O gesto obsceno, imbecil e despropositado de alto assessor da presidência da República chocou a todos, devido à sua impertinência e insensibilidade em relação ao momento em que foi praticado: “dois dias depois da maior tragédia de que se tem notícia na aviação comercial brasileira, quando centenas de pessoas ainda enxugavam as lágrimas, outras enterravam seus mortos e muitos ainda viviam o desespero de encontrar e identificar o marido, a mãe ou o filho querido”, nas palavras de Ferreira Gullar.
Não sei o que foi pior: o gesto propriamente dito ou a tentativa de explicação.
Fiquei pensando no significado daquele gesto e na envergadura da autoridade governamental que o praticou. Fiquei pensando se outras autoridades também não têm a mesma reação, na sua “privacidade”, em relação a importantes assuntos que tiram o sono de muitos. Fiquei pensando se as autoridades que lidam com a saúde brasileira, num lampejo de empolgação privada, teriam a mesma idéia daquele assessor especial. Confesso que parei de pensar, pois poderia me decepcionar ainda mais.
A imensa maioria das Santas Casas agoniza em meio a dívidas com fornecedores, médicos, folha, encargos, bancos e com o governo. Os valores repassados pelo SUS continuam a nem fazer cócegas nos custos. Não pense o caro leitor que será pagando R$7,50 (sete reais e cinqüenta centavos) por uma consulta médica que o governo federal irá agregar qualidade ao atendimento (o custo da consulta para o hospital é de R$21,00 – vinte e um reais). Não será.
Não vemos o governo agir de forma contundente, determinante e eficaz, como a maioria das situações exige. Observe o leitor que não falo de partidos políticos, mas de governo, seja ele qual for, pois o assunto transcende siglas. O diabo é que o tal problema nunca começa a ser resolvido. Portanto, não há como acabar de resolvê-lo. Por isso, hospitais reduzem atendimento e alguns fecham suas portas, pois não agüentam mais a defasagem e o contexto em que atuam. Como “prêmio”, os dirigentes de entidades sem fins lucrativos recebem citações judiciais de processos que cobram fortunas. O Judiciário, como mero aplicador das leis elaboradas pelo Legislativo, como a que prevê a desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, bloqueia patrimônios, penhora contas bancárias e aplicações de toda uma vida de pessoas que se dedicaram de corpo e alma à causa da filantropia e da saúde, mas que sucumbem, literalmente, em todos os sentidos. É quase um top, top, top. Agora para valer.
É verdade que há governos que tentam, de alguma forma, socorrer o setor em que atuamos. Mas são ações pontuais, únicas, isoladas, e não conseqüência de planejamento estratégico específico, amplo, profissional e que implicaria em mudança de postura e de paradigma em relação a questões com o qual convivemos há décadas. Eu sou novo nas áreas da saúde e da filantropia, nas quais atuo há pouco mais de 17 anos. Tenho amigos e conhecidos que nelas estão há mais de 40 anos e relatam que a situação nunca melhorou de vez. Nossos hospitais (os que trabalham com o SUS) não sabem o que é viver com qualidade há muitos anos. Apenas sobrevivem.
Para fugir do assunto técnico, bandeamos para as manchetes das ONGs pilantrópicas, que existem e maculam a imagem das sérias, que têm culpa no cartório, sim, ao não reagirem à altura em relação àquela categoria na qual também são incluídas pela inércia de não ajudarem na separação do joio do trigo.
Ainda para fugir do assunto, podemos discutir formas mirabolantes de esconder o déficit da Previdência, alocando números numa rubrica diferente da habitual e, como num passe de mágica, quase zeramos uma conta que incomodava a todos. A título de curiosidade, prevê-se que as entidades sem fins lucrativos participem com algo em torno de 17% do total dos incentivos do governo federal em 2007, o que coloca o setor em segundo lugar no ranking, liderado pelas micro e pequenas empresas (25%) e seguido pela Zona Franca de Manaus (11,5%).
Enfim, assunto é o que não falta para desviarmos a atenção dos nossos problemas agudos.
