A gestão privada de hospitais públicos
Este assunto é recorrente e ainda não se tem definição nem posicionamento categórico (doutrinário ou jurisprudencial) sobre ele. Posições contrárias e a favor são externadas e ambas têm sustentação jurídica para existir.
Este assunto é recorrente e ainda não se tem definição nem posicionamento categórico (doutrinário ou jurisprudencial) sobre ele. Posições contrárias e a favor são externadas e ambas têm sustentação jurídica para existir. Tudo, porém, deveria se resumir em prol do melhor atendimento da população. Infelizmente, muito papel e tempo são desperdiçados num discurso virtual, sem se preocupar com a realidade do dia-a-dia enfrentada pelos pacientes que são obrigados a se socorrer do sistema público de saúde.
O preconceitoA ojeriza que se tem à concessão da gestão de serviços públicos à iniciativa privada, infelizmente, está diretamente ligada à maldita idéia de que as pessoas estão, sempre, preocupadas com seu próprio umbigo e que tal concessão seria apenas um sinônimo de corrupção. É uma praga. Não adianta. Está impregnado na cultura dos brasileiros.
A concessãoA concessão é a possibilidade de atribuição, pelo poder público à empresas ou entidades, da exploração e/ou execução de serviço ou obra pública, utilizando-se do bem público, sempre, claro, mediante contrato. Isso não quer dizer que o poder público simplesmente entrega ao particular a sua atividade constitucional. Quando uma entidade privada assume a gestão (administração, direção) de um hospital ela não assume o papel principal do serviço público de saúde. Este serviço é e continuará sendo de responsabilidade do ente político respectivo. O serviço continua sendo público, sem qualquer transferência para o particular. O professor de Direito Administrativo da PUC/SP Celso Antônio Bandeira de Mello[1], ao abordar a natureza dos serviços suscetíveis de serem concedidos ensina que Em rigor, por ser público e privativo do Estado, o serviço é inegociável, inamovivelmente sediado na esfera pública, razão por que não há transferência da titularidade do serviço para o particular. Só as pessoas de natureza pública podem ser titulares, ter como próprias as atividades públicas. Um particular jamais poderá reter (seja pelo tempo que for) em suas mãos, como senhor, um serviço público. Por isso, o que se transfere para o concessionário – diversamente do que ocorre no caso das autarquias – é tão só e simplesmente o exercício da atividade pública. A saúde não é serviço privativo do Estado e, ainda que fosse, não se transfere ao particular a atividade pública que é de titularidade e obrigação do próprio Estado, mas sim e apenas o seu exercício. Agilidade administrativaQuando um ente político entrega nas mãos de particulares a gestão de um hospital público ele não o está “privatizando”, mas sim profissionalizando sua administração, procurando agregar qualidade ao atendimento prestado à população. Procura-se utilizar uma entidade privada, que assim atuará, livre de procedimentos como concursos, licitações e outros formalismos que emperram e engessam a atuação dos entes públicos. A própria legislação traz mecanismos que possibilitam a sua flexibilização e permitem que o ente político lance mão de entidades privadas para gerirem suas atividades. Há alternativas legais para que as atividades essenciais públicas sejam melhor desempenhadas, visando minorar, pelo menos um pouco, a deficiência do atendimento da população, já tão ignorada pelos nossos entes políticos. Não estamos dizendo que não existem pessoas competentes na Administração Pública. Elas existem. Porém, por mais boa vontade que se tenha, nem sempre se tem a agilidade, presteza e rapidez que os serviços de saúde requerem.
A permissão da ConstituiçãoA própria Constituição Federal (art. 197) prevê que São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.” O art. 175, também da Constituição Federal, permite tal modalidade ao prever: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” A ressalva “sempre através de licitação” não é absoluta. A própria lei das licitações permite a contratação por meio do instituto da inexigibilidade de licitação. Tudo dependerá do caso concreto.
