Muita coisa no nosso querido Brasil é de fachada e “para inglês ver”. Estamos cansados de ouvir discursos (pobres, ultimamente) em que autoridades falam o óbvio de modo superficial. Não bastasse essa perda de tempo, por si só, o que é falado não se concretiza na prática. O que acontece é justamente o contrário, em alguns casos. Eis o quadro: a autoridade fica “bem” para com a opinião pública, pois disse o que as pessoas estavam ávidas em ouvir, as ações que deveriam acontecer não acontecem, e o destinatário daquele discurso vazio não recebe as ações fomentadoras prometidas e fica “mal” para com a opinião pública, que muitas vezes não é esclarecida sobre os reais motivos que determinaram a não realização daquela fala.
Serei mais claro: porque a saúde pública brasileira é tão capenga e insuficiente, mesmo após a criação de um imposto só para ela: a CPMF? Será que a população conhece os detalhes desta mentira? Será que a opinião pública sabe que, com a criação da CPMF (IPMF, no início), o ministério do Planejamento destinou à saúde apenas a receita daquele tributo e remanejou o valor que a União gastava com ela para outras áreas? Moral da história: a receita da CPMF, que deveria ser somada à verba vinda da União, ficou única. Trocaram-se seis por meia dúzia. E estamos conversados.
E a filantropia? As entidades lutam diuturnamente e gastam o dinheiro que não têm para cumprir as inumeráveis e abiloladas exigências de resoluções, instruções normativas, portarias ou qualquer outro desarranjo mental que um “burrocrata” que nunca pisou em uma creche ou em um hospital que atende SUS cismou em criar.
Quando conseguem cumprir todas, outras surgem, e assim vamos. Está sendo assim desde minha época de estagiário, quando, no segundo ano da faculdade, eu já atuava no Terceiro Setor. E olha que já estou indo para catorze anos de formado. E o pior: os cenários atual e futuro são horríveis.
Não pense o leitor que sou pessimista. Sou realista. Acompanho fatos. Submeto-me à tortura de discursos reles, desconexos da realidade, falados por ignóbeis despreparados. Apesar de não desistir nunca (afinal, sou brasileiro), já está mais do que na hora de um pouco de vergonha na cara e adoção de ações eficazes e que façam que se dêem passos para frente, ao invés de continuarmos imitando o caranguejo, o que mais parece dancinha de programa humorístico, ou de parlamentar, se os leitores preferirem.
No final de 2006, como no final de outros anos, várias entidades receberam autuações, de vários órgãos governamentais, especialmente da esfera federal. Os prazos para a contestação das autuações se encerravam justamente no meio do recesso de fim de ano, período em que grande parte das entidades, dos escritórios contábeis e de advocacia, e de vários outros segmentos da sociedade, concedem férias coletivas.
Num dos casos específicos que vi, o último dia do prazo era 01.01.2007, devendo o protocolo da defesa ser efetuado em 02.01.2007. Não estou dizendo que entidades não possam ser autuadas no fim do ano. Podem. O mundo não pára. Apenas estou constatando o acontecimento de muitas “coincidências” nos finais de ano. Estou sugerindo que o governo, somente ele, não comunga da cultura e histórico brasileiros neste particular.
O caráter pedagógico da atuação da fiscalização já deixou de existir há tempos.
Hoje, vivemos no tempo da caça às bruxas (aqui entendidas como sinônimo de entidades filantrópicas). De vez em quando matamos uma princesa, mas, ao invés de nos preocuparmos, transformamos aquela morte em estatística ou a classificamos em outra rubrica contábil e pronto: resolvemos o problema, o que é outra enorme e descarada mentira, utilizada para encobrimos a falta de capacidade governamental.
Faço minhas as palavras do advogado Léo da Silva Alves (Consulex no. 240, jan/07), que externou seu inconformismo com a “burocracia sem alma, com os seus vastos e horripilantes tentáculos” em relação à forma de atuação de um órgão público, cujos agentes “lépidos e faceiros” autuavam aqueles que tentavam agir de forma a resolver o imbróglio formado, ao invés de orientar os cidadãos (que não eram ”bandidos ou transgressores em potencial, … nem beberrões, com latas de cerveja na mão, música alucinante e gestos obscenos.”
Apesar de o artigo ter sido escrito para uma situação específica, envolvendo o Detran-DF, o desabafo do colega relata situações que em muito se assemelham à postura adotada por alguns órgãos públicos que dizem regulamentar e fiscalizar o Terceiro Setor.
