Recentemente, um amigo me disse que, quando se formou em administração hospitalar, em 1978, foi trabalhar em um hospital que o incumbiu de resolver um de seus maiores problemas naquele momento: havia muitos médicos autônomos prestando serviços naquele estabelecimento hospitalar.
Passados 20 anos, o assunto “médico autônomo” continua a ser um dos problemas que mais preocupam as instituições hospitalares.
E por quê?
Porque a prestação de serviços através da chamada “autonomia” sempre dá margem a questionamentos vários.
Pelo lado do médico, a prestação de serviços através da “autonomia” lhe é favorável, pois, não tendo vínculo empregatício com a instituição hospitalar, poderá ter outros compromissos que lhe complementem a receita.
Pelo lado da entidade, também a prestação de serviços pelos chamados “autônomos” parece, a princípio, ser interessante, pois poderia contar com o médico para atender seus pacientes e não arcaria com os pesados encargos sociais incidentes sobre a categoria dos empregados.
Então, se esta relação é vantajosa para ambas as partes, porquê ela traz riscos?
Primeiro, porque há a questão trabalhista. Vimos, e não foram poucas as vezes, aquele médico que prestou serviços por anos a fio para uma instituição hospitalar como perfeito “autônomo” (gozando de tal “status”), ajuizar Reclamação Trabalhista pleiteando vínculo de emprego com o hospital durante todo aquele período. Na hipótese do médico sair vencedor do processo, praticamente o hospital estaria inviabilizado, pois não teria como pagar a abrangente condenação imposta neste tipo de lide. Isto porque, na hipótese de procedência da Reclamação Trabalhista, a Justiça do Trabalho mandará registrar o médico como se empregado fosse e mandará recolher todos os direitos trabalhistas daí decorrentes, devidamente acrescidos de multa, correção e atualização monetária, além das multas administrativas perante o INSS, FGTS, etc. Somando-se tudo isso, não raramente chega-se a pequenas fortunas.
Segundo, porque há a questão previdenciária. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), obviamente, não quer (e talvez não possa) “ficar no prejuízo”. Ou seja, o “autônomo” não recolhe a parte que cabe à previdência e a empregadora, por não ser o autônomo seu empregado (o que é óbvio), também nada recolhe a este título.
Diante disso, o INSS resolveu estabelecer alguns procedimentos que devem ser observados em relação aos autônomos (médicos, no nosso caso).
Para isso, fez publicar a Ordem de Serviço nº 164, de 18/junho/1997. Referida Ordem de Serviço, em nosso modesto entendimento, é inconstitucional. Todavia, não é objetivo deste artigo tratar da possível inconstitucionalidade desta OS, mesmo porque, enquanto assim não declarada, ela produz efeitos.
Trabalhador autônomo
Conceito
Antes porém de analisarmos essa Ordem de Serviço, devemos traçar alguns conceitos, para melhor compreensão do assunto:
Autônomo: o inciso IV do art. 12 da Lei 8.212/91 e o inciso IV do art. 11 da Lei 8.213/91, dispõem:
“São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
IV – como trabalhador autônomo:
a) quem presta serviço de natureza urbana ou rural, em caráter eventual, a uma ou mais empresas, sem relação de emprego;
b) a pessoa física que exerce, por conta própria, atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não.
“Autônomo” é ‘quem se governa pelas suas próprias leis e não está sujeito a nenhuma potência estrangeira’. (Caldas Aulete)
De Plácido e Silva assim o define: “Palavra que serve de qualificativo a tudo o que possui autonomia ou independência, isto é, de tudo quanto possa funcionar ou manter-se independentemente de outro fato ou ato.” (Vocabulário Jurídico, 1998, Ed. Forense)
Sérgio Pinto Martins assim se posiciona: “O trabalhador autônomo é, portanto, a pessoa que presta serviços habitualmente por conta própria a uma ou mais de uma pessoa, assumindo os riscos da sua atividade econômica.” (‘Direito do Trabalho’, 1997, Malheiros Editores)
‘A expressão trabalhador autônomo assume sentido próprio como categoria jurídica do Direito do Trabalho. Segundo Amauri Mascaro Nascimento, “considerável número de trabalhadores presta a sua atividade sem subordinação a ninguém. Trabalham por conta própria. Não têm empregador. Sujeitam-se ao autocomando jurídico. São os trabalhadores autônomos.” (Aníbal Fernandes in “O Trabalhador Autônomo”, 1992, Editora Atlas)
“O autônomo trabalha por conta própria. Prestador independente de serviços, geralmente profissional, exercita habitualmente atividade remunerada para terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, assumindo os riscos inerentes à sua execução.
