Bioética é a combinação de conhecimentos biológicos e valores humanos.
O vocábulo bioética indica um conjunto de pesquisas e práticas pluridisciplinares, objetivando elucidar e solucionar questões éticas provocadas pelo avanço das tecnociências biomédicas.
A bioética é o estudo das dimensões morais das ciências da vida e da saúde.
“ Bio, segundo Pessini e Barchifontaine, ´exige que levemos seriamente em conta as disciplinas e as implicações do conhecimento científico, de modo que possamos entender as questões, perceber o que está em jogo e aprender a avaliar possíveis consequências das descobertas e suas aplicações …´. A ética, por sua vez, ´é uma tentativa para se determinar os valores fundamentais pelos quais vivemos. Quando vista num contexto social, é uma tentativa de avaliar as ações pessoais e as ações dos outros de acordo com uma determinada metodologia ou certos valores básico.´ ”
A evolução surpreendentemente rápida da medicina e de tantas outras áreas áreas ligadas à saúde fizeram com que assuntos até então não tão pensados viessem à tona. Até pouco tempo não falávamos em clonagem humana, eutanásia, direito de morrer, experimentação em seres humanos, aborto eugênico e tantos outros assuntos que surgem quando falamos de tecnologia e conhecimento na área da genética humana.
E aí surge um problema: – a evolução da sociedade, da medicina e da própria tecnologia é muitas vezes mais rápida que a evolução do Direito. O Direito sempre corre atrás das evoluções experimentadas pela sociedade com a finalidade de regular sua aplicação e suas eventuais consequências. E isso não é privilégio apenas do Brasil. Há inúmeros países que correm contra o tempo para regular uma nova tecnologia descoberta e que está sendo aplicada. Isso acontece até mesmo porque não sabemos de pronto todas as consequências que aquele experimento vai trazer à sociedade. Aliás, às vezes, nem os próprios cientistas têm cem por cento de certeza disso. Todos conhecemos o poder absurdo que tem a internet. Até há pouquíssimos anos os Estados Unidos da América ainda não tinham legislação suficiente que abordasse a totalidade das suas aplicações. O Brasil até hoje não a tem também. Diz a Constituição Federal: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.” Portanto, enquanto uma lei não disser que algo não pode ser praticado, poderá sê-lo.
Voltando à bioética e para corroborar com a informação que fiz acima, podemos ler na obra da Dra. Tereza, aqui tantas vezes mencionada: “Percebemos que a ciência está caminhando mais rápido que a reflexão ética por parte da sociedade. A humanidade ainda não encontrou respostas para diversas questões éticas. Muitos requerem a discussão e a elaboração de leis sobre a bioética para legitimar a sua prática ou para proibir experiências julgadas abusivas. No entanto, com o progresso veloz das pesquisas biológicas, corre-se o risco de já estarem defasadas no momento de sua promulgação.
Philippe le Tourneau recusa a idéia de legiferar. Segundo ele, os grandes princípios do Código Civil são suficientes para regulamentar as situações. Se formos legiferar, acrescenta o professor da Universidade de Toulouse I, é preciso ser muito prudente, dando à matéria grandes princípios sem querer tratar detalhadamente todas as questões. Ademais, a moral não deve ser considerada como um conjunto de restrições, mas um caminho de liberdade e de felicidade.”
Aqui abrimos um parêntesis apenas para dizer que legislar de maneira correta e detalhada e ainda com total imparcialidade não é muito o forte do nosso glorioso Congresso Nacional.
Concluímos a transcrição de parte da obra da Dra. Tereza onde ela diz que “A lei deve assegurar o princípio da primazia da pessoa aliando-se às exigências legítimas do progresso de conhecimento científico e da proteção da saúde pública. A propósito destes casos, mesmo diante da inexistência de uma lei específica, cabe ao juiz dizer o direito, baseando-se em princípios gerais, determinando os limites. “
Diz a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC):
“ Art. 4º – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
Assusta-me quando começamos a falar em alimentos transgênicos, em clonagem de seres humanos para fins de reposição de órgãos, utilização de embriões humanos e tantas outras “descobertas” dos nossos cientistas. A princípio, parece que estamos brincando com fogo. Alguns dizem que o homem não deveria mexer com o que Deus criou. Outros, mais céticos e técnicos, dizem que a humanidade só evoluiu da forma que hoje se encontra devido à natureza curiosa do próprio ser humano, do seu pioneirismo, de sua coragem, etc. Ambos têm razão. O difícil é conseguir mesclar as duas teorias, os dois pontos de vista diferentes, numa breve análise.
