Holanda: primeiro país do mundo a legalizar o suicídio assistido para pôr fim ao sofrimento de pessoas portadoras de doenças incuráveis, ou, de forma mais simples, a eutanásia.
Na Holanda, além da vontade inequívoca (clara) do paciente, exige-se que o médico que assiste o doente ateste a conveniência daquele procedimento terminal. Depois disso, um órgão colegiado é que dará (ou não) a autorização para a prática da eutanásia.
O que se extrai disso é que os progressos da medicina, no sentido de aumentar ou reduzir o prazo de vida, devem levar em consideração a possibilidade de alguém decidir sobre sua própria morte, se a única perspectiva que se tem é o sofrimento até o fim.
Diferentemente, para alguns, o desejo de um paciente deixar o hospital para morrer em casa ou optar por deixar de tomar determinada medicação que prolongaria sua vida não poderia ser considerada como eutanásia, mas simples faculdade, em razão de determinado quadro clínico. Outros, porém, consideram as situações e as conseqüências como sinônimas. Vamos discutir este assunto em outro artigo, futuramente.
Vige, no estado de São Paulo, uma lei de 1999, promulgada pelo então governador Mário Covas, logo após tomar conhecimento de ser portador de câncer na bexiga, por coincidência(?). Diz a lei, textualmente, que é direito do usuário dos serviços de saúde (em SP) “consentir ou recusar, de forma livre, voluntária ou esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados.” Mais à frente, outro direito do paciente: “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida e optar pelo local de morte.”
A autonomia (faculdade de se governar por si mesmo) é uma propriedade inerente ao ser humano, que tem o direito de escolher seus valores, estabelecer suas normas e agir em conseqüência das decisões tomadas conscientemente. Invadir a autonomia seria, para alguns, violar um direito intrínseco e soberano do indivíduo.
O Código de Ética Médica (CEM) veda efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente, salvo em iminente perigo de vida. Veda ao médico, também, exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.
Genival Veloso de França, conhecido médico e professor de medicina legal dos cursos de Direito e Medicina da Universidade Federal da Paraíba, assim se posiciona sobre o assunto ao comentar o artigo 48 do CEM: “Se, apesar da objeção e recusa do paciente, o médico insistir no procedimento, ele está cometendo uma violação aos direitos constitucionais, uma afronta à dignidade humana e um desrespeito aos mais elementares princípios de civilidade, além de cometer o crime de constrangimento ilegal, previsto no artigo 146 do Código Penal. Só se admite o ato coativo do constrangimento ilegal, repito, em casos extremos de perigo de vida e quando o procedimento profissional for imperativo e inadiável.” (sic)
Continua o Dr. Genival: “Mesmo que a atividade médica seja reconhecida como necessária e os seus meios idôneos e moderados, isso não implica um poder excepcional sobre a vida e a saúde de uma pessoa. Ela tem o direito de resguardar sua liberdade e defender sua integridade física ou psíquica (princípios da autonomia). A medicina não é um valor que possa sobrelevar-se a todos os outros valores e subordinar a si todos os seus interesses. No momento em que ela esbarra nos direitos humanos, não pode ser considerada uma atividade legítima e necessária.”
Muito se falou (e se fala) sobre os “direitos do paciente”. Há, inclusive, livros a respeito do assunto. Alguns dizem que o paciente nem sempre tem que ‘obedecer’ o médico e fazer tudo o que ele pede. Entendo que a maioria do que se fala nessa linha de raciocínio é bastante razoável. Porém, qual a amplitude e a aplicação dessas teses? Com qual freqüência vemos algum paciente questionar os procedimentos médicos que lhe são oferecidos ou sugeridos? Até que ponto um paciente (pessoa que padece; está doente e sob cuidados médicos) tem capacidade ou estrutura (física e até mental) de, do seu leito, recusar ou questionar algum procedimento? Salvo raríssimas exceções e em casos isolados é que isso acontece. Mas está longe de ser uma prática cotidiana. Nem se diga que quando o médico é o paciente ele tem condições de fazer isso. Aliás, o médico doente é o pior dos pacientes, segundo os próprios.
Entendo muita confusão é feita em relação ao seja esclarecer o paciente sobre uma situação ou tratamento, isso sim, direito do paciente e dever do médico, e o que seja a possibilidade do paciente recusar a ministração de algum medicamento ou não aceitar a cumprir determinada orientação emanada do médico.
Não bastasse tudo isso, a lei paulista tem status de lei ordinária. Há legislação hierarquicamente superior à ela (lei complementar) que diz o contrário do que ela ‘autorizaria’. Não bastasse isso, a própria Constituição Federal, lei maior do Brasil, estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (art. 196) O direito à saúde é inerente à pessoa humana e constitui-se em direito público subjetivo.
O professor de medicina Irany Novah Moraes, também autor, já disse que “o médico deve ficar plenamente resguardado e não Ter outro interesse que não seja o da sobrevivência de seu paciente”. O Código de Ética Médica proíbe o médico a “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal”.
Não bastasse tudo isso, praticamente todas as normas que autorizam o paciente a recusar algum tratamento contêm a seguinte ressalva ao final: “desde que não ocorra iminente perigo de vida”.
O assunto é por demais complexo. Envolve paixões, crenças religiosas, aspectos éticos e científicos e até crendices esotéricas.
Por tudo isso, entendemos que a autonomia do paciente não é tão ampla quanto se propala e encontra restrições quando sua vida corre perigo. O inciso da lei paulista que autoriza o paciente a “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar sua vida.. ” é, salvo melhor juízo, inconstitucional, pois violenta norma hierarquicamente superior, além de violar a ética médica profissional.
O médico que estiver nessa situação deve cumprir o art. 66 do CEM e não se valer de qualquer artifício para abreviar a vida de um paciente, nem a pedido dele nem de seus responsáveis, sob pena de responder (até) por homicídio doloso.
Somente uma autorização judicial isentaria o médico de qualquer responsabilidade ao se atender um pedido do paciente neste sentido. Não digo que duvido que algum magistrado assim poderia determinar, pois já vimos de tudo no Judiciário. Porém, na atual situação em que se encontra a legislação, o entendimento dos tribunais a respeito do assunto e a indefinição da opinião pública (até mundial) entendemos muito difícil um juiz autorizar tal ato.
Quem viver verá.