É dito profissional, isto é, detém uma profissão, domina uma técnica, conhece uma arte ou efetiva uma prática, através da qual obtém os meios de subsistência e se realiza como ser humano e membro da sociedade.
Autônomo, repete-se, porque, frequentemente e por sua conta, exerce atividade profissional. Tal construção guarda as suas principais características, avulta a dinâmica do esforço individual e não olvida a condição não amadorística, sem falar no essencial, a assunção de riscos específicos e trabalho não subordinado.” (Wladimir Novaes Martinez in ‘Curso de Direito Previdenciário’, 1998, LTr Editora)
Distinção entre trabalhador autônomo e empregado regido pela CLT
Diz o art. 3º da CLT:
“Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”
“Comparativamente com a definição de empregado prevista na CLT, deduz-se que o autônomo, como o próprio nome indica, é o trabalhador que desempenha seu ofício com autonomia, sem que haja uma subordinação típica a outrem, podendo livremente adotar diversos procedimentos disponíveis na execução do seu trabalho.
Diferentemente do empregado, não está sujeito a um controle diário de sua jornada de trabalho, bem como não cumpre, necessariamente, uma quantidade rígida de horas de trabalho.
Uma notável característica do trabalhador autônomo vincula-se ao fato de poder fazer-se substituir por outrem na execução dos serviços. Em relação ao empregado, a prestação dos serviços é sempre em caráter pessoal.”(IOB – Legislação Trabalhista e Previdenciária – Boletim nº 33/98, agosto/1998)
Da obrigatoriedade de inscrição do autônomo junto ao INSS
O trabalhador autônomo obrigatoriamente deverá efetivar sua inscrição nesta qualidade perante o Posto do Seguro Social jurisdicionante da residência do interessado. Deverá o trabalhador levar: RG, CPF/MF, certidão de nascimento ou casamento, título de eleitor, comprovante de atividade e a GRCI (Guia de Recolhimento do Contribuinte Individual), adquirida em papelaria.
Do recolhimento da contribuição
O autônomo contribuirá, após o início de sua atividade, através da GRCI. O seu salário de contribuição será o salário-base, de acordo com a escala progressiva de valores denominados ‘classes’. A alíquota para o recolhimento é de 20% (vinte por cento) do salário-base da classe em que estiver enquadrado. O recolhimento deverá ser efetuado até o dia 15 (quinze) do mês subsequente ao da competência, ou no dia útil imediatamente anterior, caso não haja expediente bancário.
Da instituição que tem médicos autônomos como prestadores de serviços
O ideal, para se evitar os riscos mencionados no início deste trabalho, é que as instituições hospitalares não mais contem com os serviços prestados por médicos autônomos. Devem eles ser registrados como empregados, se for o caso, ou devem ser formalizados contratos de prestação de serviços com as pessoas jurídicas formadas pelos mesmos. Convém cumprir, neste caso, todos os requisitos e observar critérios específicos para a efetivação dessa contratação, procurando fazer-se a terceirização legítima, evitando-se fraudes trabalhistas.
Sabemos, todavia, que nem sempre é possível seguir essa orientação, devido, ora à escassez de profissionais, ora à distância de alguns hospitais dos centros urbanos. Obviamente que, nessas hipóteses, preferível se correr o risco a não ter o profissional médico para atender os pacientes do hospital. Dos males, o menor.
Da instituição que remunera o médico (ou trabalhador) autônomo
Tratemos, então, da hipótese da necessidade de se remunerar o médico que presta serviços como autônomo.
A contribuição da empresa em relação às remunerações pagas aos autônomos, sem vínculo empregatício, tem seu disciplinamento dado pela Lei Complementar nº 84/96 e pelo Decreto nº 1.826/96.
