A maioria dos processos disciplinares propostos contra médicos perante os Conselhos Regionais de Medicina nascem de discussão entre eles e os pacientes.
O paciente (seu responsável ou seus parentes), ao discutir com o médico, vê no processo disciplinar, judicial ou criminal, uma forma de “vingança”, onde ele irá questionar sua técnica, competência ou até mesmo sua falta de educação.
O CREMESP editou o “Guia da Relação Médico-Paciente” na tentativa de traçar regras ou sugerir comportamentos dos médicos no trato com os pacientes, observando a necessidade de haver confiança, diálogo franco e respeito mútuo entre eles. Diz o manual, na apresentação: “Se, por um lado, dominamos exames precisos e procedimentos complexos, realizamos transplantes e deciframos genes, por outro temos, por vezes, deixado de lado aspectos elementares da relação humana.”
Muitos mal-entendidos entre médicos e pacientes poderiam ser evitados. Sei que é muito fácil dizer isso sem a pressão psicológica do momento. Aliás, as discussões acontecem justamente porque pelo menos um dos interlocutores está fora do seu normal. Não fosse isso, não haveria discussão, mas apenas diálogo.
Entretanto, o médico tem que ter consciência e controle suficientes para saber se portar de maneira profissional e educada diante do paciente, pois, afinal de contas, o maior prejudicado sempre é ele. Também sei que é difícil pedir domínio de si e paciência numa conversa com um paciente que não entende (ou não quer entender) as orientações médicas ou que as questiona sem razão, principalmente quando se está pós-plantão de 24 horas, por exemplo. E fica muito mais difícil se o médico fez ambulatório de 12 horas antes desse plantão. E por aí vai.
O médico também deve saber que, do outro lado, seu paciente, leigo em medicina, preocupado com sua saúde, com receio de inúmeras conseqüências que ele “ouviu falar” e, principalmente, com medo da morte, está ávido por informações precisas, mastigadas e devidamente traduzidas sobre o que está acontecendo com seu corpo, pois ele não é obrigado a conhecer o significado de termos técnicos que constituem o dia-a-dia do médico. E, pior, quando o paciente insiste em perguntar sobre determinada passagem que não entendeu, por diversas razões, o médico acaba por desabafar e exceder seu linguajar, esquecendo-se que, ao paciente, interessa apenas a resposta à pergunta que fez.
O médico clínico geral carioca Alex Botsaris relata no livro “Sem Anestesia, o Desabafo de um Médico” (editora Objetiva) seu drama pessoal ao perder o filho após internação de 10 dias em UTI neonatal. Botsaris resume bem o assunto ao responder à seguinte pergunta feita pela revista Veja (19.12.2001 – páginas amarelas): “Qual o pior sofrimento de quem está no papel de paciente? – É a sensação de isolamento. Quando qualquer pessoa fica doente – e não precisa ser uma doença séria, basta que você se sinta ameaçado de alguma forma – ocorre uma espécie de regressão. Começam a funcionar mecanismos que são um pouco infantis. Isso acontece porque você fica diante do desconhecido. É sempre uma situação dramática, principalmente quando o doente é uma criança. A sensação de abandono é terrível. Tomo mundo precisa de uma mão num momento desses, mas o médico é cada vez mais incapaz de dar essa mão.”
Quando isso acontece, o paciente acaba indo “procurar seus direitos”. E diz o ditado que “quem procura acha”. Sempre se encontra uma evolução não realizada pelo médico, um medicamento não receitado, um cuidado não prescrito, uma preocupação não estampada, um prontuário deficitário de informações, uma letra impossível de se traduzir, enfim, ao se analisar papéis frios, longe do calor da discussão, não raramente encontramos desacertos, enganos, omissões, orientações incompletas, incoerências clínicas e uma série de deslizes cometidos pelos médicos, deficiências que ensejam processos disciplinares, judiciais e criminais.
O médico deve ter cuidado, também, com sua linguagem, principalmente porque nossa espontaneidade é nativa.
Para ilustrar esse assunto, menciono processo julgado em outubro de 2002 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para que os médicos saibam como os juízes enfrentam casos que os envolvam.
Uma paciente foi internada com suspeita de cisto hemorrágico ou abscesso no tubo ovariano. Em visita ao seu leito, a médica lhe perguntou, na presença de outros pacientes e funcionários, se o seu marido a havia traído, pois aquele abscesso era proveniente de uma relação extraconjugal. Não satisfeita e para deixar a conversa ainda mais clara, a médica disse à paciente que o seu marido tinha “pulado a cerca”.
Como a paciente sentiu-se constrangida e humilhada em público, pois a médica teria exposto indevidamente sua vida íntima, ela ajuizou ação de indenização por danos morais contra o hospital onde se passou o fato. De nada adiantou o hospital alegar, na defesa, que tais perguntas eram de praxe, frente a tal diagnóstico. O Tribunal deu ganho de causa à paciente e determinou que o hospital lhe pagasse R$10.000,00.
O Desembargador gaúcho afirmou em sua decisão: “Penso que pouco importa se a afirmação da médica correspondia tecnicamente à verdade da forma de contágio ou não. … De qualquer forma, o que está claro é que a forma escolhida para informar a paciente está muito longe do que se espera eticamente de um médico. … Independentemente da precisão do diagnóstico, a conduta com que agiu a preposta do réu (a médica) desrespeitou o pudor da autora. Guarda o senso comum a idéia de que informações de tal tipo jamais poderiam ser prestadas na presença de terceiros, submetendo a paciente a humilhação junto a colegas de tratamento. ”
Obviamente que o hospital deve ter ajuizado ação contra a médica para ser ressarcido de tal valor, pois, afinal, foi o ato da médica que desencadeou a condenação.
Como se vê, cuidado e caldo de galinha continuam não fazendo mal a ninguém.