O jornal Folha de S.Paulo de 02.07.99 trouxe a notícia de que a Comissão Nacional de Assessoria em Bioética da Casa Branca estava avaliando a possibilidade de ser autorizado, nos EUA, o uso de embriões de seres humanos para a obtenção de células que seria utilizadas em experimentos científicos. (The New York Times) O mesmo jornal trouxe, na sequência, a notícia da formação de uma coalizão de religiosos, pesquisadores e políticos que criticou tal uso dos embriões humanos, afirmando que o processo é antiético e cientificamente questionável. O grupo pediu ao Congresso dos EUA que mantenha as leis atuais, que proíbem o uso das verbas federais em pesquisas com embriões humanos, dos quais se poderiam obter as chamadas células-tronco.
Ainda o mesmo jornal trouxe, em 18.06.99, a seguinte notícia: ´A aplicação das técnicas de biotecnologia no desenvolvimento de plantas transgênicas é saudada por alguns como uma nova revolução verde. A transferência de genes permite a seleção de novas e melhores variedades, mas abre caminhos para um mau uso da tecnologia. Longe de nós, ambientalistas, estar contra a aplicação da engenharia genética na melhoria da qualidade e da produção agrícola. Mas, quando a transferência genética visa só obter espécies resistentes a pesticidas e herbicidas, o desenvolvimento da agricultura sustentável nos parece ameaçado.”
O Doutor em ciências da informação pela Universidade de Paris, Laymert Garcia dos Santos, escreveu artigo na edição da Folha de S.Paulo de 08.06.99 onde disse: “ … A articulação da informação digital e genética com o regime jurídico da propriedade intelectual permitiu ao grande capital instaurar uma ordem de alcance ao mesmo tempo global e molecular, que vai concretizar sua estratégia de apropriação absoluta da natureza por meio da recombinação e da reprogramação de seus componentes.
Mas tal operação exige a desvalorização de todo o conhecimento existente e da própria vida (vegetal, animal, microorgânica e inclusive humana), que se tornam pura matéria-prima para a digitalização e a manipulação genética, essas sim, geradoras da nova riqueza privada. Não é à toa, por exemplo, que a Monsanto pressiona para que a adoção de sementes transgênicas se dê a toque de caixa; trata-se de tornar irreversível o processo de biotecnologização da agricultura. Surge uma pergunta: como entramos nós nessa estratégia? Antes de tudo, cabe lembrar que, apesar dos sonhos e aspirações de nossos cientistas e tecnocratas, não estamos na ponta do processo: a participação brasileira no registro mundial de patentes é inferior a 1%. Isto é: não temos tecnologia e as chances de obtê-la são cada vez menores. Em compensação, somos o país de maior megadiversidade do planeta. A questão da apropriação dos recursos genéticos do Brasil torna-se, portanto, central.”
Por aí podemos ver que o assunto do qual estamos tratando não é apenas ético, moral ou jurídico. É também econômico.
Não posso deixar de fazer um breve comentário sobre o artigo acima onde menciona as remotas chances de obtermos tecnologia. E faço isso transcrevendo trecho de entrevista publicada nas páginas amarelas da revista Veja nº 38 de 22.09.99, onde Tomas Prolla diz: “ … as pesquisas não são levadas tão a sério nas universidades.”
Tomas Alberto Prolla é um geneticista brasileiro que prolongou a vida de ratos e diz que é perfeitamente possível ao ser humano esticar a existência. Atualmente ele é professor da Universidade de Wisconsin, norte dos EUA. Diz ele na mesma entrevista acima mencionada onde fomenta ainda mais a discussão a respeito da utilização ou não de descobertas científicas em seres humanos: “Eu acredito que, no caso do homem, isso (prolongamento da vida) é muito mais uma decisão da sociedade do que dos cientistas. Em nosso laboratório já começamos a desenvolver um projeto para alterar geneticamente alguns ratos. Pretendemos criar animais transgênicos programados para viver mais. Tratando-se de pessoas, acho que é mais simples desenvolver terapias que atuem nos genes, sem, no entanto, alterar o perfil genético original. Os laboratórios estão extremamente interessados em explorar esse filão com novos medicamentos. Isso é bastante razoável. O que não faz sentido é termos uma tecnologia que nos permite aumentar a vida das pessoas e não usá-la.”