As entidades sem fins lucrativos e filantrópicas que encontram-se no regular gozo de direito à isenção de recolhimento da cota patronal ao INSS, não são atingidas pela legislação acima mencionada, conforme já encontra-se pacificado.
Veja-se, a propósito, que a própria Ordem de Serviço nº 151 do INSS, de 28/novembro/1996, que consolida os procedimentos atinentes à arrecadação e fiscalização da contribuição incidente sobre a remuneração paga por empresa a autônomos que lhe prestem serviço sem vínculo empregatício, diz no seu item 33:
“A entidade beneficente de assistência social, em gozo de isenção da cota patronal, não está sujeita à contribuição prevista neste ato.”
A princípio, portanto, legalmente, não devem as entidades filantrópicas hospitalares em gozo da isenção da cota patronal ter preocupações maiores com a remuneração paga aos médicos autônomos.
Porém, diante do que dispõe a Ordem de Serviço do INSS nº 164/97, deve a entidade tomar alguns cuidados. Por cautela, sugerimos que a entidade hospitalar que for remunerar um médico autônomo deve observar os critérios de incidência como se fosse uma empresa qualquer. Isso para evitar que alguém deixe de contribuir para a Previdência Social, pois, tendo em vista não ser o autônomo empregado da instituição hospitalar, esta não recolherá nenhum valor para a Previdência. Caso o médico autônomo não seja inscrito como contribuinte ou esteja em atraso com seus recolhimentos, também ele nada recolherá para a Previdência. Resumindo: ninguém recolhe nada para a Previdência e a defasagem só aumenta. Foi para evitar essa situação que o INSS estabeleceu os procedimentos constantes de referida Ordem de Serviço.
Da rotina de recolhimento
Assim, quando a instituição hospitalar for, eventualmente, remunerar o médico autônomo, deverá exigir dele prova (autenticada) de sua inscrição junto ao INSS, bem como prova (também autenticada) do recolhimento do mês anterior.
Comprovando o médico autônomo ser inscrito no INSS e estar em dia com seus recolhimentos, ao invés da instituição recolher 15% (quinze por cento) sobre o valor da remuneração a ser paga, poderá optar por recolher o valor equivalente a 20% ( vinte por cento) sobre:
a) o salário-base correspondente à classe em que o tiver autônomo estiver enquadrado, desde que esteja posicionado nas classes de 4 a 10 da escala de salário-base;
b) o salário-base da classe 4, se o autônomo estiver posicionado nas classes 1, 2 ou 3 da escala de salário-base;
c) o salário-base da classe 1, se o autônomo estiver dispensado do recolhimento como contribuinte individual, sobre a escala de salário-base, em virtude de já estar contribuindo sobre o limite máximo do salário-de-contribuição, em razão do exercício de atividades que o enquadrem como segurado empregado. Para efeito do disposto neste item, a entidade deverá exigir e arquivar, por 10 anos, cópia do contracheque ou da declaração da empresa onde o segurado for empregado, comprovando que ele já contribui sobre o limite máximo. Esta declaração, a rigor, deverá ser exigida a cada mês.
Caso o médico autônomo não seja inscrito junto ao INSS ou esteja em atraso com seus recolhimentos, não poderá a instituição optar pela forma de recolhimento acima, devendo recolher 15% (quinze por cento) sobre o total da remuneração paga.
Situações que não se enquadrem nas hipóteses aqui traçadas deverão ser tratadas como exceção e caso a caso.
A comprovação perante a fiscalização previdenciária dos valores pagos pela instituição ao trabalhador autônomo, pelos serviços prestados, faz-se mediante apresentação do respectivo recibo de quitação. Este comprovante pode ser o famigerado RPA (Recibo de Pagamento a Autônomo) ou um Recibo de Prestação de Serviços comum.