O ministro da Saúde, em encontro realizado em São Paulo em abril passado, disse que “O Estado sozinho não resolverá a questão da medicina no Brasil” e que a saúde deve ser tratada como investimento e não como custo. Ele pediu apoio da iniciativa privada para ajudar a solucionar os problemas da saúde no Brasil. Pois é, ministro, as entidades do Terceiro Setor estão tentando. Mas está difícil.
A Santa Casa de Santos foi fundada em 1543, a de Salvador em 1549 e a de Olinda em 1560, e ainda tem gente que acha que as entidades privadas não podem atuar na área da saúde, a não ser de forma complementar. Aliás, o que seria atuar de forma “complementar”? Uma entidade privada sem fins lucrativos, uma Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, por exemplo, que mantém o único hospital de um município, atua de forma “complementar”? Cadê o governo municipal que não provém saúde à população, como manda a Constituição Federal? Se o governo não consegue criar um hospital naquele município, será que aquela Santa Casa está fadada a fechar sob a alegação de que ela não pode atuar de forma substitutiva do governo, mas apenas “complementar”? Ora, poupem-me.
Vemos o governo colocar diversas atividades, essenciais ou não, nas mãos da iniciativa privada, que sabe fazer e faz melhor que ele, em razão de diversas circunstâncias, o que não desnatura nem compromete sua eficiência. Um município paulista foi além e transferiu a administração municipal para uma empresa criada por lei aprovada pela Câmara. Porque a saúde, que talvez seja a área que mais possui entidades experientes e centenárias na ativa, não pode? É claro que pode. Basta a sociedade querer e assim exigir. É a sociedade que move a democracia. Ou a democracia que move a sociedade. Como queiram. O Supremo Tribunal Federal, no início de agosto, indeferiu a liminar requerida em 1998 para suspender alguns artigos da lei federal que criou o título (que evoluiu para um “modelo”) de OS – Organizações Sociais. Considerou o ministro Gilmar Mendes que a lei em questão “institui um programa de publicização de atividades e serviços não exclusivos do Estado, como o ensino, a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico, a proteção e preservação do meio ambiente, a cultura e a saúde, transferindo-os para a gestão desburocratizada a cargo de entidades de caráter privado e, portanto, submetendo-os a um regime mais flexível, mais dinâmico, enfim mais eficiente”.
E assim vamos, aos trancos e barrancos, com toda a insegurança jurídica que nos rodeia. É verdade que o mesmo STF, no mesmo agosto, decidiu pela proibição de a administração pública contratar pessoas por meio da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Podem fazê-lo apenas pelo regime jurídico único, o que poderá inviabilizar a criação da tal Fundação Pública de Direito Privado, alardeada pelo governo federal, pois este ponto é um dos mais importantes do projeto. E por aí vamos de novo.
Por isso precisamos de pessoas corajosas que saiam da sua zona de conforto, que inovam e criam mecanismos, mesmo que não tenham certeza de nada. Está aí a experiência do estado de São Paulo com as entidades sem fins lucrativos que não me deixa mentir. A lei estadual de São Paulo que criou a qualificação de OS foi publicada apenas 19 dias após a lei federal, que ainda está na berlinda jurídica. Isso em 1998. O município de São Paulo trilha o mesmo caminho, além de várias dezenas de outros deles. O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que a lei municipal de São Paulo que criou a qualificação de OS é constitucional. E assim caminha a humanidade.
O modelo do Estado brasileiro está falido. Por vários motivos. E isso não aconteceu mês passado. Faz tempo. Só não vê quem não quer ou compromissos corporativos não permitem. Precisamos de alternativas de modelos. E que sejam viáveis. Precisamos que a sociedade civil organizada participe e atue efetivamente na criação das políticas públicas. Não há mais como a sociedade esperar por milagres governamentais que rareiam cada vez mais.
Clóvis Rossi escreveu que “o Estado brasileiro serve para dar expediente mas não para resolver problemas.” Alguém precisa resolver os problemas. E a sociedade civil organizada está ajudando nisso de forma eficiente. Ainda falta muito. Mas precisamos começar, ao invés de simplesmente fazer digressões acéfalas e gestos grosseiros.
Josenir Teixeira
agosto/2007
artigo escrito para a revista Notícias Hospitalares