O sinal fecha. Os carros se aglomeram. A imagem refletida no vidro “filmado” revela uma face triste, marcada pela desesperança. Olhos serenos, lábios machucados pelo frio e alma áspera completam a figura de uma criança, que, com o passar dos dias, observa sua infância ser cruelmente sacrificada. O reflexo de ontem, não é o mesmo de hoje. A criança cresceu. Virou vagabundo.
Após refletir sobre a cena acima descrita, peço ao leitor a análise de tal situação sob outra ótica:
O sinal fecha. Os carros se aglomeram. A imagem refletida no vidro “filmado” revela uma face pueril, marcada pela ingenuidade. Olhos serenos, movimentos desatentos e desencontrados completam a figura de uma criança, que, involuntariamente, desperdiça seus talentos na luta diária pela sobrevivência. O reflexo de ontem, não é o mesmo de hoje. A criança cresceu. E muitas oportunidades se foram.
Pergunta-se: o que mudou? A cena é a mesma. No entanto, a mudança de paradigma revela uma esperança – até então oculta para aqueles que, maculados pelo vício do pessimismo, enaltecem as mazelas e as necessidades. Não se trata de “maquiar” a realidade.
A valorização dos talentos e das possibilidades supre, naturalmente, as carências. Senão vejamos: ao enaltecer as aptidões de uma criança, tratando-a como sujeito de direito sob a peculiaridade de pessoa em processo de desenvolvimento e não como trombadinha-futuro-vagabundo, abre-se uma oportunidade única para que esses talentos, uma vez despertados, sejam capazes de afastá-la da nefasta vida de peregrinação pelos semáforos da cidade.
Arrisco mais uma provocação. Lugar de trombadinha é na FEBEM. Lugar de criança é na escola. Novamente, indago ao leitor: o que mudou? A cena é a mesma. As possibilidades são as mesmas. No entanto, o paradigma é outro.
Não devemos tratar as crianças de acordo com o que elas serão amanhã, mas sim de acordo com o que elas são hoje – crianças. Não imagino a minha infância sem as incansáveis tardes de brincadeiras pelo bairro. Por sorte, as circunstâncias me garantiram o direito de brincar – o direito de correr, de jogar bola com os amigos, de andar de bicicleta pelas ruas, de viver a vida sem me preocupar com o almoço.
Frise-se, entretanto, que milhares de crianças no Brasil não possuem o direto de brincar – direto este expresso em nosso ordenamento jurídico no artigo 16, inciso IV do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. São crianças obrigadas a serem adultas – obrigadas a sufocarem sonhos e sorrisos.
Recentemente, ao ensinar um garoto a construir uma “bola de meia”, fiquei pasmo com a alegria despertada por aquela brincadeira. E para minha felicidade, a cena se repetiu diversas vezes naquela tarde, à medida que garrafas PET se transformavam em aeronaves espaciais, carros de corrida, barcos de pesca etc.
Aqueles meninos e meninas deixaram de ser (para mim) crianças carentes e se tornaram crianças cheias de talentos e possibilidades, crianças, cuja imaginação era capaz de edificar pontes sobre o abismo da desigualdade social.
Desde então, entendi a magnitude do direito de brincar. Entendi que não existem crianças carentes, mas crianças desestimuladas, ignoradas pelo mundo adulto e contidas pela incoerência de uma sociedade, que chega ao cúmulo de promover cirurgias plásticas em animais de estimação.
Proponho, assim, uma mudança radical de paradigma. Uma revolução na concepção de criança carente, que irá substituir as grades da FEBEM[1] – que definitivamente não é lugar de criança – por bolas de futebol, carrinhos e bonecas, suplantando os semáforos, as carvoarias e os roçados, pelas escolas, gincanas e bicicletas. Uma revolução capaz de desenvolver os talentos, afastar as drogas e aproximar crianças e adolescentes dos seus sonhos.
Ser criança é um direito fundamental de todo ser humano, tão importante quanto o direito à vida. Por isso, eu grito: viva o pião, viva o corre-cotia! É hora de entender que criança, deve ser tratada como criança. Grite, plante essa semente, mude de paradigma.
Autor: Felipe Andrade
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Felipe Andrade é estudante de Direito da PUC-SP,
idealizador do Projeto Gentileza e membro voluntário
da Fundação SOS Mata Atlântica.
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[1] Apesar de FEBEM significar Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, todos nós sabemos que tal instituição é facilmente confundida com uma penitenciária, deixando claramente de cumprir sua função de promover o saudável desenvolvimento das crianças e adolescentes internados em suas unidades.