Na edição nº 2 deste jornal (setembro/98) abordamos o assunto referente ao ‘prontuário do paciente’, juntamente com um dos meus mestres no Direito e na vida, Dr. Adauto Suannes. Naquela oportunidade, tecemos algumas considerações a respeito do sigilo das informações constantes do prontuário do paciente. Dizíamos que a revelação, pelo médico, funcionários e dirigentes de hospitais, clínicas e casas de saúde, do conteúdo do prontuário, constitui-se crime, previsto no artigo 154 do Código Penal. Dissemos:
O fichário médico que contém a descrição completa do doente, de todos os dados que formam a descrição de seu estado físico, até aqueles que compõe sua pessoa e seu comportamento é absolutamente secreto. É, em regra, intocável.
Já salientamos que a questão do sigilo está tipificada, principalmente, nos artigos 11 e 103 do Código de Ética Médica, além de outros diplomas.
Conceito
Segredo e sigilo profissional apresentam-se como sinônimos.
Assim define o Aurélio :
“Sigilo profissional. Dever ético que impede a revelação de assuntos confidenciais ligados à profissão; segredo profissional.”
De Plácido e Silva assim conceitua:
“Segredo profissional. Funda-se na ciência de fato que chega ao conhecimento da pessoa, em razão da profissão que exerce e cuja revelação possa ocasionar dano ou prejuízo a outrem.
São tidos como obrigados a manterem segredo profissional os médicos, os farmacêuticos, as parteiras, os advogados, os notários, os sacerdotes e os funcionários públicos, que sejam senhores de segredos em razão de estado, ofício ou profissão.”
Walter Ceneviva, advogado e Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo e articulista do Jornal Folha de S. Paulo, em sua obra , da qual extrairemos vários ensinamentos, assim conceituou o segredo profissional:
“Consiste na imposição legal, sobre o exercente de determinadas formas de trabalho regulamentado ou não, do direito, do dever – ou de ambos – de não divulgar fato conhecido em consequência de seu exercício.”
Finalidade
Diz Walter Ceneviva:
“A finalidade do segredo profissional não é afirmar o predomínio da vontade privada dos entes capazes que figuraram no contrato como subscritor e como prestador de serviços, nem se destina a satisfazer vontade de ocultação de certos atos ou fatos do conhecimento de terceiros. Consistem, sim, em preservar valores materiais e morais, públicos e privados, legítimos, através de não revelação. A confiança social é mantida como o exercício fiel das profissões para as quais a lei reserva o especial encargo da reserva obrigatória.
Nesses casos, a divulgação do segredo constitui abuso de direito, enquanto conduta antijurídica, ofensiva da lei e dos preceitos éticos da correspondente profissão.
A finalidade do segredo profissional corresponde a assegurar que certas pessoas o mantenham, ou, ao contrário, impor-lhes que, em circunstâncias determinadas, o revelem, com equilíbrio adequado entre o privado e o público, entre o particular e o social, para satisfação do interesse comum ou coletivo.”
Sigilo do médico
Diz Walter Ceneviva:
“O segredo é imposto ao praticante de atividade sujeitas à obrigação de o respeitar.
…
Na medicina, em certas circunstâncias, há dever da revelação limitada do segredo, consistente em informação transmitida a autoridade sanitária prevista em lei, mas não a estranho, e há direito de não divulgar. A decisão não fica submetida ao critério do médico, mas é determinada segundo parâmetros objetivos fixados na lei e no Código de Ética.”
Continua:
“Questão de difícil composição é a de contrapor o dever do silêncio ao interesse do cliente em abrir o segredo. A dificuldade situa-se ao nível da relação contratual que subsiste, apesar da superioridade do interesse público. Para ilustrar o ponto nebuloso basta dizer que os Códigos Éticos da advocacia e da medicina compreendem princípios diversos a esse respeito. Enquanto o médico pode revelar o sigilo confidenciado por seu cliente (ou descoberto, nos exames feitos) quando por este autorizado, o advogado está proibido de o fazer, em qualquer circunstância. Isto é: para o advogado, nem a permissão do cliente nem o pedido têm força liberatória. O médico não sofre igual limitação.”
O médico, dentre os profissionais obrigados ao sigilo, tem possibilidade de desvendar todos – ou quase todos – os segredos da intimidade física e psíquica dos clientes. Tratando da saúde física e mental do ser humano, assume papel cuja importância tem luz própria na comunidade, especialmente quando se cuida do segredo profissional.
A proibição persiste depois da morte, porque o direito constitucional da intimidade preserva a memória do falecido, representado por seus parentes, que têm interesse em mantê-la.”
Ilícitos consequentes da quebra do sigilo
Recorrendo, mais uma vez, aos ensinamentos de Walter Ceneviva:
“ Cometida a infração, consistente no indevido divulgar do sigilo, é punível no plano civil, no administrativo e no criminal.
O ilícito civil resolve-se na composição indenizatória, que tem caráter contratual e extracontratual, dos danos morais e materiais que podem ser acumulados no mesmo pedido. Os valores materiais são avaliados segundo a prova produzida pelo autor. Os morais dependem de arbitramento ou de determinação pelo magistrado, com a discrição de seu próprio critério.
O ilícito administrativo é apurável e punível em dois caminhos: o do conselho profissional correspondente, que pode chegar até o impedimento de que o punido prossiga em atividade, e, quanto aos servidores públicos, pelos respectivos órgãos administrativos, na forma da lei federal ou local, sempre assegurados os direitos da ampla defesa e do contraditório.
Por último, o ilícito penal é apurado e punido segundo o Código Penal e a legislação extravagante e na forma do Código de Processo Penal.”
