Quando li a Medida Provisória (MP) 446, em vigor desde 10.11.2008, que “dispõe sobre a certificação das entidades beneficentes de assistência social, regula os procedimentos de isenção de contribuições para a seguridade social, e dá outras providências”, veio-me à mente o livro Estação Carandiru, de Drauzio Varella. Lembrei-me de trechos onde ele relatou situações em que simplesmente não havia saída ou as opções não eram nada boas. Um homem, por exemplo, deveria escolher entre assumir um assassinato ou ser sodomizado por vinte outros homens. Recordei-me do capítulo em que o médico escreveu sobre o “laranja”, referindo-se a ele como “o personagem patético que segura a bronca alheia”. Ele exemplifica essa passagem da seguinte forma: “Alfinete (um branquinho magro que fez carreira nos semáforos da avenida Paulista), é o seguinte: no final da tarde vai aparecer um finado na rua Dez do quarto andar. Você desce para a Carceragem e se apresenta. Diz que o cara ofendeu a senhora tua mãe que está no hospital, cuidando da filha viúva.” Eis o resultado da atuação do laranja: “Alfinete assinou a confissão quando havia cumprido dois anos e três meses de uma pena de quatro. Quitou a dívida com o traficante, mas custou-lhe doze anos a mais de pena a cumprir.”
A MP traz previsões antagônicas, em que coisas muito boas e muito ruins disputam o mesmo espaço. Ficamos ávidos por adjudicar as boas e desprezar as ruins. Mas isso não é possível, pois elas vieram num pacote e você tem que ficar com ambas.
Guardadas as devidas proporções, por óbvio, é essa a situação das entidades sem fins lucrativos até então portadoras do CEBAS (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social), que não existe mais, expedido pelo CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social), órgão subordinado do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em relação à MP.
Grande parte das entidades sem fins lucrativos viram na MP a solução de enorme problema que afligia seus dirigentes, pois, dentre suas travessuras, corrigia algumas injustiças. Não são novidades para ninguém as agruras pelas quais passam várias entidades em relação ao cumprimento da gigante e custosa burocracia legal que as obrigava a encaminhar uma série de documentos ao CNAS a cada três anos. Também não é novidade que o CNAS tinha em tal atividade cartorial grande dispêndio de tempo e energia, relegando, por vezes, as treze outras atribuições que a Lei Orgânica da Assistência Social lhe imputa. É conhecido o altíssimo número de processos de pedidos de concessão e renovação de CEBAS (em torno de oito mil) que tramitava no CNAS e em relação aos quais não havia perspectiva de solução a curto e médio prazos.
Essa situação foi ainda mais agravada em razão da Súmula 8, do Supremo Tribunal Federal, que interpretou a Constituição Federal e confirmou que o prazo decadencial (ou prescricional, para alguns doutrinadores) para constituição de créditos tributários de algumas contribuições é de cinco anos e não dez, conforme vinha sendo defendido pelo governo.
O governo federal imaginou resolver esse imbróglio por meio da edição da MP em questão. E o fez instituindo anistia para as entidades que possuíam pedidos de renovação de CEBAS pendentes de julgamento no CNAS. Estes processos, todos eles, foram fulminados pela MP e efetivamente resolvidos com o seu deferimento. Os pedidos de concessão de CEBAS pendentes de julgamento pelo CNAS serão remetidos aos ministérios inerentes à sua área de atuação. As representações, em grande parte de autoria da Secretaria da Receita Federal do Brasil, e que tinham por objetivo questionar a concessão ou renovação de CEBAS às entidades, ficaram prejudicadas, ou seja, na prática, foram arquivadas. Sem dúvida, algumas previsões constantes da MP são de grande valia para as entidades do Terceiro Setor. Porém, a anistia, inclusive em relação àquelas entidades que estão sendo fiscalizadas por eventual desvio de recursos, causou constrangimento em todos e está sendo alvo de grande ira de muitos, que já se articulam para reavaliar seu texto, apresentar emendas visando retirar artigos ou modificar sua redação ou ainda questionar sua validade jurídica no Supremo Tribunal Federal.
Como nada vem de graça, há outras previsões na MP que alterarão a rotina, o desenvolvimento das operações e o funcionamento das entidades sem fins lucrativos e que contêm inconstitucionalidades.