Ainda a Folha de S.Paulo (de 09.05.99) trouxe a notícia do quê fazer com embriões humanos congelados que estão abandonados pelos casais. A notícia diz que muitos casais retiram e estocam em clínicas embriões humanos e que, por diversas razões (como o divórcio, por exemplo), acabam por abandonar aquele ´material´, se assim pode ser chamado. O jornal diz que, segundo levantamento, há cerca de 4.000 embriões congelados nas dez maiores clínicas do país, sendo que 1.000 deles estão abandonados. A destruição dos embriões é proibida por resolução do Conselho Federal de Medicina, que apenas autoriza a doação dos embriões com autorização do casal. Apesar disso, várias clínicas acabam por destruir os embriões. A Igreja Católica condena a prática de destruição dos mesmos, que os considera seres humanos e não apenas ´um aglomerado de células´. O Padre Leocir Pessini, consagrado doutrinador do assunto e sempre consultado a respeito, diz em tal jornal que os embriões devem ser tratados como pessoas. Diz que “ele já participa da mesma dignidade da pessoa humana e deve ter seus direitos preservados.” O descarte dos embriões para a Igreja Católica seria o mesmo que o aborto. A discussão continua quando o andrologista Roger Abdelmassih diz: “Não fico tão desesperado com essa polêmica porque tenho convicção que embrião não é vida.” A polêmica ganha mais vozes quando o médico José Gonçalves Franco Júnior, diretor brasileiro da Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida diz: “Se os embriões não são gente, têm um grande potencial para ser.”
E por aí vai.
Percebe-se, como dito, que o assunto demanda debates profundos, sendo que, ao que parece, está longe de se ter uma opinião uníssona.
E é justamente aí que entra a bioética. Como dito acima, bioética é a combinação de conhecimentos biológicos e valores humanos. Essa é a nossa luta. Mesmo porque, em Direito, não há certezas absolutas. Qualquer ponto de vista poderá ser defendido até o fim e ambos estarão certos. Como fazer então? À medida que as circunstâncias e os fatos acontecem, tentamos ajustar e aplicar valores jurídicos e disposições até então existentes ao caso concreto, sempre utilizando o bom senso e não esquecendo que a sociedade tem sempre que evoluir.
Que há dificuldades enormes há. A Dra. Tereza Rodrigues Vieira, cuja recente obra, somada a outras, norteia este artigo, reproduziu frase do Dr. Álvaro Villaça Azevedo, Doutor em Direito e notável jurista, que diz:
“A experiência tem mostrado que quanto mais o homem caminha para a artificialidade, foge ele das regras naturais e da essência de sua própria vida.“
Franck Sérusclat já disse que “ A finalidade da ciência é melhorar as condições de existência da humanidade. Assim, a ética, sob o ponto de vista técnico, defende que cada homem que a compõe deveria aceitar ser submetido aos seus projetos.” Como sempre há outra visão para a mesma coisa, inúmeros religiosos vêm a vida como um dom, a doença como uma provação e a morte como uma passagem.
O assunto ´bioética´ desperta teses teológicas, filosóficas e inúmeras outras. Tanto que a maioria dos livros consultados para este artigo foram escritos por padres, que trazem à tona todo o valor do ser humano, passando por teorias fundamentadas sobre nossa função enquanto criaturas, filhos e servos de Deus.
Diz ainda a Dra. Tereza: “ A doutrina esposada por Olinto Pegoraro em seu artigo ´Ética na contemporaneidade´ preconiza que o ´sujeito ético é o ser humano situado na história que, contando com a experiência humana passada, olha para o futuro de si e do mundo, com responsabilidade ética exclusiva.´
Num ponto, contudo, estão assentes os doutrinadores: é preciso uma maior aproximação entre o cidadão e as tecnociências, facilitando o diálogo com a coletividade acerca do desenvolvimento coletivo. Todavia, adverte Francisco de Assis Correia, a ética não deve ser entendida apenas como solução de problemas intelectuais, mas como aquisição de hábitos, de qualidade de caráter.”
Como vimos, não há, no momento, uma legislação específica que trate do assunto. Temos poucas normas esparsas que não dão a amplitude que o assunto merece. Enquanto isso não acontece, resta-nos discutir, pesquisar e aprofundar em relação ao tema, para que tenhamos o entendimento completo da questão no menor tempo possível.
Ressalto uma advertência constante do livro da Dra. Tereza: “A sociedade tem o direito de se proteger dos cientistas irresponsáveis.”