Nos últimos anos muito ouvimos falar sobre o Terceiro Setor. Eu mesmo já ocupei este espaço algumas vezes para tratar desse assunto. Ainda ouviremos bastante sobre ele, em seus vários aspectos e áreas de abrangência. Vamos nos ater à da saúde.
Organizações Sociais. Nos primeiros dias de janeiro de 2006, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei (enviado pelo prefeito José Serra) que criava as chamadas Organizações Sociais. Trata-se de uma qualificação que o Poder Executivo outorgará às entidades sem fins lucrativos que cumprirem determinados requisitos legais. A concessão de tal qualificação externa a vontade do ente político em formalizar e fomentar a realização de parceria com instituições privadas que possuem fins complementares às atividades públicas. O recebimento de tal título permite à entidade firmar Contrato de Gestão com aquele Poder para administrar estabelecimentos de saúde (hospitais, ambulatórios, unidades básicas de atendimento médico etc.) situados no município de São Paulo.
Outros municípios (Fortaleza/CE, Cubatão, Guarulhos, Hortolândia e Santo André, em São Paulo, Pedro Leopoldo/MG) e estados (Acre, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins) já dispõem de legislação específica para as Organizações Sociais ou para outras formas de participação de entidades do Terceiro Setor, como as OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), por exemplo, na Administração Pública.
O fato é que o Terceiro Setor existe, cresce vertiginosamente e constitui-se em alternativa para ajudar os governos a cumprir seu papel constitucional de forma adequada.
Isso é bom? Espero que sim. O Brasil merece. Nós merecemos.
Talvez seja preferível experimentar algo novo e que parece já ter dado certo em alguns lugares a permanecer numa mesmice inerte e sem perspectiva de mudança.
Evolução. Ainda temos muitos aspectos para aprimorar nesta parceria cada vez mais presente entre o Poder Público e o Terceiro Setor. Há vários assuntos, enquadramentos e posturas que precisam ser esclarecidos e formatados. Há a necessidade do estabelecimento de um norte a ser seguido, pois, enquanto isso não acontecer, estamos fadados a ouvir e ler muita besteira. As regras do jogo ainda não estão totalmente claras e isso cria um cenário enevoado que incomoda e traz insegurança aos atores da cena.
Direito Administrativo. A aplicação das regras do Direito Administrativo (por analogia que seja) na relação jurídica que se queira estabelecer entre entes políticos e entidades (associações e fundações) sem fins lucrativos ainda deixa vácuos sem respostas. A presença do Poder Público na condição de parte de um contrato, convênio, termo de parceria, contrato de gestão ou seja lá o nome que se queira dar à relação jurídica a ser estabelecida atrai, automaticamente, a obrigatoriedade de observância de uma série de princípios e preceitos.
Esta modalidade do Direito ainda não tem respostas para algumas perguntas que surgem da relação entre o Poder Público e o Terceiro Setor:
a) por que a entidade do Terceiro Setor, privada, que recebe recursos públicos, não é obrigada a realizar licitação para gastar aquele dinheiro? (Divulgar regras para contratação não é o mesmo que licitar)
b) como regularizar a contratação de pessoal sem concurso pelo Poder Público, por intermédio das entidades do Terceiro Setor, com quem foi firmada parceria para desenvolver determinados serviços?
c) como enquadrar juridicamente a demissão (e não exoneração) do pessoal contratado da forma acima mencionada?
d) qual a justificativa jurídica para que o Poder Público não preste contas dos seus gastos aos respectivos Tribunais de Contas, pelo fato de tal gasto ter sido realizado por entidade do Terceiro Setor que, enquanto associação (ou fundação) civil de direito privado, não está obrigada a fazê-lo?
e) como flexibilizar legalmente as normas para permitir a participação do Terceiro Setor na Administração Pública sem risco de questionamentos ou responsabilização judiciais da própria pessoa jurídica ou de seus dirigentes?
É claro que há justificativa jurídica para as perguntas acima. Todavia, também há argumentos em prol da tese da impossibilidade de prestação de serviços essenciais pela iniciativa privada. O diabo é que ficamos nessa discussão interminável: os advogados atuantes na área defendem seus clientes e justificam a possibilidade de estabelecimento de parceria entre o Terceiro Setor e o poder Público e, por outro lado, o Ministério Público age no sentido de impedir a criação de tal vínculo jurídico. Onde isso vai parar? Nos tribunais, provavelmente.