Os valores que as instituições filantrópicas devem recolher, de acordo com nossa sugestão, por não haver legislação que as obriguem a tal, deverão ser descontadas dos valores a serem pagos aos autônomos e, posteriormente, recolhidas através de guia própria, abaixo mencionada. Repetimos, mais uma vez, que as entidades filantrópicas em regular gozo de isenção da cota patronal nada devem pagar a título de contribuição pela empresa. O que sugerimos é que, do valor a ser pago ao autônomo, seja descontado (e recolhido) valor destinado à Previdência Social, com o que a entidade minimizará riscos de eventual autuação por aquele órgão.
Parece-nos que a primeira forma de recolhimento é a mais vantajosa para todos os envolvidos no processo.
Da dispensa deste recolhimento por parte das entidades filantrópicas
Repetimos mais uma vez e para que fique bem clara nossa posição, que esta forma de pagamento constitui-se em mera sugestão e aconselhamento de nossa parte, visando evitar problemas no futuro com a fiscalização previdenciária. Não se trata, em nenhuma hipótese, de obrigatoriedade por parte das entidades filantrópicas em gozo da isenção da cota patronal, mas tão somente em uma forma de evitar autuações do INSS com base na Ordem de Serviço nº 164/97. Na hipótese de pagamento da forma sugerida, os valores devidos à Previdência Social não deixariam de ser recolhidos, o que constitui-se no objetivo da Ordem de Serviço em questão, não havendo motivos para autuação.
Lembramos que a contribuição instituída pela Lei Complementar 84/96 determina que o contribuinte é a empresa ou a pessoa jurídica para quem o serviço é prestado (AMS nº 96.04.67380-7/PR – TRF da 4ª Região). Deve ficar bem claro que, conforme acima dito, as entidades filantrópicas em gozo da isenção da cota patronal não são obrigadas a recolher a contribuição instituída por esta lei.
“Quando contrata autônomos, está (a entidade beneficente de assistência social) dispensada da contribuição patronal referida na Lei Complementar n. 84/96 (Orientação Normativa n. 6/96). Tal obrigação sempre foi entendida, desde o Decreto-Lei n. 959/69, como sendo patronal.” (Wladimir Novaes Martinez, ob. ac. cit., pg. 432)
Critérios a serem observados pela entidade
Optando pela forma acima sugerida, a instituição hospitalar deverá observar os seguintes critérios:
A entidade deverá exigir do autônomo cópia (de preferência autenticada) do recolhimento da contribuição previdenciária referente à competência vencida imediatamente anterior à data do serviço prestado, bem como cópia (também autenticada) do comprovante de inscrição perante o INSS na categoria de autônomo. Referidos documentos deverão permanecer no arquivo da entidade por 10 (dez) anos. A qualquer tempo, o INSS poderá lançar eventual diferença entre o recolhimento efetuado pela instituição e o que seria devido em relação à aplicação do percentual de 15%, caso não se confirme os elementos apresentados pela entidade com os registros mantidos por seus sistemas de controle de cadastro e arrecadação.
A entidade poderá optar pelo não-arquivamento da cópia do comprovante de recolhimento, desde que mantenha, para efeito de fiscalização do INSS, relação individualizada dos autônomos que lhe prestarem serviço, com os respectivos números de inscrição no INSS e a classe em que estiverem enquadrados na escala de salário-base.
Apesar de mais trabalhosa e burocrática, ficamos com a primeira orientação acima.
Prazo para recolhimento
Caso opte a instituição pela sugestão aqui oferecida, a entidade deverá recolher a contribuição no dia 2 (dois) do mês seguinte ao da competência, em GRPS (Guia de Recolhimento da Previdência Social), campo 8 “outras informações”.
Elaboração de folha de pagamento
A entidade é obrigada a preparar folha de pagamento da remuneração paga ou creditada a todas as pessoas físicas, discriminando nome, número de inscrição, serviço prestado, classe de enquadramento, valor do serviço e da contribuição, conforme dispõe o art. 47 da ROCSS. (IOB – trabalho acima mencionado)
Conclusão
Para que a instituição hospitalar possa minimizar os riscos de contar com o trabalho autônomo de médicos, convém ela observar a orientação/sugestão/aconselhamento aqui trazida, que não deixa de ser inovação introduzida na relação hospital/autônomo.
Este nosso entendimento, salvo melhor entendimento em contrário.