Tem sido travada uma guerra diplomática entre a Embaixada de Cuba no Brasil, o Estado do Tocantins e o Conselho Federal de Medicina. E tudo isso por causa da insensatez de algumas pessoas.
Tudo começou quando cidades distantes dos grandes centros necessitavam de auxílio técnico, no caso médicos, para que a população ali residente não morresse sem nenhum tipo de atendimento.
Estamos falando especificamente de algumas cidades situadas no interior do Estado do Tocantins. A revista Veja, na edição 1620, de 20.10.1999, trouxe o assunto à baila. Retratou ela que alguns hospitais, como o de Arraias, Augustinópolis e Miracema, ficaram anos fechados porque não haviam médicos interessados em trabalhar naquela região. Disse a revista que eles só foram reabertos porque médicos cubanos se interessaram pela assistência às pessoas que habitavam naquela região. Na verdade, tinham alguns médicos clínicos na região, só não haviam especialistas em áreas estratégicas, como anestesistas, por exemplo.
Os médicos cubanos vieram para o Brasil, mais especificamente para Tocantins, por várias razões. Dentre elas, podemos destacar motivos missionários, estudo da ciência e também, porque não, interesse em ganhar dinheiro, o que, salvo melhor juízo, não é proibido no Brasil.
Tudo ia bem: – Para a população, que há anos não via um médico especialista sequer, que passou a contar com assistência de pessoas que tinham formação específica para aquele atendimento. Sabemos que o médico cubano tem grande vocação para desempenhar as funções da figura antiga do médico de família, aquele que põe a mão no paciente e cuida dele com poucos recursos tecnológicos, diferentemente do médico mais “moderno” que se acostumou a não encostar a mão no paciente, deixando que máquinas realizassem aquele trabalho. – Para o Estado do Tocantins, que mantinha (e mantém) aquela situação porque, assim, pode proporcionar assistência especializada na saúde e, consequentemente, cidadania à sua população, cumprindo mandamento constitucional. – Para os médicos cubanos, que podem aplicar na prática a teoria obtida na sua formação e são razoavelmente remunerados por isso. A revista Veja deu conta que os médicos, em Cuba, recebem salário de US$25,00, cerca de R$50,00. Em Tocantins, eles recebem aproximadamente R$3.500,00.
Um belo dia, o Conselho Federal de Medicina levantou a lebre: os diplomas dos médicos precisavam ser revalidados numa universidade brasileira para que pudessem aqui atuar. Certíssimo, além de absolutamente legal. Entretanto, ao invés do Conselho Federal de Medicina apoiar e ajudar na tal revalidação, oportunidade em que poderiam, inclusive, constatar a expertise dos médicos cubanos, denunciou a contratação daqueles médicos ao Ministério Público, pedindo o cancelamento dos convênios. O Presidente daquela entidade disse, segundo a revista Veja, que “não há motivo para trazer médicos de fora e tirar o emprego dos profissionais daqui.”
Sem dúvida, trata-se de manifestação extremamente cômoda e desassociada de maiores repercussões com a inoperância dela.
O jornal da Associação Médica Brasileira do 1º trimestre deste ano trouxe a informação que membros da diretoria da AMB e do CFM representaram o Brasil na Confederação Médica Latino-Americana e do Caribe realizada em dezembro/1999 na Colômbia. Segundo aquele jornal, a delegação brasileira, ‘apoiada pelos demais países’ participantes, “sugeriu e teve aprovação da Assembléia para que fosse enviada aos governos de Brasil e Cuba uma moção repudiando a contratação de médicos cubanos por serviços públicos e privados no Brasil.”
O mesmo jornal trouxe os seguintes dados estatísticos: 61,3% dos médicos brasileiros residem nas capitais; a região Sudeste abriga 59,5% dos médicos em atividade; a região Nordeste 16,8%; a Sul 14,3&; a Centro-Oeste 6,3% e a Norte 3,2%.
Mesmo diante destes dados, o CFM e a AMB ainda são contra a atuação dos médicos cubanos no Brasil. Caberia neste momento repetir a pergunta que a revista Veja fez no final da sua reportagem: “Por quê faltavam médicos brasileiros nas cidades miseráveis que agora estão sendo atendidos pelos cubanos?” E eu acrescento: onde estavam os médicos brasileiros, formados nas nossas grandes cidades, que não queriam aventurar-se nas regiões distantes do nosso País para atender a seus compatriotas? Nossos médicos estavam preocupados em prestar auxílio aos conterrâneos residentes no interior do Tocantins? Se estavam, porque os hospitais das cidades aqui citadas, e mais algumas, ficaram fechados por tanto tempo por falta de médicos?
O jornal da AMB traz a informação de que as entidades médicas entendem que não adianta deslocar residentes para locais onde “não existam estrutura acadêmica hospitalar , de moradia, transporte e salário dignos.” Mais à frente , o jornal reproduz fala do Presidente da AMB dizendo que “para uma boa assistência à saúde, é fundamental uma infraestrutura adequada.” O Presidente do CFM posicionou-se sobre a entrada de médicos estrangeiros no país dizendo que “essa medida é um equívoco do governo”.
Muito bem. A discussão sempre é válida. Mas ela só é eficaz se acompanhada de atitudes práticas. Ao invés de tantas reuniões e congressos, poderiam as entidades de classe fomentar alguma forma que encorajasse médicos brasileiros a se deslocarem para aquelas regiões para atender a população dali?.
Uma coisa me parece óbvia: não podemos deixar a população sem atendimento médico enquanto burocratas ficam em seus gabinetes com ar condicionado discutindo quem é que pode e quem é que não pode prestar auxílio aos brasileiros que moram em locais distantes.
A tal moção aprovada no congresso que já citei diz que “o Brasil possui número de médicos mais que suficiente para atender a demanda, com qualidade inquestionável, bastando que os contemplem com uma política de interiorização baseada numa remuneração digna e boas condições de trabalho”. Pergunto: porquê o brasileiro tem essa mania estúpida e comodista de esperar que o Governo faça tudo por ele? Por quê as entidades médicas, principalmente o CFM e a AMB, não incentivam, por elas próprias, a ida de médicos brasileiros (que são tantos) para aquelas cidades? Por quê tais entidades não ajudam a criar as condições necessárias para que isso aconteça? Por quê elas não ajudam a descentralizar o ensino, com a eventual instalação de campus universitários naquelas regiões?
Parece muito cômodo e egoísta ficarmos criticando e escrevendo posições doutrinárias e corporativistas no papel, enquanto há brasileiros sem nenhuma assistência médica especializada contraindo doenças que há muito já foram erradicadas no resto do mundo e no próprio Brasil. E pior: alguns cidadãos estão morrendo por causa disso.
Um pouco de ação e menos falatório não fariam mal a ninguém. Pelo contrário.
Dr. Josenir Teixeira é assessor jurídico da Pró-Saúde e advogado em São Paulo.
Felizmente, apesar de todas as reclamações, o programa Mais Médicos persiste.