O novo governo federal prometia esperança. E esta era a expectativa das entidades filantrópicas (principalmente aquelas que possuem o CEBAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, emitido pelo CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social, órgão vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome), cujos dias já eram bastante tenebrosos, pois lutavam para contornar as exigências (legais, mas descabidas e ilegais, às vezes) dos órgãos públicos que insistiam (e ainda insistem) em dificultar-lhes a vida o máximo possível.
Não pregamos contra a fiscalização, por óbvio. Além de legal, ela é necessária para coibir abusos. Mas o diabo é que ela se esquece de um princípio básico: o caráter preventivo, pedagógico e de esclarecimento que deveria norteá-la, como, aliás, já ressaltaram alguns ministros de Estado, em relação a outros “benefícios” governamentais, o que difere do nosso contexto, mas ajuda na exemplificação.
Ao invés disso, há alguns anos vivemos a santa inquisição das entidades filantrópicas. O Apocalipse delas está chegando, noticiado pelas bestas, incorporadas em “dragão vermelho de sete cabeças e dez chifres e com uma coroa em cada cabeça”, ou a própria “besta”, dependo da versão bíblica que se lê. A comparação pode ser exagerada, mas não destoa muito da realidade de algumas entidades que tiveram o azar (seria sorte?) de obter um título outorgado por ente público que, elas achavam, tinha legitimidade para isso. Legitimidade até tem, mas eficácia …
Não bastasse a fiscalização linear, atroz e desarrazoada, em alguns casos, detonada contra as possuidoras do CEBAS há uns dez anos, pelo menos, temos agora (na verdade há quase três anos), uma equipe de procuradores, técnicos e auditores constituída especificamente para “fazer com que somente gozem da imunidade de contribuição da seguridade social entidades que auxiliem o Estado na política de assistência social.” Perfeito. O objeto é claro e deve ser defendido por todos. Todavia, na prática, a teoria é outra.
Conheço o caso de uma entidade constituída por religiosos católicos há quase quarenta anos que se dedica exclusivamente à assistência social durante todo este tempo, de forma absolutamente comprometida e eficaz, natural e inerente a esta estirpe cada vez mais rara de cidadãos.
Um belo dia, como nas décadas anteriores, ela teve o seu CEBAS renovado pelo CNAS.
A Secretaria da Receita Previdenciária (SRP) recorreu e requereu ao ministro da Previdência Social (este ministério é quem possui legitimidade) a cassação daquela renovação, alegando que a entidade teria descumprido requisitos legais que permitiriam aquele ato concessivo. Acontece que a entidade desenvolve a mesmíssima atividade há quase quarenta anos.
O que teria acontecido de tão diferente e drástico nos três últimos anos, período analisado pelo CNAS e reconhecido como apto a justificar a renovação do CEBAS? Nada.
A entidade mantém convênio com o município e continua a atender cento e cinqüenta crianças em sua creche, desenvolvendo atividades didáticas e pedagógicas que visam incutir valores morais, éticos e noções de cidadania àqueles filhos de famílias desestruturadas e/ou pobres e que não têm condições de deles cuidar direta e adequadamente.
Falar em controle de natalidade no Brasil, para alguns ativistas míopes desavisados, é proibir pobre de ter filho. Mas isso é outro assunto.
O fato é que, ao longo de quinze páginas, a Secretaria da Receita Previdenciária realizou verdadeiro tsunami jurídico, criou conceitos próprios e excluiu da base de cálculo da gratuidade valores que efetivamente foram gastos com o desenvolvimento de atividades que gravitam em torno do núcleo de suas finalidades estatutárias e que têm inequívoco nexo com a assistência social.
Sem a realização daquelas atividades periféricas, que têm custo, a finalidade principal não seria atingida, por mais óbvio que isso possa parecer.
Ora, sem a compra de mantimentos, sem o seu cozimento, sem a cozinheira para cozê-los e sem utensílios domésticos para ampará-los, a refeição não seria servida na creche.
Basicamente, esta é a tese da recorrente: a refeição é importante e se enquadraria dentro do conceito de “mínimo social” criado pelo recurso, mas os gastos contabilizados com as ações acima mencionadas, apesar de importantes, assim também reconhecidas pelo próprio recurso, pertencem ao mundo da “filantropia”, conforme conceito ali criado, e não poderiam ser considerados para cálculo do percentual legal de vinte por cento de gratuidade.
Os custos havidos com a manutenção de uma horta, na creche, que além de servir de instrumento de educação, serve para alimentar as crianças, também não poderiam ser contabilizados como assistência social, pois não podem ser classificados como destinados a atender o conceito de “mínimo social” defendido pelo recurso. Deveriam ser classificados como “filantropia”, o que, na visão da recorrente, é diferente e não serve para compor o percentual legal a ser atingido.
Enfim, são vários outros questionamentos a respeito da rubrica na qual foram incluídos custos intrínsecos à viabilização da atividade preponderante da entidade e que foram simplesmente desconsiderados, de acordo com critérios próprios da SRP.
Ao fazer isso, obviamente que o valor unitário e individual do produto final oferecido às crianças, que, diga-se, não tem como ser assim separado, é baixo e não atinge o percentual legal, sendo, portanto, ilegal a renovação do CEBAS por descumprimento da legislação. Simples, não?
Na defesa, a entidade alertou sobre a ignorância do berço constitucional da assistência social e o entendimento da sua conceituação de forma ampla, o que é reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal desde 2000, pelo menos.
A assistência social não serve apenas para prover os “mínimos sociais”, oferecendo um prato de comida a quem tem fome. Esta visão é por demais retrógrada para sequer merecer comentários.
A assistência social já foi definida por Sérgio Pinto Martins como “um conjunto de princípios, de regras e de instituições destinado a estabelecer uma política social aos hipossuficientes, por meio de atividades particulares e estatais, visando à concessão de pequenos benefícios e serviços, independentemente de contribuição por parte do próprio interessado.” Há doutrinadores que consideram os conceitos de filantropia e de assistência social equivalentes.
A instituição é da área de educação e atua no vácuo deixado pelo Estado, que não consegue, sozinho, cumprir os mandamentos constitucionais.
O recurso desconsiderou a enorme área de abrangência da educação, necessária para que ela se realize na amplitude desejada e necessária, e ignorou diversos princípios legais contidos na LDB, ECA, LOAS, SUAS, PNAS e na NOB, por exemplo.
A decisão será do ministro da Previdência Social. Que Deus o ilumine!
Causa perplexidade a enorme lista trazida pelo Diário Oficial da União, mensalmente, de entidades que tiveram seu CEBAS cassado ou não renovado pelo CNAS, a partir de representação fiscal do INSS.
O governo federal está conseguindo o que quer. Ele só ainda não sinalizou quem irá prestar o serviço que tais entidades, agora inviabilizadas, prestavam até então.
Quem está pensando no hipossuficiente? Quem irá atendê-lo. O próprio governo? Será? Com toda a sutileza e delicadeza de um elefante atormentado dentro de uma loja de cristais? Com toda a sua lerdeza e burocracia que o Legislativo insiste em não resolver?
Infelizmente, o passado do governo o condena. O histórico e o assistencialismo ineficaz, despudorado e dirigido que vemos não nos estimula ou reconforta. Ao contrário: nos enoja e decepciona.
As cento e cinqüenta crianças atendidas pela creche esperam ansiosamente pela decisão do ministro, que pode mudar o destino de suas vidas!
Como diria João, escritor do livro do Apocalipse: “Se alguém tem ouvidos, ouça.”
Josenir Teixeira
maio/2007