A participação do terceiro setor A tendência, cada vez maior, é a aproximação do setor público com entidades do terceiro setor, visando a colaboração de ambos em prol da população. Infelizmente, temos cabeças que pensam e agem contra tal aproximação, pois ainda nutrem o posicionamento retrógrado de que o Estado deve ser o pai de todos, o verdadeiro “big brother”, e que cabe exclusivamente a ele a divisão dos respectivos quinhões às parcelas da sociedade. Por outro lado, existem pessoas que têm pensamento mais moderno e mais adequado ao direcionamento mundial e que analisam o contexto da sociedade de forma mais eficaz.
O pioneirismo de TocantinsO estado do Tocantins foi pioneiro na utilização do permissivo legal de entrega da gestão de hospitais públicos à entidades privadas. Por meio da lei estadual 762/95, o então governador José Wilson Siqueira Campos autorizou o estado a “celebrar convênios de concessão de uso de bens móveis e imóveis pertencentes à rede hospitalar do Estado do Tocantins, para os municípios, entidades filantrópicas e associações sem fins lucrativos com o intuito de promover a descentralização das ações de serviço de saúde, conforme diretrizes do SUS”. Desde aquela época, a administração dos maiores hospitais públicos daquele estado esteve nas mãos de entidade privada, experiência que demonstrou acerto na escolha de tal modalidade de gestão. São PauloNão foi com outra intenção que o estado de São Paulo estabeleceu parcerias com instituições sem fins lucrativos, repassando a elas a administração de alguns de seus hospitais. O objetivo de São Paulo foi exercer sua função pública sem as amarras estatais. O então governador Mário Covas assim se posicionou acerca das organizações sociais no projeto de lei complementar que enviou (em fevereiro/98) à Assembléia Legislativa do estado de São Paulo: “Tais organizações (as sociais) representarão uma forma de parceria do Estado com as instituições privadas de fins públicos, caracterizando-se, ao mesmo tempo, como forma de participação popular na gestão administrativa. Não se trata, pois, de delegação de serviços públicos a pessoas jurídicas estranhas à Administração, mas sim do fomento a entidades prestadoras de serviços de saúde.” Tal atitude é apoiada pela doutrina jurídica. O saudoso magistrado paulista Hely Lopes Meirelles[2] ensinaque Serviço público é todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniências do Estado. … A regulamentação e controle do serviço público e de utilidade pública caberão sempre e sempre ao Poder Público, qualquer que seja a modalidade de sua prestação aos usuários. Mário Covas acabou promulgando a lei complementar estadual 846/98, em 04.06.1998, que dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais. O estado de São Paulo já cedeu catorze hospitais públicos à gestão da iniciativa privada, a saber:
Outra entidade que presta serviços de administração de estabelecimentos hospitais públicos ou privados é a Pró-Saúde Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar, que já administrou (e ainda administra) quase três dezenas de hospitais públicos nos seguintes Estados:
A tendência de parceria com entidades privadasO jornal Folha de São Paulo de 20.07.03 trouxe notícia da sucursal de Brasília informando que, na elaboração do PPA (Plano Plurianual) de 2004 a 2007, o governo federal teria decidido “concentrar investimentos públicos onde falta interesse à iniciativa privada.” Diz a matéria que “a construção e a administração de hospitais serão oferecidas à iniciativa privada”. O artigo reproduz a seguinte fala do chefe da assessoria econômica do Ministério do Planejamento, José Carlos Miranda: “Suponha que o Ministério da Saúde queira construir um hospital e não tenha dotação. Então, faz um consórcio entre uma construtora e uma empresa de administração hospitalar, elas vão ao mercado – o BNDES pode dar garantias se não tiverem recursos próprios – fazem o investimento e pode haver um contrato para construção e administração do hospital por 15 anos. O governo paga um ‘aluguel’, como se fosse o leasing de um carro”.
ConclusãoA parceria entre órgãos governamentais (de todas as esferas) e o terceiro setor é inexorável. É o modernismo de pensamento e de ação sobrepondo-se ao arcaísmo de modelos estatais ultrapassados e retrógrados. Algumas entidades privadas já estão preparadas para atender tal demanda de forma profissional, eficaz, correta, íntegra e com o objetivo de, juntamente com o governo, atender decentemente os demandantes de seus serviços. Tomara que pessoas com cultura de almanaque tenham o bom senso de, se não puderem ajudar, que pelo menos não atrapalhem. |