Preponderância do interesse coletivo
Continua Walter Ceneviva:
“ O art. 11 abriu uma exceção que tem provocado sério debate no espaço interno da profissão, ao mesmo tempo em que se presta ao noticiário dos meios de comunicação social: o médico pode romper o segredo quando seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde do trabalhador e da comunidade.
O fato autorizador da liberação não é apenas o prejuízo, mas o interesse social, coletivo ou difuso, envolvido na revelação. Sua gravidade há de ser cuidadosamente aferida, e, havendo dúvida, resolva mediante consulta ao próprio Conselho de Medicina. “
Justa causa
“É justa a causa quando a revelação se destine a prevenir agravamento sério e urgente para a saúde do paciente. A divulgação é permitida, mas sob cautela, ao responsável legal ou para o parente mais próximo encontrado.
A única liberação irrestrita, autorizadora do rompimento do sigilo, é dada pelo paciente. Quer o Código que a manifestação seja expressa.” (Walter Ceneviva)
Recusa em fornecer cópia do prontuário
No artigo já escrito e acima mencionado, já publicamos alguns exemplos a respeito da não punição do profissional que se recusa a enviar cópia do prontuário a quem o solicitar, salvo se o próprio paciente.
Gostaríamos de mencionar o exemplo citado na obra de Walter Ceneviva que norteia este artigo:
“O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo decidiu que não constitui crime de desobediência a recusa do médico em fornecer fichas clínicas de atendimento hospitalar de vítima de lesão corporal. A recusa foi baseada em preceitos de Código de Ética Médica e em resoluções do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, que recomendam a prévia consulta ao paciente, antes da entrega das fichas que contêm o histórico das suas condições médicas. Não se caracterizou, portanto em concreto, a vontade de não obedecer à ordem dada.”
Jurisprudência
Após tantos ensinamentos e juntado-os ao artigo já publicado anteriormente, estamos certos de que ninguém, e aqui nos referimos à qualquer autoridade policial ou judiciária, poderá exigir dos hospitais, laboratórios ou clínicas, que se encaminhe cópia de prontuário de qualquer paciente, salvo com autorização por escrita deste.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou posição no sentido de que “… o Poder Judiciário não tem forças para impor a liberação de documentos e informações a um profissional, …”.
O relator do processo, Ministro César Ásfor Rocha, afirmou que todos devem colaborar com o Poder Judiciário para que a verdade seja encontrada, mas não é possível exigir segredos de um profissional que tem o compromisso de resguardá-lo. Para o Ministro, a Justiça deve encontrar outros meios de se exigir provas contra os réus. (Resp. 9612) .
Diz a ementa de tal acórdão:
“Sigilo profissional resguardado. O sigilo profissional é exigência fundamental da vida social que deve ser respeitado como princípio de ordem pública, por isso mesmo que o Poder Judiciário não dispõe de força cogente para impor a sua revelação, salvo na hipótese de existir específica norma de lei formal autorizando a possibilidade de sua quebra, o que não se verifica na espécie. O interesse público do sigilo profissional decorre do fato de se constituir em um elemento essencial à existência e à dignidade de certas categorias, e à necessidade de se tutelar a confiança nelas depositada, sem o que seria inviável o desempenho de suas funções, bem como por se revelar em uma exigência da vida e da paz social.”
Citamos, também a seguinte decisão:
“Segredo profissional. – Sigilo médico – Estabelecimento hospitalar intimado, com seus médicos e advogados, a apresentar em juízo ficha clínica de vítima de aborto consentido lá internada – Ilegalidade da determinação judicial – Recusa legítima – Concessão de Mandado de Segurança.
A pública potestade só forçará o desvendar do fato sigiloso se a tanto autorizada por específica norma de lei formal. Trata-se de atividade totalmente regrada, prefixados os motivos pelo legislador, a não comportar a avaliação discricionária da autoridade administrativa ou judiciária do que possa constituir justa causa para excepcionar o instituto jurídico da guarda do segredo profissional. Este tutela a liberdade individual e a relação de confiança que deve existir entre profissional e cliente, para a proteção de um bem jurídico respeitável, como o é o direito à salvação adequada da vida ou da saúde. No embate com o direito de punir, o Estado prefere aqueles outros valores.”
O Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo se posicionou da seguinte forma a respeito do assunto:
“Desobediência – Médico e enfermeira que deixam de atender requisição judicial – Observância rigorosa do sigilo profissional – Hipótese que não versava, ademais, sobre crime relacionado com prestação de socorro médico, ou sobre notificação compulsória de moléstia infecto-contagiosa – Inexistência de justa causa para abertura de inquérito – Trancamento – ‘Habeas Corpus’ concedido – Inteligência dos arts. 325, 330 do Código Penal e 648, I, do Código de Processo Penal.”
Conclusão
Infelizmente, o que vemos na prática é justamente o contrário do que afirmamos acima.
A maioria dos hospitais encaminham cópia dos prontuários dos pacientes para delegados, juízes e, principalmente, para o Instituto Médico Legal, para que este possa realizar exame de corpo de delito indireto.
Entendemos que tal prática deve ser abominada. Imaginamos que os hospitais, clínicas e laboratórios assim procedem para evitar eventual discussão judicial a respeito deste assunto, uma vez que os administradores de tais estabelecimentos estão sujeitos a processo, necessitando contratar advogado para defender seus direitos.
Assim, mais uma vez, o comodismo dá lugar ao desrespeito aos direitos das pessoas.
Como sempre, os estabelecimentos de saúde somente mudarão tal prática quando forem acionados e condenados judicialmente pela revelação de informações que estavam protegidas sob o mando do sigilo profissional. Aí sim, aquele hospital atingido tomará cuidado na próxima vez e passará a respeitar os direitos do paciente. Mas, mesmo assim, provavelmente, ainda não servirá de exemplo para os demais estabelecimentos de saúde.
Até quando?