, que tratam da qualificação de entidades de direito privado como Organização Social.
Há outros estados e municípios que já contrataram entidades do Terceiro Setor para prestarem serviços por intermédio da modalidade aqui mencionada, apesar de ainda não terem criado legislação específica sobre o tema.
d) OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Os entes políticos também podem atribuir a entidades do Terceiro Setor esta qualificação, mediante o cumprimento dos requisitos da lei federal 9.790/99, do decreto 3.100/99 e da legislação estadual ou municipal que eventualmente for editada para regulamentar o assunto.
O estado de Minas Gerais, por exemplo, editou a lei complementar 14.870/03 e o decreto 43.749/04 para cuidar desta relação de parceria entre o Poder Público e a iniciativa privada.
Conclusão. Alternativas há para que o governo, de qualquer esfera e ideologia, delas se utilize, visando melhorar o atendimento da população na área da saúde. Recursos financeiros existem para isso. Eles devem, entretanto, ser bem gastos, administrados e empregados. Em assim procedendo e dependendo da situação específica, gastam-se menos recursos e pode-se atender mais e melhor a população, com profissionalismo e racionalização das verbas disponíveis.
Infelizmente, a revogação da Portaria do Ministério da Saúde no. 2.225, de dezembro de 2002, que obrigava os gestores dos hospitais do SUS a se especializarem em cursos de administração hospitalar, contribuiu negativamente para que o profissionalismo demore mais a ser realidade.
Paciência. Mesmo assim, há alternativas viáveis e legais para que entes políticos possam cumprir a obrigação constitucional de dar atendimento à saúde a todos os cidadãos brasileiros.
O número 42 desta revista (agosto/setembro de 2003) publicou o artigo “A Gestão Privada de Hospitais Públicos”, onde eu também tratei deste assunto.