Não é novidade para ninguém que a hipocrisia é a linha de conduta da sociedade brasileira em alguns assuntos. Algumas aberrações existem pura e simplesmente porque há verdadeira afetação dum sentimento louvável que não se tem. A sociedade não tem. Os políticos não têm. Nós não temos. Salvo, como sempre, as gloriosas exceções. Não há como explicar que brasileiros passam fome enquanto o Brasil bate recordes anuais de produção de grãos, que são exportados ao invés de irem para a barriga dos que têm fome. Mas isso é outra história. Vamos falar da saúde, que é o que nos interessa.
Talvez uma das maiores hipocrisias que temos no Brasil esteja justamente na Constituição Federal, ali escrita com todas as letras. Não se esqueça, caro leitor, que a Constituição Federal é a lei maior do país, hierarquicamente superior a todas. A própria manda-chuva. Diz o artigo 196 dela que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (eu grifei) Você já viu algo mais mentiroso e cruel que isso? Na prática, você já viu um pobre, assalariado, pai de família, conseguir ter acesso a recursos médicos de ponta ou ter acesso “igualitário”, como os ricos têm? Claro que há exceções. E ainda bem que elas existem. Mas compare os números das exceções com a população brasileira. Não lhe parece que há algo errado? E isso acontece todo dia, em várias cidades do Brasil, e nosso inconformismo com a situação não passa de uma exclamação e um menear lateral de cabeça diante daquela imagem que aclara a tela da televisão de 29 polegadas de nossa aconhegante sala de visitas.
A saúde custa dinheiro, por mais incrédula e surpreendente que essa afirmação possa parecer a alguns. Para manter ou recuperar a saúde de alguém é necessário recurso financeiro. Não basta amor, dedicação e atenção dos profissionais de saúde. Infelizmente. Custa manter número de leitos compatível com a necessidade de determinada população. Custa manter médicos suficientes para atender os pacientes. Custa comprar medicamentos e materiais. Custa manter equipe de apoio num hospital. E quando não se tem o maldito dinheiro para fazer frente a tudo isso a conseqüência é o precário e mal atendimento daqueles que não têm condição de pagar um plano privado de saúde. E o ajuntamento de várias pessoas que não têm como pagar um plano de saúde diante de um hospital (público, na maioria das vezes, ou filantrópico, que faz as vezes daquele) tem como conseqüência justamente a superlotação.
O intuito maior da Constituição Federal, no caso particular do artigo acima transcrito, é assegurar a todo cidadão, independentemente de sua condição econômica e social, o direito à saúde. Ela mesma já sugeria (desde 1988) que as ações e serviços públicos de saúde deveriam integrar um sistema único. Veio a legislação federal e criou o SUS, que tem como um dos seus princípios a conjugação de recursos financeiros da União, dos Estados e Municípios para que fosse possível a prestação de serviços de assistência à saúde da população. Não ria, leitor. É isso que está escrito na lei. Talvez a coisa não funcione assim na prática porque a legislação não deve ter considerado o fator “políticos” (e não ‘política’, que é coisa boa). Mais acentuadamente, neste ano eleitoral podemos ver o verdadeiro jogo de empurra-empurra com que é tratada a saúde da população. Não se procura dar efetiva assistência ao doente mas sim saber se aquele maltratado pela sorte é federal, estadual ou municipal, esquecendo-se que ele é, antes de tudo, brasileiro. Mas talvez estejamos querendo demais também.
Não podemos deixar de falar, também, dos médicos. Diz o Código de Ética Médica que “o médico deve empenhar-se para melhorar as condições de saúde e os padrões dos serviços médicos e assumir sua parcela de responsabilidade em relação à saúde pública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde.” (grifei) Vemos alguns profissionais preocupados com isso, mas, infelizmente, vemos outro número enorme destes que não estão nem aí com a saúde pública. Gastam seu tempo angariando pacientes particulares e procurando o credenciamento de convênios. Se estão certos? Responda você, leitor.