Escreveu o advogado: “Note-se que estes profissionais, desorientados pela equivocada política dos seus superiores, resultam, na prática, investidos de maior poder que um juiz. Decidem, julgam, humilham e contra eles não há recurso. …
Mas, ao invés de se apresentarem como zeladores dos interesses do povo, da forma como as circunstâncias reclamavam, os oficiais da burocracia medíocre empunhavam as armas do Estado totalitário, voraz, insensível, voltado para o próprio umbigo. Eles próprios vítimas da insanidade diretiva. …
O fato isolado pode parecer sem maior repercussão. Serve, todavia, de fundo para a seguinte reflexão: o Estado, que é ineficiente e covarde para tratar bandidos; o Estado que é manso com larápios, vigaristas e corruptos de todo tipo, tem essa mania de ser feroz e truculento contra as pessoas de bem. E, na medida em que os advogados brasileiros vão se amoldando a esse rolo compressor – da ineficiência e da má gestão -, a sociedade, como um todo, é tratada como mero arremedo de cidadania.”
Conclui o professor de Direito Administrativo: “Para o quê servem as normas e princípios escritos com galhardia pela Assembléia Nacional Constituinte, se eles não atravessam o guichê do INSS, não têm valor num balcão de companhia aérea e são irrelevantes nas delegacias de polícia, nos postos de saúde e onde mais os cidadãos precisem comparecer à míngua de serviços públicos?
Na verdade, os brasileiros assistem passivos à violação de princípios da Administração Pública; sofrem com o arbítrio e o desvio de finalidade; são humilhados nas filas de concessionários de serviços de transporte e telefonia; ignorados pelo Poder Público na obrigação de alcançar educação, segurança, saúde e justiça (principais elementos que justificam a organização do Estado).“
No dia-a-dia vemos entidades filantrópicas sérias e comprometidas com o bem estar do próximo serem colocadas no mesmo balaio que aquelas dirigidas por vagabundos desonestos que maculam o seu meio. Estas entidades, e seus dirigentes, devem ser processados, condenados e presos. Todavia, devemos saber separar o joio do trigo. O problema é que alguns órgãos públicos não sabem o que é joio. Daí, como vão saber separar? Fica difícil, realmente.
No final de 2006, o governo federal disponibilizou proposta de reforma do decreto (de 1998) que regulamenta a concessão do CEBAS (Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, o antigo Certificado de Filantropia), concedido pelo CNAS (Conselho Nacional de Assistência Social). O texto da proposta foi a prova mais nítida da mentira assistencialista e populista em que vivemos. As contribuições ou os comentários em relação à proposta deveriam ser feitos em curtíssimo espaço de tempo, que se encerrava no meio de um feriado. Preocupadas com a non sense da proposta, as entidades paulistanas se reuniram rapidamente, sob a coordenação do COMAS (Conselho Municipal de Assistência Social) de São Paulo/SP, e repudiaram veementemente aquele texto maquiavélico, tendo ele sido retirado do site do ministério.
A motivar essa intenção estão os sucessivos e crescentes déficits da Previdência Social e a necessidade de o governo correr atrás de toda e qualquer contribuição, mesmo aquela das entidades parceiras na realização de ações sociais que a ele competiriam, como, principalmente, aquelas realizadas pelas Santas Casas de Misericórdia.
O pior é que todos sabemos que, agora, após as eleições, a proposta será convertida em decreto (ou em qualquer outra bobagem), com a inclusão e a exclusão de uma ou outra perfumaria, mas mantendo toda a agressividade legal e mortal apresentada inicialmente.
Preparar-se para a hipótese de (tentativa) de eliminação dos benefícios da imunidade tributária e das isenções é uma necessidade cada vez mais premente, pois as entidades filantrópicas estão permanentemente sujeitas ao estigma da perda de benefícios, o que, se ocorrer, colocará muitas delas em processo de extinção.
A sociedade brasileira continuará a não ser atendida de forma “digna”, como manda a Constituição Federal. O governo brasileiro continuará a tirar de dentro do seu saco de maldades, iniqüidades ainda mais cruéis, visando o extermínio das entidades que tentam realizar o que ele, míope e incompetente, não consegue fazer. As entidades sem fins lucrativos, principalmente as filantrópicas, continuarão sua luta para sobreviver, preocupadas que são com os destinatários de suas ações, o que não se vê no Primeiro Setor, tristemente.
São previsões ruins, reconheço, mas não há base para se fazer melhores. Tomara que elas estejam erradas. No fim de 2007 saberemos.
Que Deus nos ajude!