Na edição passada desta revista trouxemos algumas questões jurídicas em relação ao Projeto de Lei (PL) 3.021/08 e que foram reproduzidos na MP 446, até porque o texto desta nada mais é do que a redação daquele acrescido da anistia. Da mesma forma natural com que o PL foi proposto, a MP retratou todos os seus pontos, inclusive as mesmas inconstitucionalidades, como se, por exemplo, a impossibilidade de tratamento da imunidade como isenção já fosse coisa do passado e a determinação de cisão das entidades, gritante, absurda e intolerante infringência constitucional, estivesse de acordo com o ordenamento jurídico.
O que falar da perda da legitimidade do CNAS na representação da sociedade civil? E como fica o mandamento constitucional que traçou como uma das diretrizes do desenvolvimento das ações governamentais na área da assistência social a “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”? Simplesmente ignoramos esta previsão constitucional? É a Constituição Federal, que alguns dizem ser a maior e mais importante regra jurídica deste país, que determina tal participação. Deixemos isso de lado? No lugar das organizações representativas da população entra o Poder Executivo, que possui, dentre suas atribuições, a de “instituir tributos”. É este ente político, que possui esta atribuição, que irá verificar e decidir se uma entidade pode ou não deixar de pagar impostos. É, no mínimo, uma situação esquizofrênica.
O texto da MP é a reprodução do PL 3.021/08 acrescido da anistia. Como a tramitação do PL no Congresso Nacional estava “muito lenta”, o Executivo arranjou um jeito de “acelerar” sua aprovação, indiretamente. E assim se fez. E mais uma vez, quem pagou o pato foram as entidades, pois praticamente toda a mídia (que é surda de um ouvido e descumpre seus próprios manuais, que são lembrados somente pelos ombudsmen nas colunas dominicais) aproveitou a oportunidade para, de novo, achincalhar-lhes linearmente, como se todas elas fossem descumpridoras de seus deveres e coubessem dentro de um maldito balaio rotulado de “pilantrópico”, palavra enfadonha que retrata a incapacidade governamental de fiscalizar.
As entidades foram usadas como “boi de piranha”, como diz a expressão pantaneira. A promessa de diversos representantes governamentais, em público, de retirada ou mudança de redação do artigo sobre a cisão das entidades, por exemplo, não foi cumprida. De novo. Outras adequações prometidas desde março/2008 não foram realizadas. De novo. E o governo? Lavou as mãos. Disse que fez a sua parte e que o “problema”, agora, era dos senadores. E assim caminhamos … Já há pelo menos duas ações civis públicas contra a MP e o Judiciário suspenderá os seus efeitos, principalmente quanto aos artigos finais.
Pela segunda vez na história (a primeira foi em 1989), uma MP foi devolvida pelo Senado Federal ao governo, agora sob o argumento de que ela conteria infrações à Constituição Federal. O “trem da alegria” da “pilantropia”, apelidado por alguns, não passou. Sim, é assim que seu problema, caro leitor dirigente de uma entidade sem fins lucrativos, é vista. Novamente, as entidades são covardemente desmoralizadas perante a opinião pública.
Caro leitor, não se acomode com a usurpação da Constituição Federal, nem em proveito próprio, pois ninguém pode alegar a própria torpeza em seu benefício. Você, dirigente de entidade, aceita pacificamente a substituição de um órgão paritário, composto por representantes da sociedade civil e pelo governo para conceder ou renovar algo que diz respeito diretamente à sua instituição, que é privada? Infelizmente, pelas manifestações que (não) tenho visto, sim. É a essa conclusão de conformismo a que se chega.
E, de novo, não vemos ações concretas, efetivas e eficazes por parte das entidades sem fins lucrativos na defesa de seus direitos. Aliás, vemos entidades grandes, tradicionais, compostas por ícones da sociedade e com acesso direto ao rei, resolveram suas questões no palácio, ignorando o segmento do qual fazem parte. Dane-se o Terceiro Setor. O problema delas foi resolvido e é isso o que interessa. A utopia da união das entidades continua. Aliás, não continua não, já é passado. Já é hora de eu parar de bater nessa tecla. E assim caminha o Terceiro Setor.
Afinal, qual é a conclusão sobre a MP 446? Reflita e conclua você, caro leitor.
Josenir Teixeira
26.11.2008