O assunto é polêmico. Não pretendemos discutir doutrina nem teologia. Este artigo é essencialmente técnico e assim será conduzido. Pretendemos esclarecer, mesmo que rapidamente, médicos e instituições de saúde sobre como o Direito analisa a hipótese de recusa, por crença religiosa, de transfusão de sangue por um paciente que estiver em iminente risco de perder a vida.
A Constituição Federal, lei maior, assegura a inviolabilidade de crença religiosa. O Código Penal tem dispositivos que podem ser aplicados no caso em questão. Além disso, o Código de Ética Médica traz dispositivos que se aplicam ao médico que tiver um paciente nessa situação.Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová são extremamente organizados e esclarecidos sobre o tema. Há diversos sites na internet dirigidos à discussão do assunto. Conhecidos juristas brasileiros já emitiram parecer abordando a questão. Artigos estrangeiros foram e constantemente são traduzidos para o português, onde a ‘transfusão’ é esmiuçada. O ‘sangue’ já foi dissecado pelas Testemunhas de Jeová sob os mais diversos aspectos: composição, compatibilidade, tipo, segurança, uso medicinal, doenças transmitidas, análise risco/benefício, alternativas, consciência etc. Poderíamos aprofundar cada um destes temas, mas o espaço não permite e o foco principal da discussão não é este.
As Testemunhas de Jeová elaboraram, divulgam e distribuem minutas de ‘termos de isenção de responsabilidade’ para médicos e hospitais visando liberar os profissionais de qualquer conseqüência no caso da não ministração do sangue. Andam, inclusive, com uma ‘carteirinha’ informando sua crença religiosa e que traz diretrizes para a equipe médica que eventualmente o atender, já trazendo impresso e assinado o ‘termo de responsabilidade’ acima mencionado. Definitivamente são conscientes sobre o tema.
Acontece que os hospitais e principalmente os médicos estão no meio dessa discussão. O que fazer diante de um paciente Testemunha de Jeová que irá morrer se não for transfundido? Respeita-se sua crença e ele vem a óbito? Salva-se sua vida, fazendo-se a transfusão, independentemente de sua crença?
Há, ainda, os casos em que o paciente, como seu pai, é Testemunha de Jeová, mas a mãe tem outra crença. Aí instaura-se outra celeuma: o pai não autoriza a transfusão mas a mãe sim. O que fazer com o paciente, que está inconsciente e não pode se manifestar?
Sabemos da conseqüência que a transfusão coercitiva traz ao paciente não pactuante daquele procedimento. Sabemos do ‘estrago’ que isso causa ao seguidor daquela religião. Há, porém, outros aspectos que devem ser considerados. Estamos tratando de hipóteses em que haja risco iminente de morte. A autonomia e o consentimento prévio do paciente produzem efeito nos casos eletivos. O Código de Ética Médica proíbe o médico de efetuar qualquer procedimento com o qual o paciente não concorde, ressalvando a hipótese de iminente perigo de morte. Nos casos eletivos, se o paciente não quiser se submeter à transfusão, simplesmente não se a faz. Conseqüentemente, se o paciente não conseguir se livrar do mal que o aflige por qualquer outra forma, fatalmente aquele procedimento eletivo tornar-se-á de emergência e a situação terá que ser enfrentada mais cedo ou mais tarde, quer queira ou não.
Quanto aos pacientes menores de idade, quando inconscientes ou dependendo de sua idade, a manifestação de vontade dos pais ou dos seus representantes legais, a princípio, prevalece. Todavia, no caso de iminente risco de morte do paciente menor, mesmo que os pais, Testemunhas de Jeová, não concordem com a transfusão de sangue, normalmente, se for avisado e se der tempo, o Ministério Público intervém e obtém liminar judicial para que o procedimento seja realizado, impedindo o desfecho morte.
Apesar da Constituição Federal declarar como inviolável a crença religiosa, ela também diz a mesma coisa do direito à vida. E não há maior bem tutelado pelo Direito que vida, que antecede o direito à liberdade. Os tribunais brasileiros quase sempre decidem que é obrigação (e direito) do médico salvar a vida do paciente, em caso de iminente risco de morte, mesmo que contra a sua vontade, de seus familiares ou de quem quer que seja. Isso porque, num caso concreto que eventualmente for discutido perante o Judiciário, o médico e o hospital deverão provar que utilizaram a ciência e a técnica, apoiadas pela literatura médica, em prol da salvação do paciente, mesmo que haja divergência quanto ao melhor tratamento.
O que sugerimos a nossos clientes é que façam constar do contrato de prestação de serviços médico-hospitalares que é firmado entre eles e o paciente (ou seu representante legal), por ocasião da internação, que a transfusão de sangue está previamente autorizada e que ela não será realizada somente se liminar judicial específica for deferida desautorizado os médicos do hospital a assim procederem. Antes, era o hospital que tinha de obter liminar judicial para realizar a transfusão de sangue. Simplesmente invertemos a situação. Na prática, ainda não vimos nenhuma liminar desautorizando a transfusão, o que não quer dizer que não existam. Até porque não podemos ignorar que há juízes de primeira e de segunda instância que são Testemunhas de Jeová e comungam desse entendimento.
Para pôr fim à essa discussão o que se precisa é de uma legislação específica, objetiva e que esclareça definitivamente a questão, sem necessidade de interpretação do aplicador do Direito. Enquanto isso não acontece, a função do advogado é estudar detidamente a matéria, comparar pareceres e jurisprudência, analisar a doutrina, consultar sua consciência e orientar seus clientes de forma clara e eficaz. O estudo nos indica a orientar o que está estampado no título deste artigo: no caso de iminente do risco de morte do paciente dê o sangue, faça a transfusão, independentemente da sua religião, pois o direito à vida sobrepõe-se ao direito à liberdade de crença religiosa.
Este artigo, aparentemente polêmico, manifesta o posicionamento que está em conformidade com quase a totalidade dos demais credos religiosos, com os quais estamos de acordo.