Nenhuma norma jurídica proíbe as entidades sem fins lucrativos de realizarem atividades remuneradas e nada as impede de obter resultado positivo (superávit) com elas.
O que as entidades sem fins lucrativos devem observar rigorosamente é a não distribuição do eventual superávit (e não lucro) entre os seus associados, empregados, dirigentes etc., mas a sua aplicação no cumprimento e consecução das finalidades definidas no seu estatuto.
Quem diz isso é o Supremo Tribunal Federal que, provocado para manifestar-se acerca da “possibilidade de prestação de serviços remunerados por entidade beneficente de assistência social” decidiu que “a circunstância da entidade … mesclar a prestação de serviços, fazendo-o gratuitamente aos menos favorecidos e de forma onerosa aos afortunados pela sorte, não a descaracteriza, não lhe retira a condição de beneficente”.
Pode haver superávit?
A existência de receita é condição absolutamente essencial e necessária para qualquer segmento da sociedade desenvolver suas atividades. Com o Terceiro Setor não seria (e não é) diferente. Para realizar as suas finalidades e se sustentarem as entidades sem fins lucrativos precisam de dinheiro, direta ou indiretamente.
As entidades do Terceiro Setor podem e devem desenvolver atividades remuneradas para aplicar o fruto delas em prol do cumprimento e expansão dos seus objetivos.
A própria legislação aplicável ao Terceiro Setor prevê a possibilidade de existência de receita. Não fosse assim, como seriam aplicados os conceitos de imunidade ou isenção tributárias?
A Constituição Federal proíbe a “instituição de impostos sobre rendas, serviços e patrimônio” das entidades. Ora, como “rendas, serviços e patrimônio” existiriam se não fossem obtidas, prestados ou adquiridos? O resultado material decorrente da ação de tais verbos é só um, invariavelmente: dinheiro. A sobra da subtração da despesa da receita é o resultado, ou, em outras palavras, o excedente ou o superávit, palavra técnica utilizada para identificar o “lucro” auferido pelas entidades do Terceiro Setor, assim definida pelo Conselho Federal de Contabilidade.
O diabo é que muitas pessoas, principalmente autoridades, não vêem com bons olhos a acumulação de superávit pelas entidades do Terceiro Setor, como se isso fosse pecado.
A situação fica ainda pior quando as entidades aplicam seu superávit no mercado financeiro. Aí, sim, na visão de alguns tecnocratas, o inferno seria o local ideal para aquelas entidades, sem direito ao recurso do purgatório.
Não é pecado
Possuir finalidade “não lucrativa” não é sinônimo de desenvolver atividades gratuitas.
Todavia e não raramente, constatar que uma entidade sem fins lucrativos desenvolve atividade remunerada é motivo certo para sua execração pública em grandes veículos de comunicação, que nem sempre seguem à risca seus manuais de redação.
E porque isso acontece? Tenho um palpite: falta de conhecimento técnico (proposital?) sobre o assunto.
Atividade extrativista
Igualmente ao realizado pelo Primeiro (Estado) e Segundo (mercado) setores, o Terceiro Setor também deve desenvolver atividades para extrair dinheiro e gerar resultado positivo.
E essas atividades podem ser as mais variadas e diversificadas possíveis, desde que lícitas, obviamente, pois o que as entidades do Terceiro Setor devem observar é a destinação do excedente financeiro produzido a elas mesmas e não às pessoas físicas que a compõem.
Partindo dessa premissa, produzir pães, vender produtos (artesanato, roupas usadas etc.), alugar imóveis, prestar serviços ou aplicar valores no mercado financeiro tem o mesmo objetivo: gerar dinheiro. Da mesma forma, receber subvenções, doações ou recursos do BNDES, por exemplo, também é gerar dinheiro.
Portanto, uma entidade sem fins lucrativos que produz pães para distribuir numa favela deve ter o mesmo tratamento jurídico que outra que possui imóveis alugados ou outra que aplica no mercado financeiro. Ou o fato de uma entidade “ser mais rica” que outra deveria acarretar-lhe alguma punição ou tratamento não isonômico?
Todas recebem remuneração
Qual entidade sem fins lucrativos desenvolve serviços sem qualquer remuneração, direta ou indiretamente? Qual pessoa se dedica profissionalmente durante 8 horas (ou bem mais) do seu dia a desenvolver trabalhos para entidades sem fins lucrativos de forma não remunerada? Não confunda, caro leitor, o profissional que trabalha profissional e diuturnamente para uma ONG com o serviço prestado por voluntários.
Como a entidade sem fins lucrativos remunerará os profissionais que lhe prestam serviços se não tiver receita para fazer frente a tal despesa, além das várias outras intrínsecas à contratação?
O tema é tabu. O que vemos no dia-a-dia é que as entidades sem fins lucrativos fingem que nada recebem e as autoridades fingem que acreditam.
Lembro-me de ouvir de uma autoridade há alguns anos: “entidade filantrópica, para mim, é aquela Santa Casa coitadinha que conta com a ajuda de algumas pessoas. Eu mesmo passo uma vez por semana à noite na Santa Casa da minha cidade e dou uma ´ajudazinha´ contábil para ela. Essa história de entidade filantrópica grande, com alto volume de receita, para mim não existe e deve ser ´lavagem de dinheiro´.”