Vamos parar com filosofia e imprimir aspecto prático a este artigo, diante da efetiva existência do problema superlotação em vários hospitais. Veremos que o médico é aliado importantíssimo do hospital e da população nessa história, cabendo-lhe, conseqüentemente, grande responsabilidade.
Não há vagas
Acontecimento bastante corriqueiro. Diante disso, as pessoas responsáveis pelas várias direções de um hospital (administrativa, técnica, clínica, enfermagem etc.) devem acionar, por escrito e mediante protocolo, as respectivas autoridades de sua vinculação (ou não), do Executivo, Legislativo e Judiciário, os respectivos conselhos regionais, os órgãos de classe, os sindicatos, enfim, todos que tenham alguma parcela de responsabilidade em relação à inexistência de vagas num hospital, solicitando providências/soluções.
Ora, o problema não é da sociedade? Enganam-se aqueles que pensam que este tipo de problema é do Secretário de Saúde (Municipal ou Estadual) ou do Ministro. A responsabilidade é de toda a população. Jogar a culpa nas costas dos outros é fácil. Arregaçar as mangas, reunir forças, convencer a imprensa, motivar pessoas e efetivamente fazer alguma coisa em prol da população de determinada localidade é que é difícil. Dá trabalho. Gasta-se tempo. Não há remuneração. Aí é mais fácil ser da ‘oposição’.
De qualquer forma, as autoridades de todas as esferas políticas e públicas devem ser cientificadas da dificuldade de atendimento adequado da população, para que ninguém se exima da sua responsabilidade e fique preocupado em achar culpados, esquecendo-se de pensar numa solução para aquele problema.
Você que trabalha em hospital não esqueça: receber o paciente sem estrutura é melhor do que não receber, pois, ocorrendo a segunda hipótese, poderá haver a prática de crime de omissão de socorro.
O médico, que está atendendo vários pacientes nos leitos e a mais um sem número nas macas e cadeiras da recepção, deve assistir a todos usando seu bom senso e fazendo aquilo da melhor maneira possível, dentro das condições existentes no local e no momento, cumprindo determinação de seu código de ética. Agindo assim, estará cumprindo seu papel e imunizado contra conseqüências da responsabilidade civil, dependendo do caso concreto.
Transferência
Recurso muito utilizado, principalmente por aqueles que gostam de se livrar do problema, codinome para ‘paciente’, neste caso.
Quando o hospital precisa fazer uma transferência, inclusive por falta de resolutividade de sua capacidade operacional, ele deve consultar previamente o outro hospital sobre a existência de vagas, obtendo sua anuência para o que se pretende fazer. Colocar um paciente numa ambulância e mandá-la correr até outro hospital sem prévia concordância não é ajudá-lo. É, em alguns casos, ser co-autor de homicídio.
A responsabilidade pelo paciente transferido é de quem transfere e não de quem vai recebê-lo. Se a ambulância retornar, por qualquer motivo, permanece, por óbvio, a responsabilidade da origem.
O médico deve fazer relatório detalhado (e legível, de preferência) do quadro clínico do paciente para o outro colega, visando otimizar o seu atendimento. Além disso, o médico deverá explicar aos familiares ou responsável do paciente os motivos que justificam a transferência. Tudo isso deverá ser devidamente anotado (legível, sempre) no prontuário do paciente e no livro de ocorrências. Estas informações não devem ser ‘guardadas na memória’, até porque isso não acontecerá. E sabemos muito bem que o processo de transferência sempre está sujeito a dar algum ‘problema’. Nesta situação, nada melhor que um prontuário bem feito e que registre todas as ações dos profissionais de saúde para lhes dar segurança e paz no trabalho.
Talvez o leitor ache que este artigo está muito filosófico e o que ele sugere esteja muito longe de acontecer. Infelizmente, eu também acho. Nossa sociedade é por demais acomodada, submissa, complacente e até inerte. É verdade. E é assim por falta de educação e de acesso a informações que lhe permitam questionar inúmeras coisas e situações. Inclusive saúde. Entretanto, como disse Fernando Pessoa, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.