Espera. Enquanto o questionamento judicial dorme em berço esplêndido, o tempo passa, as relações jurídicas vão se consolidando e perpetuando, as pessoas vão criando alternativas extralegais e por aí vai. E se o Judiciário julgar determinada relação jurídica entre o Poder Público e o Terceiro Setor como ilegal, depois de 8 anos de duração? O que irá acontecer? Como resolver a situação? E o dinheiro (público) consumido regularmente durante todo esse tempo? Aliás, como concluir que o recurso público foi gasto “regularmente” numa relação jurídica que, a princípio, não poderia ter nascido? Espero que a futura decisão judicial explique como resolver isso.
Para o leitor que acha que a hipótese acima sugerida é de difícil consumação, lembro que a lei federal que instituiu as Organizações Sociais foi editada em 1998 e é objeto de 2 ADINs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) ajuizadas no Supremo Tribunal Federal: uma no mesmo ano e outra em 1999. O estado de São Paulo editou lei específica para tratar do assunto em 1998 e firmou Contrato de Gestão, ainda em 1998, com entidade do Terceiro Setor para administrar um hospital na Capital. É justamente a hipótese acima aventada. O que será que irá acontecer na prática? Confesso que estou curioso. Temos que confiar no bom senso do Judiciário, até porque não nos restam muitas alternativas.
À procura de respostas. De qualquer maneira, algumas perguntas pululam neste início de ano:
a) será que tudo tem que ser público ou estatal?
b) será que não deveríamos privatizar a estatização?
c) será que o Brasil ainda não tem maturidade ou criatividade suficientes para criar e utilizar alternativas à máquina estatal para atender os mais de 185 milhões de brasileiros que aqui tiveram o privilégio de nascer?
d) será que não somos capazes de fiscalizar e controlar determinadas atividades ou pessoas jurídicas pelos resultados apresentados?
e) será que o princípio constitucional que reza que todos são inocentes até prova em contrário foi invertido e ninguém me avisou?
f) será que somente os políticos sabem gastar o dinheiro dos impostos que pagamos? (Em benefício da população, eu quis dizer)
g) afinal de contas e de uma vez por todas, podemos confiar no Terceiro Setor? Ou devemos confiar desconfiando?
h) será que o Terceiro Setor precisa de “controle externo”? (Há projeto de lei neste sentido)
i) será que poderá ocorrer aqui o que aconteceu na Rússia? (Cabe ao Parlamento decidir em relação a quais e como as entidades do Terceiro Setor podem atuar)
j) será que só devemos fazer algo movido por uma lei que assim determina?
k) será que estamos predestinados a conviver com anomalias jurídicas (que não se sabe de onde saíram nem com qual intenção) na área do Terceiro Setor?
l) será que o governo federal mudará sua postura (se é que há interesse em assim agir) diante das entidades do Terceiro Setor que desempenham as atividades que deveriam ser feitas por ele, em prol da população?
m) qual será o próximo “requisito” que o governo federal criará, por meio de uma portaria, resolução, ordem de serviço ou outra esquisitice qualquer, para onerar e burocratizar ainda mais a vida das entidades do Terceiro Setor e para que elas não tenham condições de cumprir? (As apostas estão abertas)
n) será que as entidades do Terceiro Setor continuarão a desconhecer sua força, permanecerão desunidas e inertes e ficarão simplesmente assistindo ao avanço covarde do governo federal em suas imunidades? (Quanto tempo elas ainda vão esperar para buscar o Judiciário?)
o) quantas entidades terão o seu CEAS (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social) cassados pelo CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social) neste ano?
p) será que as entidades continuarão a ignorar o trâmite de seus processos no CNAS, restringindo-se a acompanhá-los pelo Diário Oficial, se é que isso acontece?
Teremos um ano inteiro pela frente para (tentar) responder estas (e várias outras) perguntas. E se não der tempo, ainda teremos outros pela frente. Ainda bem!
2006 está começando. Sou otimista por natureza. Mas o ceticismo ronda e é incomodativo. Oxalá Deus permita que tenhamos surpresas agradáveis e muito o que comemorar daqui a 11 meses!
Amém.