Ainda bem que esta autoridade já perdeu seu posto há muito tempo. Todavia, esta mentalidade débil e retrógrada ainda permeia o pensamento de muita gente.
Enquanto cursos de gestão pululam visando justamente imprimir profissionalismo, transparência, incutir princípios de governança corporativa e ajudar na obtenção de receitas para que elas atinjam suas finalidades de forma ágil e séria, ainda há pessoas desprovidas de intelecto não preconceituoso que são convictas em afirmar que isso “desvirtua” o Terceiro Setor.
Estaria o Terceiro Setor, então, fadado a conviver com o amadorismo de pessoas bem intencionadas e ser deficitário eternamente? A institucionalização de profissionais multidisciplinares em entidades sem fins lucrativos por acaso desvirtua os seus princípios? É claro que não. Muito pelo contrário.
O que é “gratuidade”?
Uma Santa Casa que atende a 100% de pacientes por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) está realizando “promoção gratuita da saúde”? Será? O atendimento de um paciente por meio do SUS implica no faturamento e encaminhamento da conta ao Ministério da Saúde, que será pago pelo governo federal.
Ora, se a Santa Casa recebeu determinado valor (insuficiente, é verdade) para atender aquele paciente, ela “promoveu” a saúde dele de forma “gratuita”, no sentido lato da palavra?
Para o paciente, o atendimento foi gratuito, na medida em que ele nada pagou por ele. Contudo, a Santa Casa não tirou dinheiro do seu bolso para atendê-lo, mas foi remunerada (parcialmente) pelo governo federal por assim ter agido.
Quem trabalha na saúde sabe que a tabela do SUS é defasada em todos os procedimentos de baixa e média complexidade e que recursos obtidos de diversas formas (sorteios, bingos, quermesses, plano próprio de saúde etc.) pelas entidades sem fins lucrativos são destinados à cobertura do déficit operacional gerado pelo atendimento dos pacientes do SUS.
Repito a pergunta: o que é “promover gratuitamente a saúde” se nenhuma Santa Casa assim age, na medida em que é remunerada pelo governo federal?
Escolas
Imaginemos uma escola mantida por entidade sem fins lucrativos que cobra mensalidade dos alunos e aplica o superávit das contas em gratuidade. A grosso modo, ela está realizando atividades “gratuitas” à população carente com o dinheiro que obteve dos serviços remunerados que prestou a quem podia pagar.
Ora, é justamente esta a hipótese tratada pelo STF, o que confirma o tópico frasal deste artigo.
Outro exemplo
Suponhamos uma entidade sem fins lucrativos que possui convênio (ou qualquer outra relação jurídica) com um município para gerir uma creche. O ente político repassa a ela um valor predeterminado por criança atendida. Seria isso “promover assistência social de forma gratuita”?
Ora, se a única fonte de receita para manutenção daquela creche é o recurso “per capita” recebido do município, a entidade não está sendo remunerada indiretamente por aquela prestação de serviços?
De onde aquela entidade irá tirar o dinheiro para pagar a remuneração dos profissionais que trabalham na creche (cozinheira, professora, faxineira, diretora etc.) e os encargos trabalhistas e previdenciários incidentes sobre a folha de pagamento senão daquela única fonte de receita, que é o Poder Público? Ela não está sendo remunerada por aquela “prestação de serviços” retratada no convênio existente entre as partes?
Se o leitor responder negativamente à pergunta, que nome se dá a isso, então? Subvenção? Permanente?
Voltarei ao assunto.
Josenir Teixeira
· Advogado graduado pela FMU/SP (Faculdades Metropolitanas Unidas – atual UNIFMU).
· Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela mesma faculdade.
· Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
· Pós-Graduado em Direito do Trabalho pelo Centro de Extensão Universitária de São Paulo.
· Pós-Graduado em Direito do Terceiro Setor pela FGV/SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).
· Professor do curso de Pós-Graduação em Administração Hospitalar e Negócios da Saúde da UNISA (Universidade de Santo Amaro) em São Paulo.
· Professor do curso de Direito do Terceiro Setor da Escola Superior de Advocacia (ESA) de São Paulo.
· Assessor jurídico da Federação Brasileira de Administradores Hospitalares.
· Assessor jurídico dos hospitais da Sociedade Beneficente São Camilo localizados em São Paulo/SP, por intermédio de Tilelli e Tilelli Advogados Associados.
· Desde 1997 é Diretor Jurídico da Pró-Saúde Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar, entidade especializada na administração de estabelecimentos hospitalares de terceiros com atuação em todo o território nacional e 5a. maior entidade filantrópica do Brasil (Instituto Kanitz).
· Membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP, da qual foi presidente interino.
· Membro da Comissão de Direitos e Prerrogativas dos Advogados da OAB/SP.
· Desde 1991 atua na assessoria, consultoria e contencioso de entidades do Terceiro Setor e da área da saúde.
· Palestrante de temas relativos à Saúde e ao Terceiro Setor.
· Articulista da revista “Notícias Hospitalares”.
· Articulista do site www.clicsaude.com.br
· Parceiro da ABEAS – Associação Brasileira das Entidades de Assistência Social.
· OAB/SP 125.253
· OAB/MA 6.083